– Marcela, já jogou Dota? - perguntou-me William, se esforçando para ser ouvido em meio aos berros dos outros.
– Não; o que é?
– Como você pode não conhecer Dota?! - ele perguntou como se eu não soubesse a coisa mais óbvia do mundo.
– O que é?
– Nada - desistiu, em uma expressão de desapontamento e virando-se para os outros em uma expressão de desdenho: - Ela não conhece Dota!

E arrancou risadas de outros que conheciam o tal elemento. Eram sempre assim, os gamers da sala. Intolerantes, diretos, risadas de escárnio e perguntas óbvias. Agiam de modo suspeito, talvez escondendo algo misterioso relacionado com as três meninas daquele grupo de seis integrantes.

– Ei, o que vai fazer hoje a tarde? - Fernanda arrancou-me dos pensamentos.
– Ficar em casa, de frente à televisão, comendo sorvete de creme em um grande pote branco; assistindo a filmes românticos e sonhando com alguém perfeito - respondi, imaginando se ela referia-se a mim ou a minha mãe.
– O que VOCÊ vai fazer, não a sua mãe - retrucou.
– Não sei... - falei, rindo. - Talvez vou estudar para as avaliações do bimestre que vem após esse.
– Vai estudar à toa, até porque não sabemos os assuntos.
– Foda-se - falei, zero vírgula um por cento irritada por ela não ter achado engraçado o que eu falei.
– "Minina"! Ai, "Chessus"! Você não pode xingar! - ela falou, olhando desdenhosa para mim e pondo a mão no coração, como se estivesse assustada ao estilo patricinha.
– Ok, não faço de novo - tinha um semblante sério, mas, por dentro, tentava não rir.

Enquanto ela falava algo sobre sermões - "é melhor mesmo, se não vou falar para sua mamãe!"; "o que acha que está pensando, hein? Uma menina dessas!" - o professor chegou com uma comitiva de alunas a usar as roupas coladas ao máximo. Tentavam abraçá-lo, talvez fingindo estarem felizes por verem. Eram quatro alunas, todas com cabelos de cores e jeitos diferentes. O professor em si usava uma camisa rosa-amarelo, com traços de um personagem famoso rabiscado, como um retrato falado feito preguiçosamente. As calças dele eram jeans azul-fraco, o que o deixava com uma bela combinação de roupa, ao meu ver. O cabelo estava penteado no estilo "lambida de vaca"; Fernanda murmurou uma piada sobre isso e eu ri.

E ele era alto; tipo, dois metros. Quando o vi pela primeira vez Fernanda perguntara-lhe sobre o porquê dele ter desmaiado por causa de uma simples pedra na sua luta contra Davi. Ele riu e falou algo que arrancou-nos mais risadas:

– Contrato de ouro.

No geral era simpático, até quando se cansava das conversas dos alunos, mixadas ao barulho das classes próximas:

– SIIIILEEEEENCIOOOOOOO! - quando gritava sua voz saia grossa e, aparentemente, NADA forçada. Ele poderia gritar um bilhão de vezes mais alto que não sentiria dores. Era mais ou menos essa a impressão que sua voz trazia.

A turma calou-se. Uma das meninas desenhara no quadro todas as informações necessárias para anotarmos no caderno: data, hora, dia, localização, coordenadas, nome do professor, matéria, cep da sala, certificado e uma outra informação na qual não prestei atenção.

A aula seguiu-se em ritmo normal, com o professor a falar e alunos a conversar baixinho. O real problema era quando alguém usava um tom alto demais, pois o professor repetia o grito e mandava todos fazerem uma questão que exigia cálculo demais. As dores de cabeça vinham quando ele falava que tudo estava certo, menos o resultado. Tínhamos que refazer tudo para trocar o sinal.

Assim que a aula acabou me dirigi até Fernanda, que estivera admiriando os prêmios de plástico na junção entre um corredor e outro.

– O que é Dota?
– Dota é um jogo aí que os nerds gostam - a voz de Maria ressoou-me dos tímpanos e trouxe-me lembranças dolorosas. Ela havia materializado-se ao nosso lado, com os mesmo cabelos de tranças e a pele morena. O fardamento colegial tinha a pura cor branco e vinho, como se estivesse novo. Calculei que estava assim porque era segunda-feira e a lavagem poderia ser recente... E... Tals...
– Malvina! - exclamei, surpresa por estar feliz em vê-la.
– An... É Maria - falou, nervosamente.
– Maria! - corrigi-me e ela fingiu estar jovial com uma pequena risada.

