O corredor estendia-se infinitamente diante de John. Ele corria havia muito tempo, mas nunca parecia chegar ao fim. As paredes tinham a mesma dureza e cor que manchas escurecidas provenientes de fumaça, mas John sabia que se aproximasse ou se encostasse, algo de ruim aconteceria. A luz vinha de um só lugar, mas devido a alguma lei da óptica quebrada, ela batia nas paredes, que refletiam como espelhos. Uma sirene começara a tocar havia bastante tempo, um som de alerta que John só pode entender que era um indicador de perigo, ecoando desde sua origem até o fim daquele... Túnel. Não estava suando, mesmo que tenha corrido por muito tempo, mas estava com medo de alguma coisa. Corria, no início, calmamente, como uma caminhada casual à tarde perto da praia, mas assim que percebeu o perigo, apressou-se corredor afrente.

Sua extensão era colossal, não tinha ramificações, e seguia reto. Algumas vezes dava uma longa e sutil curva para qualquer lugar, mas não passava disso. Os únicos sons - exceto a sirene - vinham da mente, onde uma risada feminina, jovial e constante, destacava-se no meio do estado de alerta no qual John se encontrava. Ele ouvia essas risadas desde que começou a correr. Inicialmente era uma risada tranquilizadora, enviando energia positiva e incentivando-o a seguir em frente. Após John ver pela primeira vez o que realmente acontecia ali, ignorou o medo e forçou-se a correr mais rápido.

A dona dessas risadas, John sabia quem era. Conhecera-a quando tinha quinze anos, no estupido campo de treinamento de seu pai. Naquela época, John ainda era magro demais, com os músculos não desenvolvidos por conta de sua falta de uso. Aquele dia foi bem legal; John venceu a corrida, com uma menina qualquer em segundo. O pai havia ficado com um olhar desconcertante no rosto, totalmente confuso. John gostava do pai, mas ele era tão orgulhoso que confundi-lo foi uma das melhores sensações que teve. Mais tarde, Gary William levou seu filho para uma lanchonete, onde comeram dois hambúrgueres entre risadas e comentários.

Mas no outro dia, marcou de sair com Marcela Philliams para uma caminhada, e, quando ele contou como deixou o treinador confuso, ela riu. Sua risada era linda e boa de ouvir. John não precisava de muito esforços para fazê-la rir e nunca enjoava dela. Gostava muito de ouvi-la.

Mas agora a risada dela estava deixando-o apavorado. Estava fugindo dela; esse era o preço que ele tinha de pagar por ouvir tal melodia: Marcela estava perseguindo-o. Não seria nenhum problema, mas facilmente ELE correria atrás dela. O problema verdadeiro residia na Marcela que o caçava. Era como uma versão maior dela, só que... Com algumas diferenças que o apavoraram.

— Não vou pensar nisso, não vou pensar nisso! Vou apenas correr para a saída! - pensou John, numa desesperadora tentativa de afastar a sensação de morte que sentia.

Seu coração palpitava como uma caixa de som, o ritmo natural obstruído pelo sentimento constante de alerta e pânico presos em sua garganta. Os pés tocavam o chão de uma maneira quase imperceptível, tanto que John pensou por um segundo estar flutuando. As mãos automaticamente faziam movimentos de natação, em que uma mão pegava impulso na resistência do ar e a outra empurrava-o afrente. A respiração estava fora de controle, tentando puxar o máximo de oxigênio possível, mas cada vez que ele corria, o ar parecia ficar rarefeito.

Quanto mais John corria, mais a risada ficava retorcida, o que provocava um arrepio em sua nuca. Uma súbita sensação de completo pânico e pavor subiu-lhe pela garganta, e, assim, seus joelhos perderam a força, o pesado e trabalhado corpo musculoso caindo brutalmente sobre si. Ele sentiu quando um fervor ácido e pastoso subiu-lhe borbulhando, quente, garganta acima; todo o conteúdo do seu estômago esparramou-se pelo chão, em cores completamente indistintas. Naquela hora, ele quis chorar, desesperar-se e gritar, olhar para qualquer figura querida e chorar nos braços dela.

Mas ele sabia que naquele lugar não haveria consolação, nem alegria; somente o pavor aguardava-o, somente a tortura psicológica perseguia-o, e em nada ajudaria desejar coisas fora de seu alcance.

A luz vermelha subitamente moveu-se para mais perto e, agora, ele via alguma coisa. A sombra lançada alguns metros afrente era clara o suficiente para ele ver o corte de um indivíduo com cabelos longos e lisos. A largura favorecia a altura, de modo que não parecia algo completamente grotesco. Os braços e mãos estavam aparentemente escondidos detrás dos cabelos.

