Dia decisivo para meu futuro escolar.
E nem por isso as coisas estavam indo ruins, senão estranhas, o que era um bom sinal. Confesso que sempre fui muito otimista, colocando esperanças onde não havia, mas naquele dia tudo parecia estar dando certo.
Fernanda e eu estávamos sentadas no meu sofá, na sala, de frente a um telefone havia quase uma hora. Os ventiladores ligados tentavam nos deixar com frio, mas deixava com mais calor.
É sempre típico um domingo fazer calor, pensei, ainda mais quando é verão. Nossa cidade, Lancing Lord - me lembra nome de vilas de rpg - sempre foi acusada de ser fria como Urano nos invernos e quente como Vênus no verão.
Leitor, imagine uma cidade com três partes, uma pobre, outra mais ou menos pobre e outra nada pobre. Assim era Lancing Lord.
No lado mais leste ficava a Parte Um - a nada pobre - onde ficavam os prédios altos e os supermercados; as escolas e faculdades; shoppings e cinemas; cachorros e gatos. Brincadeira, esses animais tem em todo lugar. O trânsito lá é alto de manhã, pequeno de tarde e alto de manhã. Sim, aquela típica aparência de cidade grande, onde acontecem "as coisas". Lá fica a escola que eu estudava "Peacewings".
A Parte Dois, onde resido - carinha de orgulho -, é parte mais concentrada em abrigar pessoas em casas, distribuídas por ruas asfaltadas e sinalizações favoráveis. Uns pequenos comércios solitários ainda tentavam ganhar um dinheiro extra com bombons, chicletes e cremosinhos.
Tudo uma delícia.
E, na parte mais para oeste, e não menos importante, fica a Parte Três, a mais pobre. Também haviam casas, mas eram, em sua maioria, de um andar e pequenas - a minha era de um andar e um pouco pequena -, quase destruídas. Dava pena do povo de lá. Mais pareciam pessoas que sobreviveram a uma guerra.
É assim nossa cidade, três adjacências conhecidas como "Partes Um, Dois e Três". Cada uma com seus bairros, níveis de criminalidade e opções de trabalho.
Bem, voltando à história...
— Fernanda? - chamei-a.
— Oi.
Sua voz soou mais como "Oi...!". Ela era uma menina atrevida, que os pais diriam: "menina atrevida, não faça isso". Tinha um cabelo loiro que caia até a altura dos ombros. Olhos castanho-escuros e um olhar de "dane-se", algo que ele nunca mais falara. A pele clara era vestida por uma camisa preta com uma caveira no meio; suas calças não a deixavam com calor e não a deixavam apertada.
Sim essa era minha melhor amiga.
Percebi que estava olhando para ela como se fosse babar. Ela assumiu a expressão de alguém que ia rir, então falou:
— Nossa, eu sabia que era bonita, mas não a ponto de minha AMIGA gostar de mim! Vai com calma, eu gosto de homens! Se bem que posso abrir uma exceção.
Olhei para ela.
— Não é nada disso, sua doida! - falei, rindo - Só te chamei para quebrar o silêncio.
— Bem, o silêncio estava bom.
— Você não se sente pressionada?
— Não. Nem um pouquinho.
— Como...?
— Não sei.
Fiquei pensando sobre isso. Se você for negociar algo comigo, tente me deixar em silencio, porque isso me deixa pressionada e eu acabo...
Não. Se eu falo você pode tentar.
Esperamos alguns minutos de calor. Comecei a suar. A sala era arejada, mas ainda sim o calor era forte. Olhei a janela ao lado da porta. Eu via uma casa com o portão e porta abertos. Um cachorro fez cocô no jardim da casa.
Minha visão foi interrompida pelo toque do telefone. Quando olhei para trás, Fernanda já atendera. Eu só ouvia o que ela falava, porem mais tarde ela me contara o diálogo:
— Alô? - chamou Fernanda.
— Alô? - chamou Luzia.
Luzia era mãe de Fernanda. Uma mãe não muito baixa e nem muito alta. Cabelos pretos caindo até a metade do braço. Ela era calma e não gostava muito de sair. Passava a maior parte do tempo no quarto dela - só ela sabia o que fazia lá. Quando saia era desconfiada demais e olhava inquieta para os lados, como se fôssemos ser assaltadas. Apesar disso tinha uma voz calma, o que chegava a ser assustador. Olhava para você nos olhos, como se soubesse de sua vida, o que falaria, o que faria, o que fez apenas com uma simples encarada.
Essa era a misteriosa mãe de Fernanda.
— Mãe! - disse Fernanda.
— Oi, gata, tudo bem?
— Mais ou menos - ela falava isso quase sempre - e aí, conseguiu convencê-la?
Bom... Minha mãe e a de Fernanda foram até nossas escolas fazer a rematrícula. No entanto minha mãe queria que estudássemos em uma outra escola, o que ninguém queria. Então Luzia optava por dar-lhe argumentos que tentava convencê-la.
