Você quer ouvir uma história, certo? É por isso que veio até mim. É por isso que veio ao encontro de um dos Historiadores do Mundo. Eu não sei qual é o seu motivo para vir até aqui. Talvez seja por puro conhecimento. Dizem que "conhecimento é poder". Mas não é minha função julgar uma pessoa. Minha função é contar a História, exatamente como ela aconteceu.

Em primeiro lugar, eu preciso me apresentar. Na verdade, eu não posso lhe dizer meu nome, mas eu atendo como o Historiador das Guerras. Existem muitos de nós, mas dizem que eu sou um dos mais importantes.

É pelas Guerras que muitas nações são construídas ou destruídas, o que acaba envolvendo um número imenso de pessoas, quer queira elas ou não. Muitas pessoas, quando ouvem essa palavra "guerra", só assemelham ao derramamento de sangue inútil, que muitas vezes poderia ser contido por um simples ato. Mas essas mesmas pessoas não sabem nem um décimo das coisas que acontecem durante uma guerra.

Mas é por isso que você está aqui, correto? Você quer saber tudo. Inícios e fins. E tudo o que está escondido entre os "meios". Você veio ao lugar certo.

Eu vou lhe contar a história de uma Guerra. Ela é a minha preferida, não só porque ela foi considerada a guerra mais importante de toda a história desse planeta, mas sim, porque ela é a que tem conteúdo profundo, brilhante e intrigante. Essa guerra envolveu tantas vidas, tantos reinos, tantas magias e tantas lutas que o mundo se transformou em uma coisa completamente diferente ao que era antes dela começar.

Eu espero que você já esteja começando a ficar interessado. Mas se não estiver, não se preocupe. Logo você não estará mais aqui. Você estará dentro de cada personagem da minha história, querendo saber o que eles pensaram ou porque agiram daquela maneira. Vai estar tão profundamente ligado ao conto, que não vai lembrar nem o motivo de ter vindo aqui.

Mas antes que eu possa começar a contar qualquer coisa, é bom que você saiba de algumas coisas. Em primeiro lugar, essa história não tem Protagonistas. Isso mesmo. Ela envolveu tantas pessoas que tiveram ações chaves para o andamento dos eventos, que todos acabam tendo exatamente a mesma importância. Acha impossível que haja uma história sem protagonistas? Então o que você acha se eu disser que essa mesma história não tem nem heróis e nem vilões? Claro que você mesmo pode definir que uma pessoa é boa ou má, mas você logo perceberá que aos olhos do Mundo, não existiu algum grande Bruxo das Trevas que estava tentando dominá-lo e que um Grande Herói o deteve.

Outra coisa que você precisa saber é que eu sou o Historiador de Guerras, então obviamente os maiores detalhes dessa história estarão nas batalhas. E, acredite, haverão milhares. Se você não gosta de ouvir detalhadamente como uma batalha de vida ou morte acontece, eu devo-lhe pedir para que vá embora.

Você ainda está aqui, então significa que ou você não se importa em saber dos detalhes de uma luta... Ou está ainda MAIS interessado agora, assim como eu. Excelente. Acho que estamos prontos para uma grande aventura. Ela é grande, mas como eu disse antes, você vai estar tão absorto em pensamentos que não verá o tempo passar. Vamos lá!

Toda Guerra tem que começar de algum lugar. Todas elas tem um "centro". E eu vou dizer qual é dessa em questão: foi uma Guilda. Uma Guilda sozinha conseguiu mexer com cada soldado em cada reino e em cada Continente do mundo. Mas antes de falar sobre ela, eu vou ser obrigado a contar como ela foi fundada. "Por quê?", você pergunta? Bem, porque essa Guerra começou muito antes de todos terem consciência dela. Não entendeu? Relaxe. Você logo entenderá.

Primeiro, o nosso Mundo. Imagino que você já o conheça bem, mas eu vou falar dele mesmo assim. Nosso mundo não é tão grande quanto parece. Estamos no Ano 1650 agora, mas essa Guerra foi há cinquenta anos atrás. Naquela época, acredite ou não, o mundo parecia ainda menor. Os Reinos eram maiores porque tínhamos muitos Reis ou Rainhas gananciosos e com um gosto um pouco assustador sobre poder. E eu não estou falando de "Poder Mágico". Ainda vamos chegar nessa parte.

Um Reino sempre é formado por uma Capital, várias Cidades ao redor dessa Capital, e mais um grande monte de Vilas. Cada uma dessas três localidades tinham diferentes objetivos. As vilas geralmente serviam para o cultivo, plantações diversas, fazendas ou até mesmo extrações de minérios. Eram onde estavam as pessoas mais pobres e mais trabalhadeiras. As cidades serviam mais para o comércio desses mesmos recursos que as vilas produziam. Também eram onde ficavam os artesões, artistas de tudo o que você possa imaginar e principalmente, estavam as pessoas que procuravam uma boa vida. Ou as vezes, só uma "vida". E por fim, as Capitais. Veja-as como uma "cidade melhorada". Era onde o Rei ou Líder do Reino morava. Também era onde o exército ficava e onde era treinado. Ou seja, era o coração de um reino. Eu não vou especificar nada sobre Economia ou Política de cada Reino, porque essa não é minha área. Procure o Historiador dos Reinos para isso.

Você deve saber que cada Reino era bem diferente de outro. Da pra imaginar que isso é normal, já que uma pessoa sempre vai ser diferente da outra. Mas muitas vezes, essas "diferenças" causavam conflitos ou invejas grandes demais para serem enterradas nas mentes de pessoas com grande poder político. Lembra que eu falei da "ganância"? Pois então. Essa mesma ganância levou muitos Reis lutarem entre si, por vários motivos. Alguns eram mais tolos que os outros. Alguns, tinham motivos mais nobres. Mas tanto um quanto o outro acabou sacrificando vidas de incontáveis pessoas só para se manter acima dos demais Líderes de Nação ou para ganhar um pouco a mais de terra para seu Reino. Houveram muitas e muitas guerras nos anos anteriores a esse, mas desde 1500, nós temos vivido com uma paz tranquilizadora.