Fernanda a olhou de lado, de maneira desconfiada e incomodada.

– Essa aqui é a Fernanda - falei a Maria. - Ela é minha melhor amiga.
– Prazer - estendeu a mão, pronta para apertar a de Fernanda.

Não sei o que se passou na cabeça de Fernanda, pois ela virou-se de costas e saiu, meio assustada, meio raivosa e apressada.

– Nossa, me desculpe - falei, tentando esconder a vergonha.
– Tudo bem.
– Eu vou indo, depois a gente conversa.

Assim que ia saindo John apareceu, cumprimentando-me em um abraço que estalou minhas costas e aliviou-me COMPLETAMENTE. Fiquei de imediato feliz por vê-lo, o que me ajudou a entender o porquê de Fernanda ter ido embora. Acho que não mencionei, mas Fernanda tinha um ciúme gigante. Odiava olhar-me com John, mas isso piorava quando fazíamos mais que só estar lado a lado...

– An... - Maria pareceu constrangida - Eu acho que vou falar com Fernanda...

Ficou olhando para John, e ele, comigo nos braços, para ela.

– Ainda está aqui? - perguntou ele, amigavelmente.

Ela não pareceu ofendida, mas tentou; deve ter funcionado porque John afrouxou o braço.

– Eu não quis ofendê-la... - falou.
– Você não o fez! - falei, abraçando-o de novo.
– Bem, espero que não.

Apertei-o, aproximando o rosto dele do meu, em um beijo.

– Venha, vamos embora.

[...]

A tarde chegou, como em todos os dias chega. E não importava para onde eu ia após a aula, sempre acabava ao lado de Fernanda, conversando sobre qualquer assunto que se atrevesse a chegar. Fosse sobre moda, fosse sobre o contrário disso. Mantínhamos conversas sempre que silêncio e tédio batiam, e o mais ridículo era que quase sempre a conversa começava com "hoje eu tô com um tédio...".

Não que conversar com Fernanda não fosse legal, longe disso, mas o problema era que às vezes ela tinha ideias de como tirar o tédio, e quase sempre eram ideias tristes, como minha mãe falou em uma certa ocasião. Se bem que essas ideias dela já estavam ficando mais raras, mas, em compensação, eu acreditei que levaria um bom tempo até que ela tivesse uma nova ideia.

Hoje, ela escolhera andar. Andar. Simplesmente sair de casa e ir caminhando até a Burger King, o único local onde íamos. Você deve estar pensando que andar é algo normal e que qualquer ser humano deve manter esse hábito; além de, ao receber raios solares ou receber vitamina D, você praticaria um exercício breve e colocaria as pernas para trabalhar.

Mas a pessoa que julga deve estar consciente de três fatos: Um, eu era totalmente sedentária e amava o repouso confortante que minha casa trazia; Dois, Fernanda não sentia as dores com a mesma facilidade que eu e, além disso, não sentia sede, não transpirava, não fedia a suor, por isso reclamava da péssima ideia que tivera, como sempre fazia quando as ideias dela eram ruins; Terceiro, Burger King fica demasiadamente longe da minha casa, por isso eu já estava cansada até à alma quando cheguei À METADE do caminho!

Além disso ela escolhera descansar somente alguns poucos minutos antes de sair, o que me dava uma dor desviada no ombro e golfadas de dor para minha barriga sempre que eu respirava. O sol mandava seus raios, obviamente, mas eu tinha uma impressão ainda mais óbvia de que eles os mandava mais fortemente do que antes. Talvez os ambientalistas estivessem certos quanto ao efeito estufa. Não que poderia estar aumentando a força do sol, só sei que o suor corria-me pela face a partir de uma nascente nas têmporas.

Estivemos andando por um bom tempo, com o chão batendo em nossos pés cada vez mais forte. Claro que eu já estava cansada, mas algo coisa dizia-me que eu aguentaria mais uns metros. Fernanda, pelo contrário, aguentaria mais uns quilômetros, pois ela parecia ter uns pés de ferro. O irônico era que ela usava um tipo de sapato de areia que, dizendo ela, fazia seu trabalho até bem demais. Não sentia dores e os calos não vinham nos pés. Quando lhe perguntei o porquê dela estar sem dores por causa se um sapato de areia, ela simples disse que não sabia como isso acontecia.

