Lembro-me de ter sentido uma dor indescritível, como se minha barriga estivesse sendo aberta sem anestesia. Depois uma sensação de que estava voando, viajando nos mais profundos pensamentos da humanidade. Isso durou uns longos minutos, até meu corpo liberou MUITAS endorfinas. Sentia-me relaxada, meus ossos descansaram. Estava sendo massageada de maneira voluptuosa.

Eu achava que nunca mais sentiria aquilo... Parecia... Real...

Mas essas coisas não passavam de meras sensações. Coisas que em um instante foram e voltaram. Por isso foi tão cruel quando acordei, sobressaltada. Imediatamente olhei em volta, tentando saber onde estava. Era uma sala de cirurgias. Dava para perceber isso pelas bolsas de anestesia espalhadas encima de uma pequena mesa. Gavetas abertas e fechadas, dispostas em alguns armários nas paredes. E as fortes luzes que iluminavam minha barriga. Só então senti o colchão nada macio da maca sobre a qual eu estava. Haviam aproximadamente três ou quatro - não recordo-me com exatidão - médicos com aquelas máscaras no rosto, olhando para mim como se dissessem "PRÓXIMA!".

Uma pontada de dor arrepiou minhas costas quando tentei falar, mas não era aquela dor que você sente após dias de trabalho. Era uma dor que rasgava-me ao meio. Eu sentia que estava ficando sem a coluna vertebral. Nesse momento, um dos médicos falou.

— Marcela, an, Philliams? - perguntou. Sua voz era grossa e tocante, com um tom carregado de sabedoria. Eu não vi quem falara, mas a voz veio de detrás dos outros médicos que estavam ali.

— Eu... - consegui gemer.

— Ah! - então ele apareceu, sem máscara.

Para um médico, ele era novo. Eu lhe daria vinte e oito anos. Ele era alto, levemente magro e um olhar de "eu estava lá quando o primeiro átomo ganhou vida". Tinha íris castanhas, com leves tons de marrom. O cabelo preto estava preso em uma... Toca? Sim ele, assim como todos ali, usavam uma toca verde-azul. Assim que chegou fez uma leve expressão de espanto, como se eu fosse um ser que não podia estar vivo. Ele pareceu notar meu olhar confuso e perdido, pois logo disfarçou; só não sei o que ele disfarçou.

— Marcela, como vai! - cumprimentou, assim que chegou perto da minha maca, e em um tom que faria qualquer um pensar que éramos velhos conhecidos.

— Não sei - falei.

— Entendo... bem... vejamos... - ele pegou um pequeno bloco de notas do nada e começou a rabiscá-lo. Logo ergueu os olhos para os cirurgiões; - Vocês estão dispensados.

Um a um, eles saíram, relutantemente. Não olhei para eles; minha atenção estava em torno do médico que parecia ser o chefe. Assim que o último deles saiu, fechando a porta, o cara introduziu-se.

— Bem, meu nome é Gustavo. Sou um médico cirurgião, de plantão, enfermeiro, ajudante, chefe, vigia, segurança... Bem, várias coisas.

Olhei em seus olhos, atentamente. Não mudaram; continuaram em seus tons castanho-marrom. Por outro lado, seu pulso pareceu ficar mais vívido, alternando entre uma cor mais forte e voltando ao tom de pele normal - levemente achocolatado. Assim que percebeu-me tentando ver se ele era Herói, Vilão ou humano, balançou a cabeça em desaprovação. Olhou-me nos olhos.

— Você já estaria morta se eu fosse Vilão.

— Não sou tão indefesa assim - falei, como se acabasse de ter descoberto isso.

— Você É indefesa, sem energia.

Assim que ele falou energia, lembrei-me do tal zelador-Vilão-terrorista.

— O que aconteceu com PeaceWings? - perguntei, após um breve silêncio tentando recordar o que aconteceu. Nem prestei atenção no que ele falou sobre eu estar sem energia.

— Pó.

A naturalidade com a qual ele falou aquilo me assustou. O tom dele parecia carregado de enigmas, como se bilhões de interpretações pudessem ser retiradas, mas nenhuma fosse a correta.

— Como assim? - consegui gaguejar. Só então notei que a dor nas costas sumira sem deixar vestígios.

— Explodiu, cabum, you loose, game over, psssss... Bum.