Infelizmente, essa paz era ilusória. O ser humano sempre vai estar em conflito com algo. Se não é contra outro ser humano, eles entram em batalha contra eles mesmos. Mas em 1600, nós tínhamos dois grandes problemas. O menor deles, eram os Bandidos. Eu estou simplificando, mas trate-os como quiser. Ladrões, assassinos, gangues fora da lei, estrupadores, sequestradores, usurpadores. Era como se fosse uma peste que transmite várias doenças de uma única vez. Em nenhuma época e em nenhum Reino, essa peste desaparece. Eles sempre existiram e sempre existirão, não importa quantas vezes você os liquide. Então em 1600, mesmo com grandes reinos tendo guardas nas ruas de suas cidades ou até mesmo em vilas, os bandidos, ladrões e sequestradores continuavam a solta, levando esse veneno para a casa de pessoas inocentes e trabalhadoras.

O segundo problema era maior e mais complicado de se lidar: os monstros. Feras sanguinolentas, muitas vezes irracionais e em todas as vezes, famintas. Ninguém sabe exatamente como essas bestas mágicas nascem ou como elas apareceram no nosso mundo. Mas lá estão elas. Causando mais destruição do que qualquer bando de ladrões e as vezes, criando guerras mais terríveis do que as dos humanos.

Existem centenas... Não. Milhares de tipos de monstros no nosso mundo, e eu acredito fielmente que a humanidade ainda não conhece todas. Esse problema é grande o suficiente para assustar qualquer indivíduo, mesmo um Grande Rei ou um poderoso Mago. Talvez você consiga convencer aquele ladrão para que ele só leve seu dinheiro e não lhe mate... Mas tente convencer um Minotauro de Metal a não lhe empalar com seus dois grandes chifres prateados e veja o que acontece.

Está mais entusiasmado agora? Ou assustado? Saiba que esses dois grandes problemas foram, de certa forma, o estopim para a Guerra que eu quero lhe contar. Imagino que você tenha algumas perguntas, como por exemplo: "O que os Exércitos dos Reinos estão fazendo que eles não conseguem se livrar de feras comedoras de homens?", ou "Por que um Rei deixaria um bando de bandidos invadir uma de suas vilas fazendeiras e levar tudo que lá tinha?". A resposta é simples para as duas perguntas: porque eles NÃO CONSEGUEM fazer muita coisa contra esses dois problemas. Eles tentam, claro. Mas um soldado de um reino é treinado especificamente para lutar contra outro soldado de outro reino. Existem sim, reinos onde todos os guardas e soldados são treinados para se defenderem contra monstros... Mas como eu mesmo disse antes, existem tantos tipos diferentes de monstros e até de gangues, que todo esse treinamento especial se torna um desperdício de tempo.

O mundo parece caótico, não é? E realmente era. Mas é agora que vamos chegar na parte interessante! Eu lhe contei sobre os dois Grandes Problemas do mundo. Agora está na hora de lhe contar sobre a Maior Solução para esses problemas. E, como eu espero que você tenha imaginado, essa solução eram as Guildas. Elas eram formadas por uma grande quantidade de pessoas treinadas em várias artes, profissões, classes e habilidades, que trabalhavam para as pessoas resolvendo esses dois grandes problemas ou até mesmo qualquer outra coisa que o povo lhe pedisse e pagasse. Sim, "trabalhavam". As Guildas não faziam nada voluntariamente. Pelo menos a maioria delas. Elas cobravam uma certa taxa para cada trabalho. Essa taxa era variada com a dificuldade do trabalho em si. Capturar um ladrão que roubou seu amuleto da sorte? Tranquilo e barato. Matar uma alcateia de Lobos de Pelo de Agulha? Prepare-se para desembolsar uma gorda quantia de dinheiro.

Agora você pergunta: "Mas se nem os Exércitos conseguem dar conta de monstros, como essas Guildas conseguem?". Isso porque todas as Guildas, sem exceção, são formadas de "Usuários de Magia". É uma forma estranha de titulá-los assim. Eles são Magos, Cavaleiros, Arqueiros, Lanceiros, Artistas Marciais... São guerreiros com uma forma diferente de lutar. Mas todos usam algum tipo de "Poder Mágico". Lembra que eu falei disso? Bem... Está na hora de lhe contar mais e tirar suas dúvidas. Preste atenção: essa parte é vital para a história.

Nosso mundo tem uma coisa que a gente chama de "Magia". Assim como os monstros, não é possível explicar sua origem e sua funcionalidade perfeitamente. Mas resumindo, pense que todos os humanos (com algumas poucas exceções) tem um tipo de energia extra fluindo em seus corpos. É essa energia que nos faz usar as Magias. Se você se corta, você perde sangue. Se você corre por muito tempo, acaba se fadigando. E se você usa magia, você perde energia mágica.

Assim como o cansaço, essa energia pode ser recuperada descansando, mas também como o sangue, você pode recuperar energia mágica bebendo poções especialmente criadas para esse propósito. Também como os monstros, existem milhões de tipos de magia. Magias que encantam armas. Magias que disparam algo criado do nada. Magias que transformam um ser em outro ser. Magia que altera clima e temperatura. Cada uma tem uma forma diferente de se manifestar. E cada uma é ensinada em locais diferentes.

Assim como temos escolas que nos ensinam a ler e escrever, existem as Academias Arcanas, Templos de Treino, Dojôs de Artes Marciais... Isso só para citar alguns. Era daqui que saíam os Magos, os Samurais, os Ninjas, os Paladinos. Quando você entra em uma dessas escolas, você treina para se tornar membro de uma "Classe".

Ah sim, é bom lembrar que as escolas estão espalhadas pelo mundo, e em cada uma, você pode aprender um tipo diferente de magia ou de um jeito de lutar. O tempo que você pode passar em cada uma dessas escolas também é muito variada. Muitas vezes depende do seu esforço, dedicação ou até mesmo talento. Mas tem vezes que não importa o quão bom você seja, as magias são tão complicadas para serem aprendidas e aperfeiçoadas que você pode levar anos para completar seu treinamento.