– Só acontece.

Sucedeu que passamos alguns minutos em silêncio, apenas caminhando e esperando que a distração do silêncio fizesse o caminho ficar mais curto.

Em meio à passadas medianas, percorremos os quarteirões da Parte Dois. Viramos esquinas, atravessamos ruas, contornamos prédios e as pessoas recomeçaram a abrir seus estabelecimentos para os negócios da tarde à noite. Restaurantes ligavam seus holofotes que ainda estavam fracos ao sol, lojas de roupas colocavam seus cartazes se desconto, farmácias liberavam a entrada e os carros começaram a passar pelas ruas mais frequentemente. Em algumas casas, rara e aleatoriamente, apareciam idosos com a pele enrugada, sentados em cadeiras de roda e acenando para as pessoas. Nos rostos, sorrisos sem dentes. O sol estava bastante forte, mas à medida que ele chegava mais perto do horizonte oeste, seu brilho atenuava-se, até eu me dar conta do óbvio.

– Fernanda, você se perdeu, né?
– Sim - admitiu, com um ar triste.

Suspirei.

– E agora?
– Vamos perguntar.
– Sim, talvez elas nos falem o caminho certo, não fiquem falando idiotices sem pé nem cabeça!
– Olha a língua, Marcela. Você me respeite!
– Eu te respeito quando merece! Agora não merece mais que um tabefe na cara.
– Talvez EU te dê um tabefe na cara! Vê se acha sua calma, antes que EU perca a minha!
– Calma é uma pinoia! Acha mesmo que eu ligo para o caso de você ter perdido essa sua calma?! Nem um pouco!
– Ah, você não liga, é? E você que eu dou a mínima para o que VOCÊ liga ou não?
– Ah, me poupe! Não estou nem...
– Não me interessa o que você está ou não!

Sucedeu-se que passamos uns minutos breves berrando uma a outra, lançando maldições e razões. Levantei minha voz para sobrepor-se acima da dela, e percebi que minha voz era potente. Começamos então a falar ao mesmo tempo, tornando tudo incompreensível até que Fernanda percebeu algo que eu não tinha percebido:

– TÁ TODO MUNDO OLHANDO! - berrou ela, e eu abaixei dedo e voz para olhar em volta. As pessoas que estavam por detrás dos balcões das lojas olhavam-nos de lado, tentando ouvir o que discutíamos. Algumas tinham semblantes indiferentes, outros assustados e alguns riam.

Percebi, pela suposição, que eu tinha levantado meu tom de voz acima do que me era permitido. Meu semblante estivera com uma clara percepção de raiva, meus músculos estavam em movimento e meu coração parecia uma sub-metralhadora. Isso sempre acontecia quando eu terminava uma briga, mas quando era com Fernanda as coisas ficavam mais tensas.

Eu raramente brigava com Fernanda, e se o espaço era público, digamos que acontecia a cada 18 anos. Nunca havíamos discutido em publico antes, talvez porque eu quase sempre ficava em silêncio, aceitava o resultado e a deixava com um ar superior. Eu havia refletido sobre isso noites atrás e chegado à conclusão de que ia mudar. Não tinha certeza do que havia acontecido comigo para levantar a voz daquele jeito, mas sabia de uma coisa: se aquela reflexão e conclusão final havia repercutido no meu modo de viver, aquela era a prova.

Fernanda olhava para meus olhos e eu para as pessoas. Assim que se dispersaram olhei para Fernanda, que acabou por falar:

– Vamos esquecer o que aconteceu aqui. Lembrei-me do caminho, estávamos seguindo na direção certa o tempo todo.

Quis falar, mas fiquei com medo de que minha voz voltasse a ser ousada, por isso consenti duramente com a cabeça e a segui, retornando nosso ritmo de caminhada.

[...]