Olhei para ele, consternada. Ele apenas deu uma gargalhada jovial e silenciosa, como se risse da minha desconfiança.

— Desculpe, mas não resisti - falou, ainda rindo. - Mas a verdade é que sua escola explodiu, literalmente. Concreto, pessoas, sangue, tijolos e tudo mais: para os ares.

Tentei focar em seu olhos, procurando de onde ele tirara tamanha calma. Sua voz era firme, sem hesitações. Parecia nunca pensar antes de falar, mas sempre falava as coisas certas, de um modo que poderia fazer você acreditar que era um macarrão, mesmo que fosse uma pizza.

— Qual seu nome mesmo? - foi o que consegui perguntar.

— Gustavo.

— Você tem qual poder?

— Raciocínio lógico, aprendizado fácil, memória de elefante... - notei que ele falou essa última frase com um certo desconforto, como se não gostasse de falar isso.

— Bem, Marcela - ele falou, após um pequeno minuto de silêncio -, você está livre. Pode sair à vontade, só tente não morrer.

[...]

Bem... Digamos que uma semana inteira se passou após isso. Uma semana normal, com almoço, lanche, janta e todos os rituais casuais matinais e noturnos. Eu não estava tendo aula, obviamente. Minha escola estava aos pedaços e em reconstrução. Deram um prazo de quinze dias, o que eu achei demasiado rápido, olhando para o fato de que eram só humanos e tals...

A única parte que não era totalmente normal nisso envolvia saídas. John e eu, já que éramos, an, namorados, saíamos quase todos os dias. Sempre conversávamos sobre os assuntos que eram atuais, envolvendo família, casa, dia... Sempre que começávamos um assunto, logo outro surgia, e outro, e outro. Até que já estava na hora de ir para casa.

Para eu ficar brincando com Fernanda... Sinceramente, eu nunca soube de onde diabos tirávamos tanto assunto para conversa. Ou era de um filme, ou novela, televisão, política (este já era mais raro)... Ou até mesmo um novo jogo que estávamos afim de comprar. Havíamos nos aproximado de jogos naquela semana. Eu, sempre que estava com Fernanda, pesquisava sobre jogos e conversávamos. Gostávamos de FPS, guerra, ação e aventura.

— Então, Marcelinha, o que vai fazer? - perguntou-me Fernanda, após um silêncio breve.

— Vou... Não sei, acho que sair com John - falei, estranhando o diminutivo empregado em meu nome.

— Que tal comprar aquele novo console?

— NOVO?! Aquilo existe desde 2001!

— É novo aqui, né... - ela fez uma cara de bunda.

— Bem que é... Ok, vou comprar.

— Com qual dinheiro?

— Mamãe vai ceder - falei, a expressão feliz.

— Vou também, ok?

— Ah, eu quero ir sozinha - falei.

— Mas e se você encontrar Vilões no caminho?

— Eles não são problema...! - falei, com a maior incerteza do mundo.

— Então tá... - Fernanda falou, após ficar alguns segundos me encarando, como se já estivesse ciente de meu futuro.

[...]

17h30...

Tarde ensolarada de sábado em LL. O sol começava a cair ao oeste, sumindo no horizonte, mas de qualquer jeito isso demoraría demoraria . Uma luz alaranjada cobria o céu de nuvens. Crianças brincavam nas ruas, aproveitando suas vidas ao máximo. E eu estava ali, andando na direção do ponto de ônibus. Como estava se aproximando de um dos horários dos ônibus passarem, não demoraria para chegar. Eu pensei isso quando vi meu ônibus chegando. Saltei para dentro, paguei a passagem e sentei-me em um dos bancos na parte de trás.

Olhando para fora, eu via casas brancas e cinzas, pensando na vida... O que eu faria? Simplesmente começaria a trabalhar e diariamente chegaria em casa após um cansativo dia? Tomaria este rumo de vida para sempre? Comecei a pensar em minha mãe e sobre como ela estava as vésperas do meu primeiro dia de aula; lançava-me desafios mascarados e questionamentos que eu havia julgado serem nada comuns, beirando a loucura. Eu a havia ridicularizado, e ela tinha adivinhado. Senti-me de súbito culpada por dar um conceito cego à minha mãe. Ela só tentara proteger-me e tudo que eu fizera foi lançar-lhe palavras como "louca", ou "feiticeira".

