Himitsu

Dias melhores


Pela manhã fiquei observando o armário a esperar que a menina aparecesse, não sei ao certo se por ela parecer com a Andy, mas algo me fazia querer vê-la novamente. Tia Addy me disse que sou muito criativo e que foi tudo minha imaginação, mas eu acredito que ela realmente apareceu para mim, e com algum intuito.

Levantei-me após finalmente ver que nada aconteceria, tomei um longo banho e me arrumei para meu primeiro dia na nova escola, eu iria estudar na mesma turma que Leon, então pelo menos não me sentiria sozinho, que é o que normalmente acontece quando um aluno chega em meio de ano.

Ainda era muito cedo para dizer que estava começando a me acostumar de não ter mamãe e Andy por perto, mas acho que já estava...

Desci as escadas e virei à esquerda em direção a cozinha, tia Addy havia preparado uma mesa bem farta, com diversas coisas que eu adorava comer, sentei-me em silencio e comecei a abocanhar aquelas delicias sem sequer perceber que estava sendo observado por titia com uma expressão nada amigável.

–Você não tem modos? Não espera pelos outros para comer?

Puxou as comidas para longe de mim.

–Sinto muito, eu não jantei ontem por ter dormido muito cedo e... Acabei ficando com muita fome!

–Tudo bem, deixarei essa passar – me devolveu o prato – mas coma depressa, pois seu tio também não gosta disso, e ele ficara mais nervoso que eu.

Ela era realmente uma boa mulher, estava feliz por não ter ido parar em um orfanato, que é onde eu esperava ser deixado, mas aparentemente estava enganado sobre eles.

Leon entrou na cozinha e atacou a mesa sem falar com ninguém, assim como eu havia feito.

–O que aconteceu com essa família? Ninguém mais tem modos?!

Tia Addy vestia um avental por cima de seu vestido xadrez, era uma roupa típica de dona de casa do subúrbio, pensando bem... É onde eu estava agora.

Comecei a olhar para o uniforme que eu e Leon estávamos usando, percebi que eu já havia visto aquele uniforme antes.

–Há quanto tempo você estuda na Jenson, Leon?

–Desde que me lembro.

–Isso é um bom tempo...

–Sim, é um bom tempo – ele sorriu.

–Tem bastante gente legal lá?

–Eu tenho alguns amigos que vão gostar de você.

–Espero que seja tudo diferente aqui, nunca tive amigos nas minhas antigas escolas.

–Bom, aqui você já tem pelo menos um.

Senti que meus olhos se encheram de lagrimas, e diria que poderia ter chorado se a campainha não houvesse tocado.

–Richard querido, vá ver quem é.

Richard acabara de aparecer na porta da cozinha ainda de pijamas e nem se quer entrou, deu meia volta e subiu as escadas.

–O que tem de errado com esse menino? Richard!

–Pode deixar que eu abro mãe - Falou Leon já saindo da cozinha.

Tia Addy não parava quieta, lavava louça, passava pano, cozinhava.

–Não é um pouco cedo para preparar o almoço?

–Nunca se é cedo para nada querido.

Solitário ali na cozinha e já satisfeito me perdi no olhar enquanto Leon não voltava. A cozinha era grande e moderna, tinha um balcão de mármore e armários bem altos, em cima do armário estava a menina da noite passada usando um vestido encardido e sorrindo enquanto ameaçava pular.

–Tia! Olha ela!

Quando olhei novamente havia desaparecido.

–O que?!

–Ela pulou?

–Quem pulou menino?

Não podia causar mais problemas, então inventei uma desculpa:

–Pensei ter visto uma barata em cima do armário.

–E precisava gritar?! Quer dizer... Leon! Quem era?

–Eu acho que é o Pai do Charlie.

–Meu pai?

Nunca conheci meu pai, minha mãe tinha um namorado, o pai da Andy , mas ele havia se separado dela a três anos e acho que não sabia sobre nada que havia acontecido.

–Ritashi se eu não me engano é o nome dele...

–É o pai da Andy.

–Com um nome desses não tem como confundir... –Tia Addy desligou o fogão – Precisava mesmo falar com ele.

Saiu da cozinha cabisbaixa.

–Eu vou buscar minha mala Charlie, quer que eu pegue a sua também?

–Quero sim.

Leon correu escada à cima.

–Desculpe por ontem Derek.