Esse também é o motivo que faz com que nem todas as pessoas do mundo tentem aprender Magia. Pode se dizer que mais da metade da humanidade já tentou usar magia, mas nem metade disso conseguiu aprender. Usar magia é uma coisa difícil, mas o real problema dela é o fato dela ser "perigosa". É normal você ver notícias onde uma pessoa perdeu controle de sua magia de fogo e acabou incendiando a própria casa. Ou pior: se matar usando magia era algo tão costumeiro que fazia com que todas as pessoas pensassem duas vezes antes de tentarem a sorte em uma escola de magia.

Tudo bem, então agora você sabe sobre magia e os seus usuários. Provavelmente você está se perguntando o por quê então que essas pessoas não trabalhavam direto para os Reis. É aqui que está o principal ponto. Tinham SIM, inúmeros magos trabalhando dentro dos exércitos de muitos reinos. As vezes os Reinos tinham até seus próprios "Esquadrões Especiais", formado só com esses usuários. Geralmente eram a maior parede de defesa de uma cidade. Mas ainda sim, não existia nenhum lugar com mais usuários de magias do que as Guildas. É por isso que muitas vezes as Guildas recebiam trabalhos diretamente dos Reis ou da Realeza. Esses trabalhos eram quase sempre muito caros e muito perigosos. E, como você deve ter adivinhado, criavam as piores e mais destrutivas guerras possíveis.

Sim, eu sei o que você está pensando. Você quer saber porque um mago prefere ficar perto de outros magos. Isso não é tão simples de responder, porque isso varia de pessoa pra pessoa. Mas geralmente, a resposta que você vai obter dessas pessoas é: porque é mais seguro. Não é qualquer um que vai querer te irritar sabendo que você pode chamar um esquadrão de pessoas que podem disparar raios elétricos das mãos. Além disso, existia o fato de que você pode continuar evoluindo sua magia treinando com um companheiro. Outras pessoas — as mais complicadas de se entender —, podem responder a sua dúvida com: porque é mais divertido, ou porque elas preferem a liberdade de ação do que ficar sendo ordenadas por alguém que você não pode contrariar.

Agora vamos ver se você entendeu tudo. O mundo está em paz onde os reinos não se atacam uns aos outros — ou pelo menos, quase nunca. Existem muitas cidades e muitas vilas, e existe muita diferença de vivência. Existem bandidos e monstros, e para a sorte do povo, existem as Guildas que cuidam desses dois. E existe a Magia, que muda a visão de quase tudo que podemos fazer e pensar, criando uma vida quase sem limites. Essa é a essência do mundo, que você precisava saber antes de eu começar a contar a história em si. Claro, existem outras coisas que você vai ficar sabendo ao longo dessa aventura. Não seja apressado.

Como eu falei antes, toda a Guerra começou por causa de uma só Guilda. Um grupo de pessoas que podem usar magia conseguiu criar uma situação tão absurda que fez com que todo o mundo caísse em uma época de batalhas de larga escala. Você deve estar imaginando que tipo de malucos que estavam nessa mesma Guilda. E é exatamente o que eu vou lhe contar agora. O início de tudo. Vou contar como muitas coisas horríveis já começaram antes mesmo dessa Guilda ser criada. E como esse início desencadeou um número infinito de problemas para os membros da Guilda, onde sua única saída era pegar suas armas e irem para o campo de batalha.