Minha mãe era dura na queda. Algo que suas feições ligeiramente delicadas e o olhar descontraído escondia. Ela gostava de se divertir, mantendo-se com um trabalho em algum lugar que ela não me falava. Seu olhar dizia "vamos nos divertir!" - parece frase de desenho animado infantil -. Tinha cabelos pretos caindo até a altura do cotovelo. A propósito, seu nome era Mariana.
— Sim! - respondera Luzia, ao telefone - Mas saiba que foi difícil.
— Devo imaginar.
— Bem, é só isso. Sei que vocês estavam doidas para continuar no mesmo colégio.
— Sim. Obrigado, mãe. Te amo.
— Awn... O.k. Tchau.
— Tchau.
Após isso ela me falou como foi o diálogo.
Sim eu fiquei muito feliz. Eu tinha todos os rostos conhecidos naquele colégio e não queria me afastar deles. Eles poderiam até não falar muito comigo, mas eu não me importava. Gostava de vê-los.
Passamos o resto do dia assistindo televisão. Passavam programas interessantes na TV aberta - sendo que eu não tinha a fechada -.
As adultas chegaram uns quinze minutos depois. Fernanda foi para casa. Minha mãe sentou ao meu lado. Desligou a televisão e começou.
— Marcela... - sua voz emitia um tom de quem ia contar uma história, o que não era muito comum - eu... Não sei como te perguntar isso...
— O quê?
Gelei.
Uns dias atrás Fernanda e eu pusemos fogo no jardim de nossa inimiga de escola, Clara. Uma menina muito chata e metida a rica. Morava na Parte Um.
— Você... Tem passado por coisas... Estranhas?
Fiquei mais calma. Senti a tensão sair de meus ombros.
— Mãe, já estudei a puberdade na escola.
Ela deu uma leve risada, como se eu tivesse feito uma piada.
— Não é isso, bobinha... - disse ela, um tom intrigante - é tipo... Consegue CONTROLAR coisas?
Olhei para ela mais intensamente e perguntando-me como ela sabia daquilo.
No último bimestre escolar usara minha habilidade natural de persuasão para obrigar um menino nerd a passar respostas da prova de geografia e artes - as únicas matérias nas quais eu era PÉSSIMA. Acabou que todos nós tiramos notas boas. Eu havia pescado, o que mamãe veria como desonra.
— An... Servem pessoas?
Ela olhou-me como se já soubesse dessa pergunta.
— COISAS.
— Não. - não que eu soubesse, a tensão mais uma vez aliviando.
— Hum... Isso é estranho... - ela pareceu formular outra ideia - Consegue VIRAR substâncias?
— Não.
— Animais?
— Não.
— Consegue fazer qualquer esforço físico sem cansar-se?
— Muito pelo contrário.
— Sabe como...
— Mãe, do que a senhora está falando?
Ela pareceu pensar "nossa peguei pesado". Deduzi isso pela cara que ela fez.
— Por enquanto você deve apenas concentrar-se em sua vida.
— Agora, que a senhora me deixou curiosa?
— Sim - ela falou como se fosse resolver todas as perguntas da vida - Apenas viva normalmente.
— Mas...
— Vamos sair hoje à noite?
Ela interrompeu-me como se fosse evitar uma guerra.
— Sim, ok...
Decidi tentar esquecer disso. Eu sabia como ela era. Sabia que não me falaria mais nada mesmo que eu insistisse.
— Ótimo. Vamos comprar uma pizza porque estou com preguiça de fazer o jantar.
— Pizza de quatro queijos? - meu sabor predileto.
— Pizza de quatro queijos!
[algumas horas depois]
Eram 18h00.
Mamãe estava no quarto arrumando-se, e eu na sala, esperando. Olhava para uma revista de culinária que minha mãe comprara uns dias atrás. Ela vinha lendo aquilo periodicamente, isso talvez devesse explicar o porquê de sua comida ter ficado melhor.
— Marcela? - Mariana interrompeu meus pensamentos.
— Oi, mãe! - respondi quando ela veio caminhando na minha direção.
Ela usava um jeans esverdeado e uma camisa azul-forte. Uma sandália simples e verde fraco vestia seus pés. Não passara maquiagem, não gostava. Apenas penteara o cabelo em uma pequena franja. Segurava uma bolsinha azul, onde estaria o dinheiro e os cartões-passagem - medida recente do governo para ajudar o povo, vai entender.
Aproximou-se de mim.
— Vamos, querida?
— Vamos.
Apaguei as luzes e saí. Ela trancou a porta da casa com a chave e a guardou na bolsa.
— À propósito, gostei de suas roupas. - disse minha mãe, enquanto andávamos.