A garota estava sentada sobre o fogão ainda quente, com as pernas cruzadas.

–Eu me chamo Charlie!

–Porque você me trancou no closet ontem?

–Você invadiu meu quarto, o que esperava, um chá?

–Eu não invadi nada Derek, quem invadiu foi você, pois aquele quarto é meu.

–Já te disse que me chamo Charlie!

–Não entendo, você é idêntico ao Derek... Tudo bem que fazem oitenta anos que ele não vem me visitar mas...

–Oitenta anos? Quantos anos você tem?

–Treze, a cento e dez anos, cento e onze semana que vem.

–Isso não faz sentido.

–Nada tem de fazer sentido após a... – Emudeceu de repente. -Ninguém abria meu closet há algum tempo.

– Por que mudou de assunto?

–Não gosto de lembrar.

–Lembrar de que?

–Se eu te contar, estarei lembrando!

Leon entrou na cozinha e colocou as mochilas sobre a mesa.

–Sua mochila está pesada, é bom você deixar os livros no seu armário hoje.

Permaneci estático enquanto Leon ia até o fogão, pegou um pedaço do bolo que estava esfriando sobre ele e sentou-se novamente.

–Esqueci uma coisa! - Correu até a porta da cozinha - Já volto!- subiu as escadas.

–Eles não podem me ver, mas você por alguma razão sim, Derek.

O sorriso da garota era assustadoramente idêntico ao modo que Andy sorria, meio torto, mas adorável.

–Meninos a piruá!

Tia Addy gritou da porta de entrada.

–Tenho tanta coisa pra te perguntar.

–Eu vou estar no closet quando você voltar, eu prometo.

–Porque no closet?

–Eu simplesmente gosto de lá!

–Bem... Tenho que ir.

–Certo, mas volte antes do por do sol.

Peguei minha mochila e a de Leon depois corri para a porta onde dei de frente ao pai de Andy conversando com tia Addy. “Antes do por do sol?”

–Garotão! Quanto tempo, depois quero falar com você ok?

Ele parecia triste, mas tentava disfarçar falando comigo em um tom alegre, fiz um sinal de positivo enquanto corria té a pirua que businava. Leon já estava esperando na porta , entreguei a ele sua mochila e entrei na pirua rapidamente, me deparei com a motorista, ela era morena, tinha um cabelo curto e era meio “cheinha”, estava usando um macacão rosa e uma camisa azul e xadrez, tinha uma cara de raivosa, ou pelo menos tentava faze-la, pois por ser cheinha ficava um pouco comico.

–Você é o Charlie?

–Sim senhora.

–Só não vou reclamar da sua demora pois é o seu primeiro dia, mas amanhã é bom ir mais de pressa! Nós temos horários sabia?!

–Me desculpe por isso, prometo não demorar amanhã.

–E nem depois...

Sentei-me ao lado de Leon, que me havia guardado um lugar, eramos quase os ultimos a entrar na pirua, pois moravamos perto da escola, mas tia addy não nos deixava ir para a escola andando, e obvio que nós não reclamavamos disso.

–Seus amigos não vão de pirua?

–Quase ninguém vai, seus pais os levam.

Senti um tom triste na resposta de meu primo, como se tivesse inveja de seus amigos.

–O que você havia esquecido?

–Bem... É meio vergonhoso.

–Eu sou seu amigo não sou? E também, eu prometo não contar pra ninguém.

Ele tirou algo de dentro de sua mochila, um ursinho de pelúcia rosado e com grandes e brilhantes olhos feitos de botões de retrós.

–O nome dele é Ted. Meu urso da sorte, sem ele não sou ninguém.

–Isso é meio estranho para um menino de sua idade.

–Quantos anos você tem mesmo Charlie?

–Dezesseis.

–Igual a mim.

–A Andy tinha um bichinho de pelúcia da sorte, mas ela tinha 11 anos...

–Mesmo assim, você prometeu não contar a ninguém!

–E não vou.

–É bom mesmo! –Leon olhou pela janela – Chegamos.

A escola era muito bonita, mas não pude admirar muito, pois estávamos em cima da hora por culpa de meu atraso.

Entramos na sala de aula correndo e nos sentamos, no mesmo momento entrou a professora, uma mulher alta de cabelos loiros, vestindo um jaleco branco.

–Ela parece mais uma médica do que uma professora- Comentei com Leon.

–Ela é professora de química.

–É por isso...

