Vazio - [horário indefinido]

Frio. Escuro. Solitário.

Michael e aquele espírito silencioso estavam perambulando pelo vácuo, um lugar nenhum, cuja extensão ele não conseguia mensurar. Pensou em indagar o espírito, mas temeu pela sua reação, ele era frio, silencioso e sua presença lhe trazia um sentimento de amargura.

— Oi…

Sussurrou. O homem não moveu o olhar.

Michael prosseguiu.

— Er… que lugar é esse?

Assim que o questionou, notou aquele homem parar sua caminhada abruptamente. Olhou para os cantos lentamente e, então, levou a mão ao nada, à sua frente, e puxou um véu translúcido que parecia fazer parte daquele ambiente. Michael surpreendeu-se ao ver aquilo, até que todo o véu veio abaixo, revelando uma sala repleta de espelhos de corpo, todos rachados e empoeirados, mas intactos.

Se aproximou de um deles, mas não viu seu reflexo. O que havia lá era uma imagem de um homem brincando com duas crianças. Olhando mais de perto, parecia o espírito, mas estava feliz e sorria.

— Esse é você…?

Indagou, todavia, não esperou a resposta. Buscou outro espelho, viu o mesmo homem, agora, treinando em sua sala de dança em Neverland. Foi somente nesse momento que Michael começou a ligar os pontos.

— Esse sou eu…

Murmurou. O espírito, ainda quieto, segurou na mão do cantor e lentamente o puxou para um espelho em específico.

Era esse pedaço do futuro que visitariam.

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Mansão Carolwood Drive, Califórnia - 20:41 hrs

24 de dezembro de 2008.

Era véspera de natal. A neve caía com toda a sua delicadeza lá fora, a lareira estalava suas chamas lá dentro. Um garoto loiro de mais ou menos 11 anos de idade estava no sofá, lendo um livro, enquanto uma menina folheava uma revista e um outro garotinho moreno jogava algum game de mão. Michael caminhava em passos apressados pelos corredores, parecia estar procurando por alguém. Quando adentrou a sala, deixou um sorriso estampar o seu rosto.

— Achei vocês! Venham, venham, quero mostrar uma coisa!

— Agora, pai?

Indagou o loiro. A menina logo deixou a revista de lado e foi ao encontro do maior, ela era um pouco mais solícita.

— Eu quero ver, eu quero!

O moreno também os acompanhou, embora fosse caladão. O loiro cedeu e deixou o livro de lado.

— Onde tá?

— Lá fora!

Michael respondeu e logo pegou o moreno no colo. A menina lhe deu a mão.

— Mas tá tão friiiiio!

— Mas o papai vai proteger vocês do frio! Venham, não vão se arrepender!

Ainda sorrindo, conduziu os seus filhos para fora da mansão privativa. Ao longe, Michael observava aquela visão com espanto e encanto. Olhava freneticamente para si próprio e para aquelas crianças, parecia buscar a si mesmo nelas.

— S-são meus filhos… são meus filhos, você viu? Como eles são lindos...

Sussurrou, encantado. O espírito não reagiu, apenas continuou a contemplar o curso das coisas.

O puxou para fora da mansão e o levou para a varanda. O Michael da visão estava lá, não muito envolto da neve porque não queria que nenhum deles ficasse doente, apenas contemplaram em uma distância segura a neve cair.

— Olhem…

Sussurrou, apontando para o céu. Não demorou muito para contemplarem uma estrela cadente, linda, radiante, passar como um feixe de um lado do céu para o outro. A garotinha foi a mais encantada por ter presenciado tal feito.

— Uau! Vamos fazer um pedido!

— Isso, isso! Façam em seus corações.

— Hum, okay, eu quero…

— Não, Prince! É no coração, não ouviu o papai falar?!

Michael riu baixinho.

— Ei, não precisam brigar! Tem estrela pra todos, hein?

