-O que é isso?- pergunta Martim.
-Isso, meu amigo - digo, erguendo a garrafa -, é o que vai nos levar de volta à vida.
-E à Julie - caçoa Felix.
Franzo as sobrancelhas e divido a bebida azul em três copos. Cada um pega um e Felix pergunta:
-O que vai acontecer depois?
-Eu não sei, talvez sei lá, a gente respire, sinta fome, sono... essas coisas que a Julie vive fazendo.
-Voltar para a Julie, fazer as coisas que a Julie faz... - suspira Martim, deslizando o dedo pelo copo. - Você gosta mesmo dessa garota.
-Cala a boca e bebe essa porcaria - rujo, dando um gole.
Todos bebemos, e o mundo gira, dando uma guinada violenta. Me forço a fechar os olhos para afastar a tontura. Quando consigo me estabilizar, meu nariz e garganta queimam e a luz que entra pela janela do pequeno quarto me incomoda.
-É assim que é estar vivo? - pergunta Martim. - Faz trinta anos que não me sentia assim.
-Porque faz trinta anos que não estávamos mais vivos - diz Felix. - O que vamos fazer agora?
-Eu não sei vocês, mas vou procurar a Julie.
-Vamos procurá-la então -dizem os dois em coro.
Começamos pela escola. Ela ainda está no Pandora, então basta que nos escondamos e esperemos. Às onze em ponto, ela sai, usando capuz preto, fones de ouvido, mochila nas mãos e levando o violão nas costas.
-Ela tá... diferente - diz Martim.
-Ela tá mal - corrijo. - E eu vou descobrir porque.
A seguimos até a casa dela, e ela se tranca na edícula. Faço menção de atravessar a porta, mas Felix me segura.
-Ei, ei, ei. Não é mais fantasma, lembra?
-O que eu faço agora, hein?
-Felix? Daniel? - chama alguém. Pedrinho. Nos viramos para ele. - Vocês voltaram!
Ele corre até nós e diz:
-Vão ficar para sempre?
-A gente até que gostaria - digo. - Mas é só uma passada rápida.
-É melhor irem embora - ele alerta, temeroso. - A Julie não vai gostar de vê-los aqui. -Ele hesita mais um instante e diz: - Antes de irem, será que podem ler este livro? É importante.
Ele me entrega um caderno preto comum, mas na contra-capa tem o nome de Julie. É o diário dela. Pedrinho está com cara de culpado, e pede com os olhos para sairmos. Andamos um pouco até que Felix anuncia:
-Não temos dinheiro nem lugar para dormir, já perceberam isso?
-É claro que já -solto, irritado.- Mas tenho uma ideia.
Disparo em direção à loja do Klaus, que ainda está aberta.
-Daniel! - ele exclama. - O que fazem aqui? Vocês estão diferentes rapazes.
-Estamos vivos, e esse é o problema.
-Deixa ver,não têm emprego, casa ou dinheiro, certo? - assentimos. - Podem ficar com os fundos da loja.
-Sério mesmo? - pergunta Martim, ele assente. - Valeu!
-Ah, e quanto ao emprego, a loja abre às sete.
O ajudamos a fechar. Depois, enquanto Martim faz um lanche e Felix toma banho,me deito no sofá para ler o diário.
27 de julho de 2014,
Faz um mês que estou indo à terapeuta e dois desde que a Insólitos acabou. Sinto muita falta deles, muita mesmo. Costumo falar deles como se fossem um só, mas cada um teve seu valor especial para mim. Tenho saudade da responsabilidade extrema do Felix e das piadas do Martim... falta falar de um: Daniel. Todos eles eram meus amigos,mas Daniel era algo mais, tipo um... eu sei lá. Às vezes paro e penso em como seria se tivesse escolhido ele ao invéz de Nicolas. Talvez tivesse sido mais feliz ou talvez ele nunca tivesse partido.
28 de julho de 2014,
A coisa ficou feia. Sei que a Polícia Espectral está em meu encalço, procurando indícios de que eles estiveram aqui, mas não vão achar nada. A capa do vínil da Apolo 81 foi vendida para o Klaus; os cartazes da Insólitos foram para o lixo; até os instrumentos eu limpei! Não há nada aqui que diga: "Fantasmas passaram aqui". Perseguida por fantasmas, apaixonada por um fantasma... Sabe o que me falta? SER uma fantasma. Às vezes acho que seria tão mais fácil assim. Demétrius e seu séquito teriam um motivo para me perseguir, e eu poderia ficar com meus amigos em paz. Me odeio por estar viva.
-Ela quer morrer - balbucio.