Enquanto ria, um homem acordou-me os pensamentos, puxando a sineta e fazendo sinal de parada. Quando menos percebi, estava chegando ao meu destino: uma pequena loja eletrônica que sempre estava atualizada quando o assunto era "games". Ela ficava entre duas outras lojas, mas destacava-se pela cor preta. Como logotipo ela mostrava um controle pegando fogo com o nome "games" ao fundo, misturado com efeitos especiais amarelos e vermelhos. O ônibus parou no seu ponto, o que me acrescentaria dois minutos de caminhada até a loja.

Saindo do ponto, caminhei até a loja. As calçadas estavam levemente preenchidas com as pessoas que iam ou voltavam de seus trabalhos ou casas. A loja, propriamente dita, estava lá, com duas pessoas que saíram quando entrei. As paredes estavam cheias de games, com preços que variavam entre R$300,00 e R$500,00. Notei como estavam baixos. O país devia estar com falta de impostos, pensei. Era uma época boa para o Brasil.

Ok, parei com a política.

Observei meu destino em uma prateleira reservada só para games daquele gênero. Peguei a caixa, leve, e carreguei-a até o caixa.

— Quanto custa? - perguntei.

— R$250,00 - respondeu. Era aquele atendente homem que aparentava ter seus vinte e dois anos, com um boné preto incrustado em detalhes do logo da loja. A camisa amarela e laranja, com o logo mais uma vez fazendo destaque. Não consegui ver a calça, mas deduzi em um jeans azul-forte.

— À vista - falei.

Paguei, recebi a nota e o produto dentro uma sacola com o logo da loja, agradeci e saí, sem mais cerimônias. Eu tinha de troco R$50,00. Decidi comprar um salgado ao passar perto de uma padaria.

Caminhei até o ponto, mas quando cheguei, notei uma presença diferente ali. Dois rapazes de quatorze anos, aproximadamente. Um deles tentava manter acesa uma chama que sobrevivia em sua mão. O outro tentava fazer com que uma nevada de gelo imitasse os movimentos de uma chama, o que resultava em algo bonito.

Decidi que não queria ficar perto deles. Usando os poderes ao ar livre, Vilões poderiam querer chegar perto deles e fazê-los passar para seu lado. Poderiam olhar para mim, ver meu pulso e eu estaria ferrada, por isso atravessei a rua, mantendo-me afastada do ponto. Pelos meus cálculos, haveria um outro ponto de ônibus depois de duas quadras.

Agora, leitor querido, quero que imagine a loucura de uma velha senhora à beira da morte que tenta ao máximo viver para seus netos e filhos, fazendo disso uma tarefa impossível. Ah, mas como a vida é cruel, lançando-nos a certeza de morte após a velhice! É fato que a expectativa de que a qualquer momento você não vai mais respirar é suficiente para acelerar ainda mais a falência. Porque cruel? Porque, de acordo com um velho ditado, a graça da nossa pesada e triste vida é a morte, mas não sua expectativa. Por que digo isso? Porque, asseguro-lhe, que a partir deste ponto nessa história tudo ficará mais triste... Relativamente. Verá as mortes que a droga da vida mandou para assombrar a minha futura velhice! Futura, seguindo, é claro, a cronologia da história que narro.

Talvez esses pensamentos estivessem tentando me fazer ser atropelada ao meio da faixa de pedestres, embora nenhum carro estivesse aproximando-se nem pelo norte ou sul (os dois únicos caminhos possíveis onde eu estava, é claro que excluo a estreita calçada pela qual vim); outro fator que me impedia de morrer atropelada eram os faróis, ambos fechados. Olhando para os lados minha visão focou em um trator que abrigava um cara lendo uma HQ "locona", relaxando ao máximo com as pernas apoiadas sobre a marcha trancada, levantadas para cima. Senti uma pequena vontade de ler sua HQ, mas ignorei o desejo quando olhei para a sacola.

