–Overdose medicamentosa - ele respondeu secamente, ignorando a expressão preocupada do Daniel. - Irá acordar em breve.
Daniel vira-se para Pedrinho e diz algo em voz baixa. Finalmente, Pedrinho e eu conseguimos ajuda para curar a depressão de Julie. Na escola, eu tentei puxar conversa com ela todos os dias, mas ela me ignorava. No fundo mesmo, eu sabia que não ia conseguir, que só Daniel podia.
Martim me chama para conversar, os nervos de ninguém estão bons para silêncio hoje. Ele me conta que estão morando e trabalhando com Klaus e voltaram à vida por meio de um drinque que encontraram em um bar de fantasmas.
–Então você finalmente vai poder comer bolo de chocolate de novo?
–É - ele sorri amarelo. - Quem sabe um dia nós podemos comer bolo juntos.
–É, quem sabe.
Por mais que goste de bolo e do Martim, não consigo pensar nisso agora, e pelo visto, nem ele. Daniel para de falar com Pedrinho e se vira para mim.
–Quando foi a última vez que falou com a Julie? - pergunta ele.
–No camarim da Kripta, antes do último show. Porquê?
–Pedrinho me emprestou o diário dela e em momento nenhum, ela escreveu sobre você.Vocês brigaram?
–Não exatamente. Depois que foram embora, ela parou de falar com todo mundo, mas eu insisti, até que Raul me disse para deixá-la em paz.
Uma enfermeira vem nos dizer que dois de nós podem ver Julie agora. Por unanimidade, decidimos que eu e Daniel iremos e Martim e Félix levarão Pedrinho para casa.
Julie está na cama, deitada, e seus olhos não param. Não focalizará bem enquanto estiver chapada. Daniel se senta no pequeno sofá do quarto enquanto me ajoelho ao lado da cama.
–Oi - digo, esperando uma resposta.
POV DANIEL
–Oi - Julie responde, hesitante. - Cadê... cadê... - ela vai me chamar, ela vai dizer o meu nome. - Onde está o meu irmão?
–Em casa. Ele queria estar aqui, mas...
Ela espera de novo uma resposta, mas o quarto fica quieto. A cada movimento mínimo, sinto que Julie vai me ver, gritar e me expulsar, mas o silêncio continua, até que Julie diz:
–Você viu o Félix, o Martim ou o Daniel por aí?
Bia se vira para mim, perguntando com os olhos se responde sim ou não. Faço um positivo com a mão.
–Você quer falar com eles?
–Sim, com o Daniel - meu rosto se ilumina. - Mas pede para ele esperar até meu pai saber o que fiz e me deixar de castigo. Assim que a punição acabar, eu me encontro com ele.
–Porque esperar tanto? - Bia claramente está a meu favor.
–Eu não estou bem Bia. Preciso de drogas para comer, dormir e ir à escola. Não quero que ele me veja assim.
–Já pensou que ele pode querer te ajudar? - Julie vira o rosto. - Tudo bem. Descansa tá?
Saimos do quarto e na recepção, passamos por Raul, que por sorte não nos nota. Vou para o galpão nos fundos da Kripta, onde Martim e Félix me esperam.
–A gente precisa conversar - diz ele.
–Sobre...
–Lembra daquela vez em que a gente ouviu a consulta da Julie com a cartomante que disse que o primeiro namorado dela seria alguém que devolveria algo que ela nem sabia que tinha perdido? - pergunta Martim.
–Nunca me arrependi tanto de ouvir uma conversa na vida. O que tem?
–Sabe qual foi o seu erro?Ter forçado o JP a dar o colar para ela.
–Eu não fiz isso - protesto.
–Fez sim - Félix se intromete. -Jogou o colar que tinha o nome dela na frente dele só para dar desculpas que foi ele não você. Talvez se não tivesse feito isso, as coisas corressem normalmente e você devolveria algo para ela.
–Mas não foi e eu fiz o que fiz, então me deixem em paz, está bem? Ela não quer me ver mais.
–Só está mentindo para si mesmo, sabia? - diz Martim.- A Bia nos contou o que a Julie falou no hospital.Ela quer se curar da depressão por completo antes de falar com você de novo, e vale lembrar que ela não perguntou por mim ou por ele, só por você. Ela te ama, aceite isso.