Para isso, eu preciso lhe contar dos quatro primeiros integrantes da Guilda. Eles eram seus Fundadores. Quatro pessoas bem diferentes umas das outras. A maneira como eles se conheceram e como se tornaram amigos e companheiros de um time. Como eles superaram tantas lutas juntos. Como criaram uma confiança quase ilimitada uns nos outros. Nada poderia ser contado se eu não fizesse uma leve introdução dessas quatro pessoas. Essa introdução vai ajudar você a entender bem qual é a profundidade da Guerra que estará para vir. Não se preocupe, eu vou tentar ser breve. Está interessado agora? Espero que esteja. Porque eu vou começar falando do membro com mais problemas em sua história. E ela é uma mulher.

~~~~~~~~~~~xXx~~~~~~~~~~

Um mundo fantasioso, mágico, cheio de alegria, festas em grandes salões, com comida e bebidas que nunca ficam escassas, com governadores bondosos e muita saúde. Isso é o que todo mundo sempre sonha, principalmente quando essa pessoa se cansa de ver ou passar pela mesma situação desesperadora todo santo dia. Crueldade e pobreza existiam em todos os cantos. Você não precisava andar muito para ver um pobre coitado mendigando na porta da casa de alguém ou na frente de algum estabelecimento qualquer. Um pouco de água, eles pediam. Um prato de comida. Uma moeda.

Muitas pessoas tinham que se virar como podiam, principalmente nas pequenas vilas. Os pobres queriam poder sair para trabalhar em fazendas que precisavam de pessoas, mas o caminho era tão perigoso, que era mais fácil tentar a vida de esmolas. E olha que o problema não eram só os monstros descontrolados que vivam cruzando o caminho dos humanos. Na maior parte das vezes, a coisa mais terrível que você poderia encontrar nas ruas eram outros humanos.

Mas sempre haviam os que abraçavam os riscos. Os mais corajosos saiam por eles mesmos, correndo pra algum lugar que poderia acolhe-los. Outros mais inteligentes, esperavam as grandes caravanas partirem em viagens de negócios, para que eles pudessem segui-los, lhes garantindo um tipo de segurança e para não se perderem no mundo a fora.

Ela achava triste. Porque as pessoas tinham que ser tão diferentes umas das outras? Porque nós não podíamos dividir tudo, e vivermos em uma igualdade pacífica? Ela pensava isso muitas vezes, e olha que tinha só sete anos de idade. Ela era uma princesa. Mas não pense naquelas princesas mimadas que adoram joias e só se importam com a própria saúde.

E olha que ela era herdeira do trono de Lazetna, o Povoado do Mar de Cristal. Esse era, sem sombra de dúvida, um dos países mais ricos do mundo. Sua Capital se estendia por uma grande parte do litoral do extremo sudeste do mundo, e tinha o maior mercado de pesca do globo terrestre, competindo somente com Arknar no Leste — por causa de suas grandes baleias — e Zerkron no extremo norte. Era nessa capital que ela vivia... E que nunca saiu.

Ela sempre se sentiu "presa" no castelo. Por ser princesa, ela tinha que ter um estudo extremamente pesado. Seu pai, o grande Rei daquelas terras por mais de 10 anos, era rígido e se zangava muito fácil. Então ela precisava sempre demonstrar que estava evoluindo. Tanto nos estudos quanto nos treinamos mágicos, claro.

Lazetna era lar dos maiores Magos controladores dos mares e das águas, e obviamente, toda a linhagem da realeza precisava ser digna de tal fato, tendo os melhores magos trabalhando diretamente para o Rei. Ela não era exceção. Mas sobre isso, a pequena princesa não tinha muito do que reclamar. Ela era melhor maga do que uma matemática, por exemplo. Então as aulas de magia eram as mais divertidas. Mas isso não lhe deixava totalmente feliz. Esse era um termo que ela demorou para conhecer. Felicidade. Contentamento.

Suas companhias também eram controladas. Nenhum amigo pra brincar e nenhuma pessoa próxima para conversar, realmente pode fazer uma pessoa ter sérios problemas psicológicos, mas ela aguentou muito bem. Seu pai quase nunca a via por causa dos afazeres reais. Então ela sempre foi muito apegada a mãe. Não que fosse algo novo da "filha" se apegar à "mãe". Esse não era um fato exclusivo da Realeza. Era mais humano, visto em qualquer casa, em qualquer reino. Mas mesmo dizendo isso, não da para se dizer que sua mãe tinha tanto tempo para ouvir tudo o que a filha tinha a dizer. Lembre-se que ela era a Rainha. Então é claro que ela também tinha muitos afazeres reais para cuidar.

Mas vamos pular essa parte. Vamos para algo realmente importante.

A primeira vez que a pequena princesa saiu da Capital, foi para um jantar real realizado em uma cidade muito ao sul, que ela nem lembra o nome. Ela tinha 13 anos, e já era obrigada a participar desse tipo de evento, que era outra coisa que ela odiava. Obrigações Reais lhe tomavam muito tempo e ela se forçava para esquecer de algumas das reuniões pela qual passou.

Mas ela lembra muito bem desse dia em questão. A viagem tinha sido a coisa mais empolgante de sua vida. Ela ficou literalmente colada na janela da carruagem, olhando pros vastos campos durante todo o trajeto. A grama verde, as fazendas de gado, as estradas de terra. Até mesmo a simplicidade das plantações de milho. Era tudo novo e tudo lindo. Colorido e vivo.

Até a cidade que eles visitaram era linda. Era diferente em tudo. As casas, os telhados, as pessoas. Agora o que não mudava eram os sorrisos. Dos mais sinceros e puros das pessoas vívidas nas ruas... Até os mais maliciosos dos nobres que a esperavam nos portões do Castelo.

Estava tudo bem até eles entrarem no lar de seu anfitrião, cumprimentarem o Rei de lá, ter uma apresentação formal de forma rápida e então, se inicializar o jantar. Foi lá onde ela teve a primeira sensação de puro desgosto na vida. Não porque os nobres a olhavam com o canto dos olhos com ignorância, e sim, porque foi apresentado a ela o seu "futuro príncipe".

Isso não era de maneira alguma algo "novo". Casamentos arranjados eram tão costumeiros quanto festas de aniversários. O queixo dela quase foi ao chão quando ela soube que ela seria obrigada a se casar com um garoto que estava à sua frente. Loiro, cabelo bem arrumado, cheirava a caros perfumes, com um sorriso boboca e pinta de superior. Inacreditável.