Distante, o cantor mantinha os olhos naquela visão. Estava feliz, o seu futuro parecia feliz, mas lembrava-se de que, com os outros espíritos, uma situação boa sempre vinha acompanhada de um momento ruim. Além do que, aquela entidade não parecia nada acolhedora, até agora não havia proferido uma palavra.

— O que você quer me mostrar…?

Sussurrou. O espírito lentamente apontou para o Michael da visão, que estava sendo avisado por um funcionário sobre alguém no telefone. Michael beijou os seus filhos antes de se despedir das estrelas e retornar para o conforto de seu lar.

Atendeu a ligação assim que seus filhos se afastaram.

— Ei, Kenny! Como está?

— Feliz natal, Michael! Estou bem, presumo que também esteja, hum? Eu não queria ligar nesse dia para falar sobre trabalho, mas está tudo certo para a turnê no ano que vem, não é?

— Hum… sim… eu ainda preciso ver umas coisas.

— Se for desistir, a hora é agora. Eu ainda não comecei a trabalhar no projeto, mas já estou anotando algumas ideias. Esse vai ser o show do século, Michael!

O cantor deixou uma risada escapar.

— Eu espero que sim, Kenny! É com isso que eu conto.

Após ouvir aquela conversa, Michael encarou o espírito mais uma vez.

— Por que está me mostrando isso…?

Indagou, porém já imaginava que não obteria a resposta tão rapidamente. O espírito levou a mão ao seu ombro e, de repente, as paredes daquele ambiente começaram a descascar como em um pesadelo. Tudo se esvaiu até que estivessem, agora, em uma sala branca com cadeiras de espera. Estavam em um consultório.

Não parecia natal.

Michael olhou para todos os cantos, buscando o espírito que havia desaparecido do seu lado, até que, enfim, se deparou com o que parecia ser outra visão. Um Michael mais cabisbaixo estava abraçando uma mulher alta. Se aproximou para contemplar aquela conversa, reconheceu a mulher como uma antiga parceira de trabalho.

— Anjelica…

Sussurrou, havia trabalhado consigo em Capitão EO. Após desabafar, o Michael da visão lentamente se afastou da mulher e limpou as lágrimas.

— Você vai mesmo fazer esses shows, não vai?

— Eu preciso, Anjel. Esse estigma… as palavras… todos os boatos do mundo não têm o peso do que fizeram comigo. As pessoas se esqueceram quem eu sou, eu preciso relembrá-las. Eu não sou o que estão me acusando…

— Eu sei, querido, mas… se está decidido, então dê o seu melhor. Você precisa dar o melhor, senão irão usar isso contra você, você sabe disso.

Ela acariciou o seu rosto, limpou a lágrima fria de sua bochecha. Michael mordeu os lábios e desviou o olhar do dela.

— Eu sei… estou me entregando completamente a esse projeto. Eu me apego a isso, porque é a única esperança que tenho para voltar a ser amado.

Michael ouvia cada palavra, observava cada gesto e tentava ligar os pontos. Estava passando por coisas horríveis em sua vida, mas, para chegar naquela situação de desespero, sentia que havia perdido o controle das coisas, que o problema só havia aumentado no seu futuro.

Sentia-se condenado.

Seus belos olhos negros buscaram mais uma vez a presença daquele espírito, até conseguir alcançá-lo também assistindo ao diálogo, como se estivesse sob algum tipo de transe. Foi em sua direção sem pensar duas vezes e o tocou, mas arrepiou-se ao sentir o toque gélido de uma corrente arraigada em sua cintura. Michael suspirou.

— Espírito…

Sussurrou, e então aquela entidade enfim o encarou. Michael se afastou em passos lentos, compreendendo tudo.

— Essas… correntes…

O espírito lentamente removeu o casaco e, então, Michael pôde contemplar pesadas e sufocantes correntes de prata aninhando-se ao seu corpo. Estavam por sua cintura, por seu peitoral, por seus braços… aquilo o despertou.