De verdade, eu quero ser correspondido por ela, e não entendo porque hesito tanto. Então decido ligar para Pedrinho e perguntar se Raul deixou Julie de castigo e quando vai acabar.
–Nada demais - diz-me ele.- Ela está apresentando melhora no humor - graças a Deus-, então papai não teve coragem de puni-la, visto que pela primeira vez ela tem vontade de se curar. Arriscaria dizer que ela até aceitaria se vocês aparecessem aqui agora, mas meu pai está em casa.
–Quando ele sai?
–Não vai ser tão cedo, mas se quiser vir, posso ajudar a pular o muro e vocês ficam na edícula. Ninguém irá suspeitar.
–Daqui cinco segundos estarei na porta.
–Até logo,então.
Confiro meu reflexo no espelho e saio, sem dizer quando volto, mas é claro que eles não se importam. Na porta da frente há um recado com o código que inventamos. "Insol. D. G". É o meu código. Pego o bilhete e o abro. Por sorte, Pedrinho decodificou o conteúdo dele também. "Tem uma escada encostada no muro. Julie avisada. Quarto. Cuidado"
POV JULIE
–Julie - diz meu pai pela nona vez.
Eu ainda espero que Daniel chegue, mas desço e encontro na sala várias malas feitas e meu pai, Heloisa e Pedrinho estão esperando por mim.
–Aqui está a carta de emancipação -diz Heloisa.-Tem dinheiro nas gavetas lá de cima, e nós vamos mandar mais na semana que vem. Se cuida, tá?
–Eu vou ficar bem. Tchau pai, tchau Pedrinho.
Me abaixo para beijar meu irmão, e ele puxa meu ouvido para seus lábios e sussurra:
–Nunca mais deixe o Daniel escapar. E se ele te magoar, basta me ligar que vou matá-lo.
Rio da fofura dele. De soslaio, vejo que Daniel já pulou o muro da frente e espia pela janela, sorrindo. Com discrição, faço um gesto com dois dedos, que no nosso código significa "corre e vai para a edícula". Espero até que o táxi venha buscá-los, tranco a porta da frente e corro para os fundos. Daniel já entrou, e está sentado no futton, olhando para os instrumentos encaixotados.
–Porque guardou essas coisas? Podia ter jogado fora ou vendido, como fez com os cartazes e a capa do vínil.
–Como você sabe que eu fiz isso?
–Li o seu diário -ele abaixa a cabeça e me estende meu diário de capa preta, que eu não encontrava desde o dia anterior à overdose.-Está brava?
–Feliz demais para isso, na verdade.
Sento-me ao lado dele e ele passa o braço pelo meu ombro. Quanto tempo eu esperei por isso? Muito. Viro-me para seu rosto, tentando gravar na memória sua aparência, que não mudou muito, só que seus olhos são castanhos como os meus e não há mais olheiras. Sua pele tem o mesmo tom pálido doentio de sempre, mas isso combina com seus dedos finos de guitarrista. Ele também me fita, talvez procurando alguma mudança.
–Posso lhe assegurar que não mudei em nada -digo solenemente. -Já você..
–Hã Julie, vim aqui pra conversar sobre antes. Tudo bem para você?
–Tudo,mas eu quero começar com as perguntas. Foi você quem fez o JP me devolver o colar?
–Foi -ele suspira de arrependimento. - Eu não devia ter feito isso, desculpe. Minha vez? -Assinto.- Quando você nos salvou do seu professor maluco, me perguntou se eu não tinha achado nada seu. Isso porque a cartomante disse que seu namorado te devolveria alguma coisa. Você queria que nós...
–Sim, eu queria. E não pense que não ouvi quando disse: "Nunca daria certo, eu com a Julie". -Ele cora.- Dormiria aqui hoje?
–E o seu pai?
– Ele se mudou com a Heloisa e o Pedrinho para o Canadá. Sou emancipada agora. Podemos formar uma nova banda, podemos tentar tudo de novo!
–Aceito o convite -ele sorri. - Com uma condição.