Muita coisa veio a sua cabeça ao mesmo tempo naquele momento, mas nada superava a raiva. Ela poderia viver uma vida chata, mas nunca sentiu tamanho ódio no coração.

Depois do jantar, os dois foram deixados sozinhos no quarto dele, em uma das torres centrais do castelo. Ele era um perfeito cavalheiro. Logo que entraram no quarto — um tão chique e bem organizado quanto o dela — ele lhe ofereceu um copo de chá, que foi imediatamente recusado.

Ele se sentou na cama e ela foi até a janela de vidro do quarto. Era o começo da noite, e daquele ângulo, ela conseguiu ver algumas luzes das casas muito abaixo. Ela não podia negar que aquela vista estava a deixando um pouco mais calma. O vento fresco e um silêncio gostoso. Foi quando ele começou a falar.

Era a primeira vez que ela falava com um garoto da mesma idade do que ela, e ela já estava odiando. Não porque ela não queria conversar, mas sim, porque a primeira coisa que ele disse foi o quão rico e poderoso ele seria quando se tornasse Rei. A conversa se seguiu com ele contando sobre o próprio reino, sobre seu exército, sobre suas colheitas, e sobre o quão bom seria quando os dois se casassem, pois teriam a total cooperação um com o outro, aumentando a prosperidade de ambos os reinos. Ela prestou atenção em cada palavra dele, mas não demonstrou nenhum interesse pelo assunto. Ela ainda estava furiosa.

— Sabia que é falta de educação não olhar nos olhos das pessoas quando você está conversando com elas? — perguntou o loirinho, se levantando da cama rapidamente.

A princesa não respondeu. Ela só baixou a cabeça e pensou: "Qual será a distância daqui dessa torre até o chão?". Eram alguns andares de distância. Ela não percebeu que o garoto havia caminhado lentamente até as suas costas sem dizer nenhuma palavra. Ela continuava a olhar para o profundo escuro criado por uma noite sem estrelas e com muitas nuvens tampando a luz da lua. Foi quando ele a tocou. Ele levou a mão direita suavemente entre os cabelos lisos dela e disse:

— Você vai ser feliz comigo.

Susto. Raiva. Descontrole. Grito. Barulho. Tapa. Foram os eventos que acontecerem no segundo seguinte. A garota que estava perdida em pensamentos levou um susto com o toque do Príncipe. Ela deu um grito, abriu a mão e com um rápido giro, acertou um tapa barulhento na cara do rapaz. O garoto também não esperava essa reação, então deu dois passos desequilibrados para trás e caiu de bunda no chão, com a mão direita na parte do rosto que havia levado o tapa, que estava ardendo naquele momento.

— Você... VOCÊ FICOU MALUCA?

A voz elevada do Príncipe causou um pequeno alvoroço no quarto ao lado, que era os aposentos do Rei. Naquele exato momento, os dois Reis conversavam sobre a troca de mantimentos para fixar uma confiança entre os dois povos, mas as negociações foram interrompidas na metade depois do grito.

Os dois reis se levantaram da mesa e correram para a porta do quarto ao lado. Quem a abriu foi o pai dela. Ele viu o garoto ainda ao chão com a mão no rosto e a garota em pé, encostada na janela com as duas mãos juntas ao peito, com uma cara de alguém que tinha visto um fantasma. O pai dela tinha entendido imediatamente. Ele nem esperou o garoto responder ao pai dele quando o mesmo tinha lhe perguntado o que havia acontecido.

O Rei de Lazetna correu até sua filha e lhe deu um tapa no rosto com as costas da mão. Ele nunca tinha feito aquilo. Já tinha brigado, gritado... Mas nunca levantou a mão para a filha. Mas o mais doloroso não tinha sido o tapa, e sim isso:

— Você é uma desgraça para a nossa Família!

As palavras do Rei vieram como um martelo batendo fundo em um prego na madeira. Ela tinha ficado paralisada por mais de um minuto. Estava em um estado de total dormência. Nem dor na face ela sentia. Ela também não se lembra que seu pai lhe havia pegado pelo braço e tê-la levado de volta para a carruagem para ficar com sua mãe. A pobre e assustada garota não se lembra de mais nada naquela noite.

Ela só foi começar a raciocinar novamente no dia seguinte. Tinha acordado em sua cama, e também não lembrava como havia chegado lá. Foi a primeira vez que suas empregadas não haviam lhe acordado para o café da manhã. E não era mais de manhã. Ela se levantou e foi até o refeitório real. A mesa estava vazia. E a única pessoa ainda restante na mesa, era seu pai. Ela nunca vai esquecer do olhar dele quando disse:

— Você está de castigo. Tudo o que você vai ter hoje, é um copo de água e vai ficar trancada em seu quarto até amanhã. E se você tentar sair, isso vai continuar por mais um dia. Vá refletir suas ações de ontem a noite!

A voz grossa do pai fez a garota girar 180 graus e correr pelo corredor de volta para o seu quarto. Lágrimas voavam e caiam no tapete vermelho enquanto ela corria de cabeça baixa, quase batendo com tudo em uma das camareiras.

Ela entrou no seu quarto batendo fortemente a porta, e se despejou na cama. E chorou. Chorou aos berros. Ela amaldiçoou a vida que levava. Amaldiçoou as obrigatoriedades da realeza. Amaldiçoou o garoto que ela teria que se casar. Amaldiçoou todo aquele reino desgraçado que ela tinha visitado. Amaldiçoou seu pai. E só não amaldiçoou a si mesma, porque alguém havia acabado de quebrar sua janela.

Ela rolou na cama, ainda com os olhos vermelhos, e olhou para uma grande pedra ao lado de sua escrivaninha. Seu coração batia rápido por causa do susto. O quarto dela ficava bem no canto esquerdo do castelo, e suas janelas eram imensas e muito bem trancadas. Além de resistentes. Mas não foi o suficiente pra aguentar aquela pedra. Esse não era o REAL problema. E sim, que tinha um garoto entrando pelo buraco feito no vidro.

Parecia ter a mesma idade que ela e quase a mesma altura. Roupas surradas, que não eram típicas do reino. Ele estava um pouco sujo e com algumas ataduras. Seu cabelo era negro e comprido, amarrado com um rabo de cavalo curto. Era tudo o que ela conseguiu ver naquele momento.

— Ih cacete! Eu não sabia que tinha alguém no quarto!