— Você não é um espírito como os outros, não é…? Você sou eu…

Ele não respondeu. Michael prosseguiu.

— O que eu fiz…? Por favor, me diga o que eu fiz. Me diga onde eu errei, quem eu deixei de ajudar, quem eu machuquei. Por favor!

— Obrigado, Anjel. Obrigado por me ouvir. Eu preciso ir agora…

— Imagina. Boa sorte com os shows, Michael. Vai dar tudo certo.

Após se abraçarem, aquele Michael se levantou e se retirou da sala. Uma vez que sua presença havia ido, a entidade desfez aquela visão novamente, e, agora, apenas ele e o cantor permaneceram em seus lugares.

Ouviu um lindo coral ao fundo. Um coral que, mesmo em completa harmonia, transmitia o peso de uma dor imensurável aos seus ouvidos e ao seu coração. Michael fechou os olhos e silenciosamente começou a chorar, como se soubesse do que se tratava aquilo. No fundo, ele sabia que era o seu cortejo.

“Cure o mundo,

Faça dele um lugar melhor.

Para você e para mim

E toda a raça humana.

Há pessoas morrendo…

Se você se importa o suficiente com os que vivem,

Faça dele um lugar melhor

Para você e para mim.”

— Michael…

Sussurrou. Ele abriu os olhos, pela primeira vez havia ouvido a voz daquele espírito.

— Essas correntes não são castigos de pecados. São correntes de outras pessoas… que nós escolhemos carregar. Nós as levamos, conosco, para o nosso fim.

Embora ouvisse a sua voz, sua boca não se mexia, seu olhar era sereno, mesmo que suas mãos tremessem de tanto carregar aqueles pesos de um lado para o outro. Michael tornou a respirar descompassadamente, estava perdendo o controle, precisava se acalmar.

— Carregamos mais do que podíamos suportar… e nós pagamos o preço por elas.

— Não… não se planta sementes boas e colhe frutos amargos, isso é impossível…

— Eu sabia que diria isso… porque eu também pensava assim. Mas a vida não nos pertence… não somos nós que dizemos o que é justo.

Michael suspirou, já havia entendido onde queriam chegar com tudo aquilo, mas era algo que não conseguia aceitar.

— Essas são as minhas últimas palavras para você. Eu não posso falar, eu não sinto, eu não respiro, eu não canto… porque não estou mais aqui. Mas você está, você pode mudar tudo isso. A questão é… você irá mudar?

Michael refletiu sobre aquela pergunta, mas não teve a chance de lhe responder. De repente, sentiu o chão sob os seus pés se desfazer, contemplou o olhar vazio daquele espírito antes de sentir tudo à sua volta cair.

Gritou, gritou e suplicou, mas de si não saía som. Sentiu-se sufocado, tentou chamar por ajuda, chamar pelo espírito, qualquer coisa, mas não havia som em lugar nenhum exceto em sua mente.

Você vai gritar, mas não sairá som de sua boca.

Porque eu gritei, e não entenderam o meu pedido de socorro.

Você quer fincar os pés no chão, mas não encontra o solo.

Porque as pessoas que disseram que te amam foram embora. E as que te amam de verdade não tiveram a chance de externar isso.

Que culpa tivemos? Não podíamos confiar em ninguém. Não podíamos colocar mais ninguém em nossas vidas. E arriscar piorar o nosso quadro?

“Não… p-por favor… espírito…”

Queríamos tanto o amor das pessoas, e conseguimos.

Valeu a pena, Michael…?

Caindo…

Caindo…

Caindo…

Reconheceu estar adentrando um mausoléu. Viu um caixão dourado. E então, com todas as suas forças, gritou.

— NÃO!! Não, eu não quero ir, por favor!!

Sua visão escureceu. Acordou em um pulo.

Estava de volta. Estava em Neverland.