–Reunião de banda? - advinho e ele assente. -Vá buscá-los enquanto monto as coisas. Leve a chave -jogo o molho para ele.
Ele sai e desencaixoto a bateria. Termino e coloco o baixo e a guitarra para funcionar. Estou colocando o microfone no pedestal quando ouço:
–Ah, não vai não.
Então algo me atinge na cabeça e tudo fica preto.
POV DANIEL
Encontro Martim e Félix na porta da loja e saimos correndo de volta. Mas Julie não está em nenhum lugar da casa nem na edícula. O microfone está caído no chão e no pedestal há um pequeno bilhete fixado.
"Dou a vocês doze horas. Venham todos ou sua amiga morre"
–Fantasmas podem matar? - pergunta Felix.
–Ao que parece, podem. Onde diabos temos de ir?
–Acho que sei - Martim pega outro bilhete. - É esse endereço.
Pelo canto do olho, vejo outro papel cair, mas não deve ser nada importante. Vamos até o lugar indicado, mas está vazio. Uma risada ressoa. Isso tudo é um ardil.
–Hoje é meu dia de sorte- diz Demetrius. - Primeiro a viva, depois vocês.
–Cadê a Julie? - Martim pergunta.
–O que você fez com ela? - Félix vocifera em seguida.
Não consigo dizer nada, não consigo fazer nada. Ele a pegou. Não há nada pior que possa acontecer agora. Calmamente, Demetrius aperta um pequeno botão, que liga um televisor. A imagem mostra Julie amarrada e gritando por socorro. Por Martim, por Félix, por mim.
–Cadê ela? - Martim insiste.
–Ela não está aqui, caso não tenham percebido - ele ri sarcásticamente. -Espere só quando ela souber que as pessoas em quem mais confia a abandonaram no momento em que mais precisava!
–O quê? - pergunto.
–Vocês estão no prédio errado garotos. E só têm mais cinco horas para chegar ao certo.
O papel que caiu. Provavelmente é lá que está o endereço certo.Damos as costas para Demetrius e voltamos para a casa da Julie. Procuramos pelo chão inteiro, mas só encontramos uma embalagem de doce.
–É isso - concluo. - Demetrius já acabou com a Julie, porque o que caiu foi o papel de bala.
–FÉLIX! DANIEL! MARTIM! - Bia nos chama. - Eu achei! Eu achei a Julie!
Corremos até ela e perguntamos onde Julie está.
–Num lugar chamado "SPE".
–Sede da polícia espectral - diz Félix. - Ele levou a Julie para a polícia dos fantasmas? Que sentido tem isso?
–Uma armadilha - diz Bia. -Ele provavelmente descobriu como vocês voltaram à vida e quer matá-los de novo.
–Isso não faz sentido - digo. - Ele só veio nos procurar porque pegou a Julie. O que quer que seja, tem a ver só com ela.
–E o que seria?
–É isso que temos de descobrir.
POV JULIE
–Porque você não me diz uma coisa? - pergunta Demetrius, tirando as cordas de meus pulsos. - Quando descobriu seu poder?
–Hã? Do que você está falando?
–Humana tola. Você é o ser mais poderoso de todos os universos e não sabe?
–Não, não sei.
–Pois muito bem. Vamos ver se lembra de alguma coisa quando Daniel chegar aqui, se é que ele vem atrás de você.
–O que você fez com o Daniel?
–Engraçado que eles me fizeram a mesma pergunta e sabe o que eu disse? Eu respondi que você estava esperando que eles viessem buscá-la - ele confere o relógio. - Mas ao que parece, não vêm. Certo,Julie. Se não quer falar, posso esperar mais quatro horas e meia. Antes de te matar e matá-los em seguida.
–Peraí,você NÃO PODE MATÁ-LOS!
–Poder, eu posso sua tolinha.
–Eles já estão mortos!
–Santa ignomínia! - ele exclama, jogando as mãos para o alto. - Você é burra mesmo, não é? Seus amigos não te contaram sobre o coquetel ilegal que encontraram? Não importa. A esta hora a polícia espectral já os pegou e não há nada que possa fazer. A não ser, é claro...
–O quê?
–Que você me dê sua alma.