Essa frase foi do garoto. Ele falou rapidamente no mesmo momento que viu a garota ainda sentada na cama, agarrada com o travesseiro e derramando lágrimas. O que era aquilo? Uma brincadeira? Não... O garoto tinha uma faca na mão. Um roubo! O garoto era um ladrão! Mas como ele tinha passado pelos guardas? Era impossível vir de fora por causa do gigantesco muro que rodeava o castelo. Então... Como?

A pobre princesa não conseguiu pensar mais, porque o garoto desapareceu de sua visão em um segundo. No outro segundo, ele já estava em cima dela, na cama, colocando a faca em seu pescoço. Foi tudo tão imediato, que ela não teve tempo de se assustar mais do que já estava.

— Desculpa, não posso deixar que ninguém me veja, então isso é um adeus. — diz o garoto, segurando a faca na mão direita contra o pescoço fino da garota e com a mão esquerda, ele segurava o braço direito tremente dela. Aquilo seria uma morte rápida. O garoto não era só um ladrão, mas também um assassino. Como dito, "seria" uma morte rápida. Mas as palavras da garota o deixaram atormentado.

— Tudo bem. Só faça com que seja indolor.

Os olhos dela estavam mortos. O garoto reparou naquele olhar e logo percebeu que ela havia desistido de qualquer coisa. Ele sabia. Ela tinha os mesmos olhos dele. Ela não estava resistindo. Tremia de medo, mas não era medo da morte. Ele continuou parado, a olhando. A tremura foi diminuindo e ela fechou os olhos. Ela achava que se não visse, iria doer menos. Era o tipo de pensamento que vem a tona na nossa mente nesse tipo de situação, mesmo não fazendo o menor sentido.

— Você não está com medo? — pergunta o garoto, com uma voz mais leve e obviamente, mais confusa.

— Eu não sei. Mas isso não importa. — a garota respondeu ainda com os olhos fechados. Ela não estava raciocinando ainda.

— Você vive em um castelo grande, tem roupas bonitas e comida boa. Acho que isso deveria te importar sim.

— Não fale como se me conhecesse! — a voz dela tinha se alterado, e agora ela o olhava nos olhos. Os olhos dela queimavam. O medo se transformou em uma fúria quase descontrolada. — Você não sabe o quão duro é viver trancada aqui nesse lugar! Tendo que seguir ordens e fazendo tudo o que eles te mandam fazer! Não me julgue sem saber!

O garoto se sentiu como se agora ela que tivesse a faca em seu pescoço. Ele saiu de cima dela, indo para fora da cama, mas ainda a olhando. A garota se levantou lentamente, ainda fixada nos olhos do pequeno ladrão. "Por que ele havia saído de cima de mim?", pensava ela. Essa situação silenciosa se manteve por quase um longo minuto.

— Se é tão ruim assim, então por que você não foge?

— Fugir? Estamos em um castelo! Não tem por onde fugir!

O garoto não respondeu com palavras, e sim, com um movimento. Seu braço se levantou lentamente e apontou para o buraco no vidro que ele mesmo tinha feito. A expressão dela já havia mudado há muito tempo, mas a dele continuava intacta. Ela olhou para o buraco e depois olhou o pequeno ladrão, achando que aquilo era uma piada.

— E como você quer que eu fuja? Eu sou a herdeira desse lugar. Eles vão me caçar seja lá onde eu for. E se me acharem, vão me bater e me deixar presa com piores condições até eu assumir o trono.

— Então não seja encontrada. Mude de nome, mude de visual, mude de vida. Seja outra pessoa e você nunca mais será encontrada. — diz o garoto, indo até a escrivaninha da garota.

— Você acha que é fácil assim?

— Acho sim. Fui perseguido a vida inteira e nunca fui pego. — o garoto agora revirava os poucos papéis em cima da escrivaninha, parecendo procurar algo. Enquanto isso, a garota saiu de sua própria cama e ficou de pé, ainda olhando confusa para o ladrão. Ele realmente tinha perdido o interesse em matá-la, se é que alguma vez já teve.

— Você deve ser algum tipo de maluco. O que você veio fazer aqui?

— Roubar. — ele nem a olhou para responder. — Estou um dia inteiro sem comer e preciso de dinheiro. Esqueça isso. Você quer ou não sair daqui?

Agora o garoto parecia apressado. Ele havia derrubado os papéis em cima da mesa, deixando só uma folha em branco. Pegou uma pena e a molhou na tinta preta ao lado da folha. E então voltou a olhar para ela. Ele queria uma resposta. Fugir ou não. Isso nunca tinha passado pela cabeça da garotinha, já que ela sabia que era impossível. Bem, a não ser hoje. Como seria viver no mundo lá fora? Com suas próprias leis e suas próprias vontades? Sem ter horário pra nada? Respirar o próprio ar... Viver!

— Se eu disser que quero, o que você vai fazer? — perguntou a garota, com ar de indecisa. Não era culpa dela, afinal não é todo dia que alguém entra pela sua janela te oferecendo liberdade.

— Se você quiser sair, eu vou escrever um recado para o rei daqui dizendo que eu te raptei e que quero 5 mil peças de ouro pelo seu resgate. Vou dizer que a quantia não é negociável e que ele deve vir sozinho me entregar o dinheiro daqui a 5 dias, em uma casa ao extremo leste da cidade. Já que a quantia é grande demais, ele vai demorar pra reunir tudo, e enquanto eles procuram algo ao leste, nós fugiremos para o oeste. Como eles vão ter que esperar 5 dias, nós já estaremos provavelmente em outro país, bem longe daqui, garantindo sua liberdade... Pelo menos de início.

Era quase perfeito. Ela sabia. Os dois se olharam por mais uns segundos. Ela havia se encantado pelo plano feito em alguns segundos pelo garoto e estava impressionada em quão detalhado ele foi com relação a quantia e tempo. Ele com certeza não era um ladrão normal.

A expressão rígida que o garoto fazia naquele instante deu forças para a princesa. Ela disse que queria fugir. E foi aí que ela o viu sorrindo. Algo leve e quase imperceptível.

Ele mandou ela recolher tudo o que ela tinha de valor no quarto e mandou que trocasse de roupa imediatamente. Enquanto ela fazia o que lhe foi pedido, o garoto escrevia o tal recado. Logo que acabou de escrever, ele começou a fazer a maior bagunça no quarto. Rasgou metade da cortina rosa de sua janela e jogou os dois travesseiros para os cantos do quarto, além de derrubar, sem fazer barulho, a escrivaninha que tinha acabado de usar. Ele também usou a faca para fazer alguns riscos nas paredes e no chão.

— O que você está fazendo? — perguntou a garota, fechando a bolsa cheia com roupas e joias que tinha.