Eu ainda não havia pisado na faixa, congelada por uma súbita sensação de medo, como se de repente um carro fosse explodir, ou coisa do tipo. Ridicularizei esse pensamento com um breve mexer de músculos faciais, enquanto tentava focar minha visão para a velha na minha diagonal direita. Notei que o que iria explodir não era um carro, mas sim minha paciência: a lerda da velha - por favor, não pensem que eu tinha algo contra idosos, pelo amor de Deus! - parecia rir da minha cara ao usar suas energias para andar da maneira mais lerda que conseguia. A coisa que me incomodou naquelas rugas que tentavam rir, foi o olhar que ela me lançou, algo comparado à: "matei sua mãe, sua amiga, sua família e às suas mais futuras queridas pessoas! E você nada pode fazer-me, pois sou idosa!".

Em momento nenhum passou-me pela cabeça que poderia passar na frente dela e seguir meu caminho. Algo me impediu, pois senti que devia segui-la por detrás; foi o que fiz. A travessia durava o que parecia quatro minutos - quatro minutos atravessando a porcaria de uma rua - quando vi a sombra de um caminhão de cimento, que vinha em nossa direção. Calculei que seria morta se não apressasse o passo, mas não foi isso que me matou.

Tenha em mente que eu estava em uma rua um tanto inclinada, sendo que a parte mais funda era onde eu estava. A inclinação contribuiu para que eu ficasse nauseada quando vi o homem no caminhão com um café expresso. Lancei um relance para a frente; a velha ainda seguia seu lerdo passo. O homem no caminhão olhou de maneira desaprovada para o café, jogando-o pela janela. O café caiu exatamente dentro da janela do trator, molhando a barriga do homem com uma água extra-quente.

A velha escolheu esse momento para andar mais rapidamente e só então eu tive a brilhante e nunca-antes-pensada ideia de passar-lhe a frente. A velha estava a um quarto do fim quando cheguei na calçada e comecei a andar para frente. Notei duas felizes crianças brincando de RPG debaixo da sombra de uma loja. Havia um mapa, papéis e um dado com doze lados, as coisas mais estranhas que já tinha visto. Olhei para o resto da rua, vendo-a basicamente vazia, a não ser por uma mulher encostada no corpo de um poste, as crianças, a velha e eu; todo mundo projetando sombras grandes que revelavam o sol, começando aquele velho e repetido movimento para se por. Achei muito inteligente da parte das crianças aproveitar a sombra do poste. "RPG debaixo do poste, no sábado à tarde. Que maravilhoso", pensei.

Meus pensamentos viajaram e eu logo estava pensando no cara no trator e a barriga queimada. Imaginei-o no hospital, raspando a barriga das queimadura de zero virgula cinco grau. De repente eu estava de olhos fixos em uma pequena barata que rapidamente entrou no bueiro perto da calçada. Olhei para trás, para ver se a velha já tinha ido embora; ela não estava mais lá, mas o caminhão do homem com a barriga queimada vinha na direção de um outro poste, este afrente das crianças; o homem no caminhão se debatia violentamente, tentando se ver livre da sensação de queimação. Minhas ideias de trajetórias mixadas à minha imaginação viram o poste caindo sobre as crianças e, imaginando o terrível destino delas, atravessei correndo a rua no momento em que o caminhão maior passava raspando por mim. Na minha corrida, notei que seria atropelada, então joguei-me para a frente, caindo na calçada e colocando um pouco de cuidado para não machucar o videogame. Larguei-o ali, apoiado em uma parede com briófitas morrendo, e corri para as crianças, atravessando a rua mais uma vez. Não reparei que o caminhão maior havia tentado desviar de mim, o que resultou-lhe bater em uma loja com um estrondo de vidro e concreto, somados aos gritos estridentes de uma mulher. Quando cheguei perto das crianças o poste caiu sobre elas, esmagando-as. O crânio de uma delas rachou e então corria um mini-riacho de sangue.

Olhei em volta, assustada e a ponto de chorar. Sentia-me impotente e paralisada pelo medo. Levantei os olhos para a loja onde o caminhão batera; ambos queimavam em um fogo recente e que rapidamente se alastrava. Corri para a loja, tentando não me sentir mais impotente e idiota ao olhar todos morrendo.

As chamas ainda estavam fracas, mas isso duraria pouco; era uma loja de roupas de algodão. Peças rosas e azuis, brilhando em glitter que refletia o tênue brilho do fogo. As paredes estavam pintadas em um branco, com mais roupas à mostra em prateleiras que erguiam-se até a altura próxima ao telhado forrado. Ventiladores tentavam afastar o calor de dias quentes, mas logo enfrentariam um calor maior. A loja era grande, o que contrariava totalmente meus pensamentos. Enquanto andava quase correndo até o balcão, o ar ficava mais rarefeito; encontrei uma dificuldade maior em respirar. Cheguei no balcão arfando, mas logo me controlei. Achei uma mulher agachada e tremendo.