–Olá classe, como passaram as férias? Espero que tenham descansado, pois temos muito a fazer!

Ela sentou-se em sua cadeira, abriu o diário de chamada e tornou a levantar-se.

–Parece que temos um aluno novo. Charlie?

Levantei a mão discretamente.

–Sou eu.

–Espero que não seja um desordeiro como seu primo...

Leon era um ”desordeiro”? Ele parecia ser uma pessoa tão quieta em casa!

–Vocês devem morrer... Todos vocês vão queimar – Ouvi como um sussurro.

–Leon, você ouviu isso?

–Ela exagerou, eu não sou um “desordeiro”.

–Não estou falando dela, essa voz?

–Voz? Que voz?

–Devia imaginar que o senhor é um falador. – Olhei novamente para frente e a professora estava lá.

–Desculpe, mas como a senhora se chama?

–Christina.

–Srtª Christina, acho que deveria tomar seus remedinhos para estresse antes de dar aula.

–Então o senhor está querendo ir parar na direção logo em seu primeiro dia?

–Na verdade não seria algo novo, já que fui expulso na outra escola.

Tudo aquilo não passava de uma grande mentira, só estava querendo impressionar o Leon.

–Ele esta brincando – Disse ele com um sorriso amarelo.

–Não gosto nada de brincadeiras.

–É melhor maneirar, pois é seu primeiro dia – Cochichou ele.

–Me desculpe, pode seguir com a aula.

No decorrer da aula todos ficaram cochichando, imagino que sobre mim, mas então comecei a pensar no porque eu fiz aquilo, não era como eu normalmente fazia, mesmo com a desculpa de impressionar o Leon, impressionar daquela maneira? Devia estar enlouquecendo com tudo que havia ocorrido recentemente...

Quando o sinal da troca de aula soou, pude conversar melhor com Leon e também conheci os tais amigos dele.

–Esse é o Thalles, ele entrou na escola um mês depois que as aulas começaram também.

–Fala...

O Thalles tinha um rosto empipocado de espinhas usava uma calça jeans que não fazia parte do uniforme da escola, seus cabelos pretos eram bagunçados, meio arrepiados meio jogados, a franja dele era parecida com a do Leon, mais ele tinha o cabelo totalmente baixo.

–Você ta morando por aqui agora?

–To sim...

–Ele ta morando lá em casa.

–O Leon falou que sua irmã morreu atropelada, conta ai como foi. Tinha muito sangue?– Falou um garoto que se aproximava, ele tinha um cabelo loiro com luzes brancas, curto e arrepiado, usava uma blusa vermelha que também não fazia parte do uniforme.

–Não gosto de falar disso.

–Conta ai vai – insistiu ele.

–Deixa o moleque em paz Cainã! – Disso outro menino que se aproximou, esse tinha a pele escura, bem pra lá do moreno, um cabelo enrolado bem curto e era meio gordinho, o único deles fora o Leon que usava o uniforme completo. – Eu me chamo Johnny.

–Fala ai, que tipo de nome é Cainã?

–Não zoa meu nome não em!

–Acho que é indígena...

–Achei cômico você debatendo com a Christina, ela quase perdeu a linha e te mandou pra direção – O Thalles parecia um cara legal.

–Vocês vão morrer, todos vocês vão morrer queimados – Ouvi o sussurro novamente, parecia estar vindo da mala do Leon.

Todos nós estávamos sentados no muro que ficava no fundo da sala e em baixo da janela que dava para a quadra.

–Hoje, aquele que vê morrera – Insistia o sussurro.

–Leon, eu estou ouvindo uma voz vinda da sua mochila.

–Uma voz? Não tem nada lá! Quer dizer, só tem aquilo...

–Ele fala?

E você já viu um urso de pelúcia que fala?

–Sei lá, pode ser aqueles que falam quando aperta, ai podia estar apertando sozinho.

–Não, ele não fala mesmo.

–O que não fala? – Perguntou Johnny que tinha acabado de descer do muro e se colocando em nossa frente.

–Nada, mas o professor já chegou – Leon desceu do muro e eu também, então fomos nos sentar.

Aparentemente sentávamos todos uns ao lado dos outros, como se formássemos um bolinho, ou melhor, as populares “panelinhas”. O dia foi passando, e fui me apegando àquela turma, pouco a pouco os conhecendo, a única coisa que me incomodava era aquele insistente e ameaçador sussurro.