— Estou criando um cenário. Essa bagunça vai fazer com que eles pensem que lutamos. Vai nos garantir que eles acreditem no recado.

— Você já fez isso alguma vez? — a pergunta veio pelo fato daquilo também ser uma ideia perfeita.

— Não, nunca. Se apresse.

Assim ela fez. Juntou tudo o que era de ouro ou diamantes que tinha ganhado de presente durante esses anos. Escolheu algumas roupas, e depois foi dito pra ela não levá-las, pois eram roupas de nobres. Ela teria que mudar seu modo de se vestir se quisesse continuar fugindo. Ele a fez tirar a sua atual roupa e "vestir" o que havia sobrado da cortina. Antes mesmo que ela pudesse reclamar, ele foi dizendo que aquilo seria só temporário, para não levantar suspeitas quando eles chegassem na cidade. Ela foi obrigada a concordar.

Depois de pronta, ela o ajudou a criar mais um pouco de "caos" no quarto. Com tudo pronto, os dois saíram pelo buraco da janela. Não havia guardas por ali naquele momento. A janela dela dava para trás do castelo, mas mesmo assim, havia ronda dos guardas por toda aquela área. Onde eles estavam?

— Não adianta procurar pelos guardas, eles estão ocupados com um incêndio na ala das catapultas. — disse o garoto, respondendo a pergunta mental dela. Ele estava a puxando pela mão e a levava para mais ao fundo do castelo, rente ao grande muro. — E sim, fui eu que causei o incêndio. Chegamos.

Havia um buraco na parede. Era tão irreal que a princesa teve que esfregar os olhos pra ver se o que ela estava enxergando, era aquilo mesmo. Mas sim, havia um buraco na parede. O muro de pedra era alto e grosso, construído com a intenção de aguentar ataques massivos contra o castelo. Então como?

Era um buraco bem pequeno, mas era o suficiente para os dois passarem, um de cada vez. Ele foi primeiro, ignorando as perguntas mentais da princesa fugitiva. Logo depois, ela passou também. Os dois saíram na praia particular do Rei. Era um lugar da gigantesca praia do reinado que era reservada só para a Família Real, então não havia ninguém ali naquele momento, mesmo o calor estando irritantemente acima da média.

As duas crianças se dirigiram para o subúrbio da cidade, saindo da praia e ficando bem longe do castelo. A primeira coisa que ele fez foi conseguir uma roupa pra ela. Ele passou em uma casa que tinha as roupas estendidas em um varal bem perto da rua, e arrancou uma calça e uma camisa. Ele disse pra usar a cortina pra cobrir a cabeça até eles saírem da cidade.

Depois que a garota se vestiu sem poder reclamar, ele a levou para a saída oeste da cidade, onde havia um estábulo qualquer. Por mais incrível que pudesse parecer, os guardas andavam tranquilamente, fazendo a patrulha de sempre. Logo, eles ainda não haviam se dado conta do desaparecimento da Princesa ou a notícia ainda não tinha sido repassada.

O garoto entrou no estabelecimento, pagou uma moeda para a pessoa que cuidava do local, e retirou um cavalo de lá. Sem mais demoras, ele arrumou as bolsas do cavalo com as novas mercadorias, montou e puxou a guria com força para cima do cavalo. Ele pediu pra que ela se segurasse, e então eles foram para longe dali.

Os acontecimentos a seguir podem ser resumidos de forma bem simples, mas a conversa que se seguiu quinze minutos depois que os dois saíram da grande capital não pode ser ignorada:

— Qual é o seu nome? — perguntou o garoto, sem olhar para trás. Ela continuava agarrada a ele fortemente, com medo de cair do cavalo. Os dois cavalgam em uma velocidade média, mas era a primeira vez dela em cima de um cavalo e não tinha como esconder o medo. Na Família Real, as aulas de cavalgada só se iniciavam aos quinze anos. Ela não sabia o porquê.

Eliza Rildegard VIII.

— Mude. — respondeu ele, de imediato. — É um nome bonito, mas não lhe serve mais. Crie um novo, e que não faça nenhum sentido com o seu antigo. Não pense em sobrenomes. Você não vai precisar deles.

— E você? Como é seu nome? — perguntou ela, sem nem ao menos começar a pensar em um novo nome pra ela. Ela sabia que não ia conseguir pensar enquanto cavalgava.

— Não tenho.

— Como assim "não tem"? Como os seus pais te chamavam?

— Também não tenho. Sou o que as pessoas chamam de órfão de guerra. Não faço a mínima ideia de como eram meus pais. Vivi toda a minha vida em um orfanato infernal. Pra você ter uma ideia, nós tínhamos números, e não nomes.

Eliza engoliu em seco. Órfãos não eram vistos em sua cidade. Ela não sabia como era ter que viver em um lugar que não era a sua casa, com pessoas que não são de sua família. Só de imaginar, ela já sentia calafrios. Mas talvez ele, diferente dela, tivesse amigos. Mas não era isso que ela queria perguntar agora. Havia outra coisa ainda. Mas primeiro ela tinha que se dirigir a ele de ALGUMA forma:

— Se você não tem nome, como eu vou te chamar?

— Uhm... — ele pensou por alguns segundos antes de se decidir. — A pessoa que me salvou do orfanato disse que não podia revelar o seu nome real, então se apresentou como "San". Pode me chamar assim, já que dessa vez sou eu que estou salvando.

— San... Por que você... — Ela hesitou. Aquilo estava em sua cabeça faz tempo, mas ela precisava saber. Será que perguntar isso diretamente é o certo? Talvez se ela começasse com uma questão mais simples... — Você já matou alguém?

— Já.

Ela se amedrontou. Não pelo fato dele ter respondido "que sim". Mas pelo fato dele responder imediatamente. O garoto quase não tinha lhe demonstrado expressão, então era difícil saber o que ele estava pensando. Ela sabia que isso era bem o estilo dos assassinos. Silenciosos, inexpressivos, mortais. Existia um charme nesse tipo de gente... Se você fosse algum tipo de maluco.

— Então... Por que não me matou?

Ele olhou para trás, tentando olhar nos olhos de Eliza. Não conseguiu, pois a garota estava com a cabeça bem junta a suas próprias costas, temendo cair do cavalo. Ele queria saber se a pergunta tinha sido feita na base da curiosidade ou do medo. Como não tinha como saber, ele simplesmente encheu o peito e respondeu:

— Pra falar a verdade, eu não sei. Quando eu te encarei na cama, meu peito começou a doer forte. Nunca senti isso. Eu fiquei confuso sobre o que fazer, e perdi a vontade de te matar. Mas o mais estranho foi que imediatamente depois que você me disse sobre você, eu quis fazer alguma coisa pra te ajudar, mesmo estando lá pra roubar.

— E seu peito ainda ta doendo?

— Só quando eu olho diretamente pro seu rosto. Mas não é nada sério. Logo eu me acostumo e daí a dor some. Não se preocupe.

Eles cavalgaram por muitas horas. Foram parar em uma cidade a oeste da Capital, que era um ponto de comércio bem estabelecido na região. Eles tiraram a sorte grande quando foram trocar as coisas de Eliza por peças de ouro. Como eles estavam numa cidade diferente, a pessoa que comprou aquilo nunca tinha visto as joias reais. Mas como eram bonitas, tinha oferecido uma grande quantidade de dinheiro.

Isso foi o suficiente pra dar abrigo, comida quente e algumas roupas para os dois. Dessa vez, ela pôde, pela primeira vez na vida, "escolher" a própria roupa que iria vestir. Era o primeiro dia dela como fugitiva e ela já se sentia maravilhosa. Nem aquele sentimento ruim de nunca mais poder ver seu pai ou sua mãe lhe assombrava.

A noite, quando eles estavam se preparando pra dormir em um estabelecimento mediano da cidade, Eliza quis saber mais de San. Ela estava tremendamente cansada e com as costas e o bumbum doendo, mas a curiosidade era maior. Eles estavam no mesmo quarto, mas com camas separadas.

San se deitou com a barriga pra cima e começou a contar algumas histórias dele. E era uma coisa mais sinistra que a outra. Ele já tinha se envolvido com tráfico de armas, fugas de castelos, roubos em armazéns, assassinatos em casas de nobres e em uma batalha contra uma guilda de assassinos. As histórias dele pareciam piadas para Eliza, pois ela ouviu tudo com um sorriso. Claro, ela não estava feliz em ouvir ele dizer coisas como "Então eu esfaqueei aquele miserável duas vezes". Estava feliz de ouvir coisas diferentes, de uma pessoa diferente. E eram coisas que ela QUERIA ouvir. Não pelo conteúdo, claro.

No dia seguinte, San disse que ela precisaria aprender a se defender para poder sobreviver no mundo a fora. Então durante a viagem, ele parou em lugar deserto e a treinou. A ensinou os movimentos básicos da faca e de lutas corpo-a-corpo. Ele disse que precisaria praticar muito ainda, mas que a vontade dela já era um grande diferencial. Foi depois do primeiro treinamento deles que ele perguntou:

— E então... Já pensou em um nome pra você?

— Sim. Eu vou ser "Mana". Só Mana mesmo, sem sobrenome.

— Mana? Não é assim que os Magos Elementares da Academia de Rail chamam a energia mágica que corre em nossos corpos?

— Ei, você sabe disso? — a pergunta dela foi com um grande apelo de impressionismo. Ela tinha passado o dia inteiro pensando naquilo, tendo um certo orgulho de lembrar de seus estudos sobre magia de outros reinos.

— Sim, sei. Precisei estudar algumas coisas pra poder me virar no mundo e por coincidência, eu me envolvi com um mago dessa academia. Mana, não é...

— A Academia de Rail fica no centro norte do mundo e é bem longe daqui, além de não ser um nome comum do Leste ou do Sul. Então acho que ninguém vai pensar que eu sou de lá.

— Sim, sim... Excelente ideia mesmo. Parabéns, Mana.

San e Mana ficaram juntos por exatos 12 dias. Todos os dias, eles viajavam para se afastar ainda mais da Capital, e todos os dias San dava aulas práticas para a garota. Ela aprendia em uma grande velocidade, não necessitando de muito tempo do garoto. Ele não só a ensinou as artes básicas da luta, como também do roubo e do assassinato.

Inicialmente, ela se recusava terminalmente em cometer tais atos, mas isso logo mudou quando a fome começou a bater. Isso tinha sido no sétimo dia. Mana foi tentar fazer o seu primeiro assalto, mas teve um grande azar quando a pessoa que seria assaltada reagiu. A pessoa estava armada com uma faca, e ex princesa foi obrigada a revidar com sua própria faca. Isso acabou em um acidente e a pessoa acabou morta.

Mana teve que se segurar quando viu o sangue quente escorrendo em suas mãos. Ela tinha matado alguém. A mesma faca que foi segurada contra o seu pescoço agora gotejava do sangue de uma outra pessoa desconhecida. Houve um desespero infinito invadindo sua mente e ela quase gritou no meio da noite. San foi rápido o suficiente para lhe tampar a boca e a tirar daquele lugar.

Depois, ele tinha dito que essa era a vida dela de agora em diante, mas ela não quis acreditar. Mas aquele sangue era real. O corpo sem vida no chão sujo também era real. O desespero, a fome, o medo, o suor, a luta. Era tudo real. Ela não estava mais no castelo. Ela tinha escolhido. Não tinha como voltar atrás. Ela lembra muito bem que naquela noite, teve pesadelos terríveis.

E no décimo segundo dia, San tinha simplesmente "sumido". Eles pararam em Betejilse, uma cidade em pé de guerra muito ao oeste e tinham alugado um quarto pra eles em um estabelecimento bem pobre. Mas quando Mana acordou de manhã, San não estava mais lá. Ela saiu pela procura dele por toda a cidade, mas ele havia desaparecido sem deixar rastros. Pelo menos, ele não tinha levado o dinheiro que eles conseguiram juntos. A única coisa que ele levou foram seus próprios pertences.

Essa foi a segunda vez que Mana chorou tudo o que podia. Ela ainda foi esperançosa e decidiu esperar por ele por mais um dia. Talvez ele tenha só ido fazer um "trabalho" e logo estaria de volta.

Um dia se passou, e nada. Outro dia. E depois outro. Mana já não podia ficar naquela cidade pra não levantar suspeitas, então ela arrumou suas coisas e continuou seguindo para o oeste. Com raiva, se sentindo abandonada pela única pessoa que ela poderia ter chamado de "amigo". Mas ela não o amaldiçoou. Ela não queria voltar a ser aquela garota frágil e dependente que era antes. Agora ela não era mais a Eliza. A princesa morreu. Agora ela era Mana. Ela teria que fazer outra coisa. Teria que viver sua própria vida e criar a sua própria história.

E foi assim que a história da Capitã do Setor das Sombras da Guilda Mercenária Dead Blade começou. A história da mulher que ficou conhecida mais tarde como "Lâmina Sanguinária". A história da Assassina Mana.