— Quem é você? - perguntou-me gaguejando e falhando a voz.

Não a mandei respostas, só tomei-lhe a mão e voltei a correr. Enquanto voltava para a saída pensei no desperdício que seria ao deixar o dinheiro dela queimar. Tive vontade de voltar, pegar o dinheiro do caixa e tornar a correr; no entanto a saída já mostrava-se em nossa frente, bloqueada por uma parede de fogo; este já lambia as paredes e tomava as roupas, que nada faziam para interferir nos planos do fogo de matar a todos.

Sem saber o que fazer, agi por impulso: uni as mãos, roubei-me um pouco e água e joguei-a na raiz do fogo, que logo se acalmou com uma fumaça. Quando vi a primeira fumaça, vi o resto. Uma fumaça preta e espessa - para um gás, era espessa - que penetrava-nos os pulmões, o que fez com que logo a mulher tossisse. Olhei para ela, de relance.

Ela não parecia ter menos que dezessete anos, com feições finas e a pele branca. O nariz parecia o bico de um corvo, mas não era muito grande. As bochechas eram roliças, o que a deixava, de uma certo modo, fofa. O cabelo era negro, parecendo a riqueza que a mais negra noite poderia trazer, e caiam detrás das costas até a cintura. Era um cabelo bonito, concluí, mas isso não era o maior destaque dela. Ia fixando meu olhar nos dela, mas ela olhou para o chão e arregalou os olhos. Quando olhei para a gasolina que serpenteava até uma pequena chama não pensei duas vezes.

Corremos para fora como o Sonic tendo que ir rápido; atravessei a rua, peguei meu videogame, ao passo que um som ensurdecedor ameaçava estourar-me os tímpanos, tudo misturado ao som de vidro estilhaçando e um grande calor. A explosão empurrou-me de maneira leve o suficiente para desequilibrar-me e quase cair no chão, mas senti a mão fria e trêmula da garota segurar-me pela cintura.

Fitei seus olhos castanho-claros, mas... Não... Eram azuis! Não! Castanho!

Escrevo assim para você entender minha confusão quando derramei-lhe meu olhar preocupado.

— Você está bem? - minha voz falhou levemente, o que a fez soar como um microfone defeituoso.

— Sim... Obrigada por ter me salvado...

— Tá, mas agora tenho de ir.

Ouvi-a gritar "Espera!", mas eu já tinha ido embora. Enquanto andava na rua, na procura de uma outra parada, olhava para o interior daquela loja, com meus pensamentos projetando-se em cima das paredes. Na hora eu não percebi, mas agora eu vi que tinha uma sensação de "já vivi isso antes", como se já tivesse visto aquilo.

Um incomodo correu-me pela espinha quando lembrei-me do sonho em que uma guerra alastrava-se pela cidade. Tentei por na mente que aquele fora nada mais que um sonho, nada relevante, mas, de súbito, aquela árvore verde no pé da calçada pareceu-me familiar e, quando olhei para trás, vi as chamas da loja erguerem-se ao céu, com jatos de água já tentando apagá-las. A única coisa que faltava-me para pirar era a poça de água, mas nada havia além de concreto e folhas verdes caídas.

O sol estava mais perto de se por quando tive, pela primeira vez, a sensação de ter salvado alguém. Reparei que aquela mulher não veria mais o sol por-se, nem os pais, amigos, família ou ninguém no mundo se eu não a tivesse salvado. Por outro lado, aquelas crianças não veriam mais nada, pois suas memorias estariam para sempre perdidas; ou mais do que reveladas se a morte trouxesse um destino de mistérios.

Desatei-me a chorar, pensando no sofrimento dos pais das crianças, vestidas de preto em frente a um cemitério carregado de pessoas a chorar. Todos que amavam as crianças, conscientes e despertas para o fato de que não a veriam, nem mesmo lançariam-lhe abraços, porque estavam mortas. Eu poderia ter impedido, mas...

— Trouxe o bagulho? - Fernanda apareceu na minha frente, de súbito.

— Sim - falei.