-O quê? - Martim pergunta, soando preocupado pela primeira vez em muito tempo.
-"Me odeio por estar viva! - cito.
-Você tem de agir logo - diz Felix -, mas antes, leia mais um pouco, de preferência, algo mais recente.
Folheio um pouco e pouso o dedo em uma pagina qualquer.
12 de outubro de 2014,
Os últimos dias têm sido complicados. Sempre que estou andando na rua e um carro passa, não é só isso que vejo; vejo um oportunidade de morrer, de facilitar as coisas. Cada dia mais, penso em Daniel, em todas as chances que tivemos mas nunca aproveitamos. Okay diário, vou ser franca: eu amo o Daniel e sinto uma falta tremenda dele, mas eu sei que ele não vai voltar, porque ele disse que não voltaria: "Se eu partir, prometo não te procurar depois."
-Pera, ela quer você de volta? - pergunta Martim, confuso de novo.
-Deixe eu confirmar.
24 de outubro de 2014,
Talvez eu não queira Daniel e os outros de volta. Pensar neles não ajuda, só piora a situação. Na semana passada, parei de reservar tempo para relembrar as coisas legais que fizemos juntos, e pude sentir que a Polícia Espectral não estava mais tão vigilante assim. Acho que é porque escolhi esquecê-los. Eu os estou abandonando, deixando-os para trás. Sei que prometi que nunca faria isso, mas adoraria passar para o lado deles, adoraria poder ir com eles, adoraria morrer.
-Esse é o último texto que ela escreveu - fecho o caderno. - É oficial, a garota está com depressão.
Eles ficam em silêncio. Ora, que poderiam dizer ou fazer? Me mandar invadir a casa e conversar com ela? Coloco o diário no bolso interno do casaco e vou me deitar.
POV PEDRINHO
Eu sei que foi errado permitir que eles lessem o diário da minha irmã, mas há tempos tento melhorar o ânimo dela e não consigo. Agora tenho ajuda.
Depois que eles vão embora, vou dar uma olhada na edícula. As luzes estão apagadas, Julie deve ter ido para o quarto. A guitarra e o baixo estão nos cases, a bateria, encaixotada e empilhada num canto. Sei lá, sem os instrumentos, a edícula parece tão grande que chega a ser doloroso ter tanto espaço vago antes ocupado. Quando não aguento mais, saio dali e vou fazer a lição de casa.
Na manhã seguinte, me arrumo para a escola, mas ao passar a frente do quarto de Julie, vejo que ela ainda está dormindo. Toco o pulso dela, não sinto nada.
-Pai! - grito. - Pai!
Droga, ele já saiu para o trabalho. Bia! Preciso ligar para ela.
-Preciso falar com a Bia - digo quando a ligação é atendida.
-Sou eu Pedrinho. O que foi?
-A Julie... Ela não acorda.
-Estou indo aí.
Segundos depois, ela toca a campainha. Abro a porta e subimos para o primeiro andar. Em sua cama, Julie ainda está desacordada. Bia vai até o banheiro conferir se minha irmã tomou os remédios.
-Todos os frascos estão vazios.
-Ela deve ter tomado tudo de uma vez. Ligue para a emergência, eu já volto.
Vou para o quintal e grito:
-Daniel! Felix! Martim!
Nada acontece. "Eles estão vivos, seu idiota", digo a mim mesmo. "Não podem mais aparecer do nada".
Não sei o que fazer, não sei onde procurá-los. De repente, encontro um panfleto da loja de música preferida da Julie, a Kripta. É isso! Corro para dentro e peço que Bia vá à Kripta.
POV BIA
Vou até a loja do Klaus, esperando vê-lo no balcão, mas encontro Martim.
-O que faz aqui? - pergunto, mas me arrependo. - Não interessa. A Julie precisa de ajuda.
-Vou chamar o Felix e o Daniel.
Logo,os três chegam e corremos para a casa da Julie. Pedrinho está no quarto dela, segurando sua mão.
-Martim, você sabe dirigir, não sabe? - ele pergunta. - Vamos pegar o carro.
Com cuidado, conseguimos levantar Julie e descer as escadas com ela. Martim e eu nos sentamos nos bancos da frente no carro e Julie é colocada deitada no colo de Daniel, Pedrinho e Felix.
Chegamos ao hospital e um maquinista nos ajuda a tirá-la do automóvel. Dou a entrada dela no pronto socorro e nós cinco acabamos sentados na sala de espera, sem fazer nada, só sofrendo.
O médico logo volta e todos nos levantamos.
-E então? - diz Daniel.