Não parei de pensar na discussão que tivemos. Estava terrivelmente arrependida e queria pedir desculpas a ela, mas então lembrei-me de que era ELA quem devia-me desculpas. Talvez eu estava errada, mas, ao meu ver, a culpa foi mais dela, por ter provocado em mim um sentimento de confusão. Lembro-me de que na minutos antes da briga tive uma pequena vontade de dar-lhe um soco no nariz, ou, se não, esmurrar uma parede. Qualquer coisa a ver com destruir algo, para extravasar a raiva que senti quando ela admitiu que havia se perdido.

Fernanda, por outro lado, não tinha remorso algum ou simplesmente não ligava para isso. "Vamos esquecer o que aconteceu aqui", dissera quando terminamos de brigar. Ela talvez sabia ignorar algo facilmente, pois já havia sorrido jovialmente a umas pessoas e dado gargalhadas quando viu um menino ficar encharcado perto de um hidrante. Eu havia sorrido, mas de maneira nervosa e inquieta.

Percebi então que era este o motivo pelo qual eu sempre fui assim. Sentia muito remorso e pensava com demasiado cuidado em que a pessoa com quem eu falava pensaria. Eu precisava ser mais rígida.

Esses pensamentos não foram embora tão cedo, ao contrário do sol, que logo era uma mancha laranja no horizonte. A noite chegou, cheia de nuvens e sem lua, muito menos estrelas. Isso no céu, pois embaixo a Parte Dois era cheia de postes com luzes amarelas e casas iluminadas de branco, sem falar dos faróis dos carros das pessoas que chegavam do trabalho. As silhuetas das coisas alongavam-se e contraíam perante os faróis que iam e chegavam.

Fernanda havia desistido de chegar na Burguer King andando, por isso estávamos dando a volta para chegar em casa. Meus pés doíam implacavelmente e minhas pernas eram grandes balões de água com vida própria. O suor só não estava tão forte em meu rosto porque a brisa noturna já tinha vindo, tão fria e relaxante que quase deixei-me cair no chão e tremer de frio. Só não o fiz porque Fernanda me largaria.

Eu não conhecia muito bem a Parte Dois de Lancing Lord, por isso não sabia onde estava. Fernanda o tempo todo alegou saber onde estávamos, mas ela mesma parecia confusa. Quando perguntei-lhe se sabia mesmo onde estava estávamos ela olhou para mim como se eu tivesse desenvolvido a capacidade de falar mandarim:

– Você louca? Acha mesmo que EU me perderia?

Então não falei mais. Escolhera guardar para o momento final, quando ela virasse para mim e falasse: não sei onde estamos. Algumas vezes ela tomou caminhos errados, mas, antes de chegarmos ao final desses, Fernanda conseguia lembrar-se, então voltávamos. Ela estava desnorteada e completamente confusa. Reclamava sobre árvores, casas e caminhos que eram para estar, mas não estavam; ou então vice-versa.

Fernanda estava terrivelmente cansada, isso ela não podia negar. Não havia falado em voz alta, mas pude perceber a queda de velocidade enquanto a observava caminhar. Calculei que ela estava faminta, o que seria o equivalente a ela dizer que estava com a energia acabada. Tanto ela quanto eu estávamos famintas. Eu, pessoalmente, não devia estar com tanta fome quanto ela, mas eu tinha fome. E não era pouca. Tive a sensação de que comeria com a força mil leis magros e famintos.

Tentei conseguir um pastel de carne - com um guardanapo de óleo extra - fiado em uma padaria quando parei por um minuto, mas a mulher recusou e eu não tentei mais gracinhas. Agradeci aos céus por haver poucas ou quase zero de pessoas no local, se não eu passaria vergonha.

A caminhada seguiu-se em passos pequenos, cansados e famintos. Aos poucos o fluxo de carros diminuiu, mas não extinguiu. Calculei que devia passar das 19h00, pois alguns mini-comércios já estavam fechados. Até os velhos em cadeiras que balançavam haviam sumido. Apenas luzes amarelas e incandescentes brilhavam no lugar das rugas dos anciãos. O perigo de roubo na Parte Dois era pouco, por isso as pessoas tinham tanta liberdade. Podiam até mesmo usar aparelhos telefônicos nas paradas de ônibus; ou tomar um ônibus e ir para casa mais rápido.