Agradeci e olhei para baixo. Eu usava uma camisa vermelha com detalhes amarelos no meio. Uma calça jeans preta e uma sandália branca com detalhes que refletiam as luzes em volta, dando a impressão de brilho.
Nada que se destacasse muito.
Começamos a andar. Eu prestava atenção nas pessoas que se divertiam com a noite. Algumas faziam churrascos com carne bovina, outros de galinha, uns de toscana e outros assavam peixe. O ar aromatizante de comida me deixou com a barriga roncando.
Achei um tanto estranho. Há dias eu não sentia tanta fome. Fiquei tentada a pedir para eles um pouco daquela comida. Simplesmente estava com fome, a ponto de sentir minha barriga retorcer por um pedaço de carne.
Ok, parei com o papo nonsense.
Enquanto andava, fiquei pensando no que minha mãe queria dizer naquela hora. Será que ia ser MESMO uma lição de moral? Talvez um sermão ou uma briga. Ou um discurso semelhante à "não use drogas".
Mas ela falara algo sobre controlar coisas. Eu fiquei pensando QUEM teria poder de telecinese? Até porque isso não existe!
Eu era ingênua como uma criança de três anos.
Chegamos no ponto de ônibus - o que cortou meus pensamentos -, que ficava há duas quadras de minha casa. Haviam bancos em uma placa de concreto que se arredondava e fazia um tipo de proteção contra a chuva. As pessoas estavam sentadas e olhando atentamente o final de uma rua.
Não esperamos muito e o ônibus chegou.
Entramos, pagamos a passagem e sentamos na cadeira detrás do cara que cobra passagens.
Eu olhava a paisagem. Comecei a pensar: Quem se mexia, eu ou ela? Eu aprendi em física que pode não ser eu, mas sim ela...
Não vou dar uma de nerd, hehe.
Eu observava os ônibus que iam e vinham quando o que eu estava chegou na avenida de principal movimento. Os carros, motos, táxis buzinando para o sinal vermelho que abria rápido. Estavam todos loucos para ir para casa.
O ônibus começou a deixar a Parte Dois, que acabava na metade de uma pequena ponte. Passava por cima de um rio limpo e misterioso. Este levava agua até um lago no outro lado da área da cidade.
Notei que quando passamos pelo rio, minha mãe olhou para ele enojada - como se ele fosse algo repugnante.
Então adentramos na principal potência de LL.
A Parte Um começava com dois prédios idênticos. Não eram grande coisa, mas também não eram pouca coisa. A pista seguia para frente, esquerda e direita, virando em becos. Prédios, apartamentos e estabelecimentos comerciais originais se espalhavam pela cidade. Eu começava a ver as luzes que a Parte Um irradiava. Uma combinação de vermelho, amarelo, azul e laranja, estampados nas placas dos comércios. Carros, táxis e ônibus faziam o transito estressante, mas não parado.
Pessoas andavam nas calçadas com sacolas de várias lojas e crianças com sacolas menores nas mãos. A lua parecia ter perdido seu brilho encima da grande cidade, que liberava luzes.
Estávamos a meio caminho quando o ônibus parou bruscamente. Talvez para desviar de alguém que atravessara a rua correndo, ou um cachorro.
Permaneceu parado por uns minutos, o tempo suficiente para minha fome passar. Algumas pessoas nas calçadas recuaram, assustadas.
Olhei pela janela o que era.
Havia um carro pegando fogo, virado de lado no asfalto. As pessoas que estavam amontoadas em volta saíram de perto quando pegou fogo.
Olhei para uma área de acesso que parecia um "+". Cada parte levava a um lugar diferente. No meio, o semáforo onde o carro batera. Uma pequena calçada e sangue espirrado.
Então aconteceu.
Minha visão desfocou, parecia turva e que ia expandir. Eu vi pessoas se jogando no fogo, que crescia. Elas saiam do fogo com as mãos em chamas atirando nos outros.
Vi um grande amontoado de pessoas usando roupas camufladas, com energéticos nas mãos. Todas indo em uma só direção e marchando, como se estivessem preparadas para uma guerra. Eram homens e mulheres, com capacetes de ferro leve e pintados de verde.
Então minha visão desfocou para uma discussão perto do semáforo. Uma mulher ao chão e dois homens brigando. A polícia civil chegou em seguida e levou todo mundo.
Não tinha mais carros nem exércitos.
Então tudo foi apagado da minha mente. Eu só passei a lembrar-me de ter visto uma discussão. - eu só sabia que o que eu vira porque alguém me falou depois.
Olhei para minha mãe, que lançava um olhar de censura. Assim que virei ela disfarçou o olhar.
— O que foi, querida?
— Tem alguma coisa estranha acontecendo com a senhora. E eu vou descobrir!
Aconteceu que eu me concentrei na pizza de quatro queijos que estava por vir. Descemos na parada do shopping e entramos nele.