Mas eu não. Estava presa a uma mulher sonsa que esquecera-se do caminho. Ela obviamente esquecera-se, até porque parecíamos caminhar mais para um beco de ratos do que para uma casa iluminada. Os postes ficavam com a luz mais fraca cada passo dado, e as casas iam se separando mais e mais umas às outras. As pessoas haviam entrado em suas casas no início, mas ainda dava para ver algumas fazendo pequenas aventuras de casa em casa; agora não havia ninguém além de Fernanda e eu na rua.

– Fernanda, onde estamos? - perguntei, assustada.
– Tomando um atalho para chegar em casa.
– Que atalho? - minha voz estava fraca - Onde estamos?
– Estamos perto do cruzamento da Araripina com a Guilha.
– E onde é isso?
– Perto de casa.

À minha direita havia outra rua, espremida entre duas casas. À minha esquerda havia casas e para a frente rua, seguindo o caminho até o infinito.

– Fernanda, para a frente só teve o que sempre teve: rua.

Ela me olhou como se eu tivesse enlouquecido.

– Ô, Marcela, cê está ficando doida ou o quê? Não vê as paredes ali não?

Olhei para ela. Fernanda não estava apontando, mas presumi que era para eu olhar pra frente. Tive que semicerrar os olhos para distinguir que, entre duas casas que estavam quase se tocando, uma ruela espreitava-nos engolida, pela escuridão. Havia uma lata de lixo pequena que vomitava pedaços de papelão. Não entendi como Fernanda conseguia olhar tão longe, mas acabei por aceitar.

"Não deveríamos estar longe", pensei. Fernanda falara com tanta certeza que até acreditei. "As casas vão voltar a ficar iluminadas", pensei de novo. Mas logo percebi que não. Quanto mais nós nos aproximávamos do local mais ficava tudo escuro. A temperatura foi, muito aos poucos, caindo. A brisa não soprou mais e eu tive uma pequena impressão de que nas casas estavam todos dormindo. O silêncio foi ficando cada vez mais profundo quando cheguei perto da lixeira. Dentro haviam milhares de papeis enrolados e canetas com o tubo estourado. No chão, uma gigante placa de madeira tentava servir de telhado para alguns ratos, em uma inclinação de tantos graus.

Então o beco mais que pequeno estava em nossa frente. As paredes da esquerda e da direita eram de tijolos e estavam salpicadas de cimento. No chão haviam poças de água suja. alguns fios e uma linha preta. De dentro daquele lugar vinha uma onda de terror forte e firme. Por isso desconfiei quase imediatamente quando entrei. Ratos correram enquanto eu dava cada vez mais passos. Meus pelos se eriçaram e eu me achei com medo. Os ratos eram silhuetas pretas gigantes e deformadas. Uns não tinham rosto e outros se moviam como se tivessem vassouras grudadas nos corpos.

O frio subiu-me pela espinha. Não era aquele frio imaginário, mas sim aquele frio que você sente quando entra no shopping. Tentei me concentrar em meu corpo e fazer aquele frio sumir, mas assim que tentei murmúrios rápidos irromperam do local. Por alguns segundos eu achei que haviam milhares de pessoas cochichando ao meu lado, mas quando pisquei os olhos não tinha ninguém.

A lua, escondida por nuvens, pareceu de repente brilhar mais que uma estrela luminosa, mas isso durou meio segundo, pois logo cessou. Baixei os olhos e vi Fernanda. Ela estava com medo, pois encolhera-se toda. Olhou para os lados, o que fez com que seus curtos cabelos loiros e lisos balançassem, então falou:

– Nunca devíamos ter pego essa rota - sua voz saiu com um eco de mil quilômetros.

O arrepio mais forte da minha vida, até então, subiu-me pela espinha dorsal quando a lua revelou sua verdadeira forma: uma estrela enormemente forte, brilhante e flutuante no céu em atmosfera com não estrelas, mas sim grandes bolas brancas de luz. Ao meu redor as paredes foram ficando mais lisas até virarem gessos de um branco reluzente, brilhante e implacavelmente limpo. O chão ficou cada vez menos irregular e assumiu uma coloração branca; este branco um pouco menos forte.

Quando achei que estava morta, Fernanda pegou-me pela mão e deu-me um abraço. O teto foi perdendo altitude até estar encima de mim. Haviam luzes brancas provenientes de lâmpadas grandemente redondas. As paredes, brancas, abriam-se para uma curva frontal, com o espaço delimitado por uma outra parede.

Quando o cenário pareceu mudar, percebi que eu poderia estar em um daqueles consultórios médicos. A porta a minha frente era tão grande que sua altura quase perdia-se, erguendo até o teto; talvez o teto fosse mais alto... Você deve estar se perguntando: "mas se o teto havia chegado para baixo antes, como ele era mais alto que a porta?"; lembra quando falei que ele se abria para uma curva? Pois essa curva abria-se para a esquerda, direta e para cima. Quando curvava-se para cima a parede era vertical.

Sem saber o que fazer, ficamos paradas por alguns infinitos minutos, olhando em todos os sentidos e direções. Não sabia o que esperava-nos, mas, como sempre, o cérebro arranjou uma maneira de fazer-nos imaginar as piores coisas. Podíamos estar de frente para uma sala de tortura; ritual de sacrifício; sala de cirurgias ou até mesmo diante do céu.

Mas todos esses pensamentos desvaneceram imediatamente quando a porta fez um estalo e, ruidosamente, abriu-se. Ainda estávamos paradas quando demos de cara com uma multidão que parecia ter mais de mil pessoas. De etnias, lugares ou, até, países diferentes, olhares curiosos e medrosos fitaram-nos ao mesmo tempo em uma sequência infinita de medo. Alguns murmuraram, outros ficaram em silêncio, mas meu mundo virou-se quando uma antiga e nostalgicamente voz familiar bradou, em um tom tocante, grosso e forte:

– Marcela Philliams e Fernanda Araújo.

Tremendo, nervosa e tentando não tropeçar em mim mesma, apertei mais a mão de Fernanda e caminhei para a frente.

Assim que entrei no salão quis sair de lá. Eram muitas pessoas, várias. Talvez eu estivesse tendo uma ilusão, mas sei que poderiam haver não mil - aí seria muito -, mas sim mais de quatro mil. Eram MUITAS pessoas, todas de aspecto diferentes, mas com semblantes iguais. Estavam amontoadas na frente da porta, esperando Fernanda e eu aparecermos. Trajavam roupas diferentes, portanto realizei que não estávamos em um consultório médico ou em uma sala de tortura.

Não mexi a cabeça, para não mostrar que estava impressionada. Fernanda, porém, não se controlou. Talvez devesse estar nervosa demais ou então com medo demais, só sei que ela gritou:

– SE NÃO NOS DISSEREM QUE PORRA É ESSA, VOU MATAR TODO MUNDO!!

As gargalhadas foram estrondosas. Duraram aquilo que, diante do meu nervosismo, pareceram horas até que aquela voz retumbante, alta e implacável repetiu, mais alta e mais imperativa:

– Marcela Philliams e Fernanda Araújo!

O silêncio, de repente, tomou conta. A temperatura pareceu curvar-se para aquele velho cara. Não ouvimos nada exceto passos se movendo para abir passagem. Quando todos saíram da frente, ele estava lá.

Alto, branco - parecia nunca ter pegado sol -, olhos pretos e nariz pontudo. No peito, uma camisa preta com o logo de uma caveira pegando fogo; nas pernas uma calça jeans azul forte, levemente amassada e nos pés um tênis branco e verde. Seu olhar chegava a ser amigável, mas também assassino, sedento por sangue. E ele era bem alto. Talvez pudesse ser seu melhor amigo, mas seu semblante dizia que você não o iria querer como inimigo. Ele tinha cara de quem era autoritário, com aqueles brilhantes cabelos loiros para cortar. Ele não mudara muito, apenas parecia ter adquirido uma imagem mais informal.

– N-nós? - gaguejou Fernanda. Talvez ela se lembrasse daquela cara, agora marcada por uma pequena cicatriz na testa.
– Não - respondeu ele, ironicamente -, diga-me qual outra Fernanda Araújo aqui está em destaque, com todos olhando?
– Nenhuma, senhor? - Fernanda lembrou-se de algo relacionado a seu pé; então olhei algumas das pessoas ali dando risinhos. Manti o silêncio. Ele arregalou os olhos:
– Pois foi o que todos pensamos - Gary William assumiu um semblante comum. - Pois bem; estou aqui a contra-vontade para vos desejar boas-vindas à RM, o Refúgio Mutante.