E junto à sombra, John também viu o que ele havia vomitado. Era vermelho, com alguns fios grossos, brancos, que pareciam estar em movimento. Tinha também pedaços de carne muito mal mastigados que ele presumiu ser bife. Os fios eram grandes demais para serem chamados fios, e o fato de parecem estar em movimento, convenceram a John de que ele via cobras sem cabeça. Estava agora confuso e assustado; por que vomitara cobras?

Qualquer que fosse a resposta, teria de ser pulada. Havia algo mais em risco. Aquela sombra ainda estava detrás dele, imóvel e calada, completamente estática.

John ergueu-se e olhou para trás.

Tinha o formato da face de Marcela, com as bochechas levemente volumosas e o queixo redondo e lindo. Entretanto a cor tinha arruinado tudo. O rosto era vermelho - não o vermelho queimado do sol, mas o vermelho que parecia ter sido pintado usando tinta acrílica - com marcas de cortes espalhados pelas curvas faciais e maçãs. O nariz havia sumido, agora havia somente um buraco escuro, de onde um fino fio de sangue caía; os lábios eram finos, mas duros e quebradiços, curvados em um sorriso que mostravam os dentes, podres e quebrados. Aquele sorriso parecia completamente ausente de qualquer emoção... E os olhos expressavam nada. Os olhos fizeram mais efeito, fitando a John de maneira vazia e morta, parecendo descobrir cada segredo profundo e obscuro de sua alma.

Em conjunto com os olhos, aquele sorriso estático lhe lançava uma profunda e consistente onda de medo e terror. As piores sensações que John pudesse ter sentido estavam agora lhe martelando pela cabeça. Um sorriso vazio e ausente de qualquer emoção lhe enchiam com um medo descomunal. Completamente diferente da doce e acolhedora face da garota por quem ele se apaixonara perdidamente.

Enquanto ela o olhava, John ergueu-se, virou-se e correu. Correu o mais rápido que pôde. A luz vermelha, antes clara e forte, agora estava fraca, distante, dando a impressão de que era inalcançável. Não importava, as paredes continuavam as mesmas e o pavor era proporcional ao seu cansaço. Não importava o quanto corria, nunca ia fugir, ela iria pegá-lo, iria olhá-lo, e ele saberia que somente as trevas lhe aguardariam.

Uma porta surgiu no que pareceu ser o fim do corredor curvilíneo. A porta era toda feita em madeira, com entalhes de cruz e linhas decorativas. Um súbito cheiro exagerado de flores e álcool instalou-se no local e, logo, seu nariz começou a falhar. John pegou na maçaneta, querendo abrir a porta, mas assim que tocou-a, recuou. A maçaneta estava quente, como se alguém tivesse posto um maçarico ali. John tentou se acalmar, mas quando a dor chegou...

Sua mão queimava, mas nenhum fogo aparecia. O grito que se seguiu ultrapassou o constante som irritante do alarme. Toda a carne de sua mão direita lentamente começou a derreter em uma fumaça de sangue e ossos. A dor era tamanha que ele mordeu seu mindinho, tentando amenizá-la; a tentativa foi inútil. Quanto mais a força que John usava para morder o dedo, mas a dor aumentava, até que ele caiu no chão, retorcendo-se e contorcendo-se, esmurrando a própria cabeça em um chão coberto de sangue. A cabeça parecia prestes a explodir, e a dor lançava furadeiras estômago abaixo, perfurando cada parte do seu corpo. A garganta já estava em carne viva, e as furadeiras perfuraram, perfuraram e perfuraram; os dentes fechando sobre a fina e delicada pele do dedo mais frágil, o sangue invadindo sua boca. A perna sendo brutalmente jogada contra o chão, perfurando, perfurando e perfurando, mais profundamente.

O mindinho quebrou-se na boca de John, a mão, havia derretido por completo, a articulação do pé, virada para o lado errado e a garganta prestes a estourar. A porta estava aberta, uma luz branca e forte emanava dali, enviando ondas de uma esperança desesperada. John, caído no chão, sangrando muito, e fraco como um desnutrido, lançou um olhar para detrás si. O longo corredor agora era uma sala compactada e pintada de uma cor marrom, afim de imitar uma tábua úmida. O chão estava coberto de sangue e carne queimada, o ar estava ácido e o corpo vermelho, como se ele tivesse ficado tempo demais no sol, mas John precisava sair dali. Pôs uma mão no chão, o sangue esguichando, e puxou-se; ele tinha poder de força, seu corpo era leve, então ele puxou-se mais e mais.

Quando a luz pareceu ter ficado mais forte, John viu o que lhe aguardava. Estava em uma sala com as paredes, o teto e o chão brancos, mas haviam letras muito mal escritas em uma cor vermelha. As letras eram ilegíveis, mas John sabia o que significava uma das palavras: "John". Ao lado havia o desenho de dois olhos com um sorriso vazio. Então ele soube que somente a morte lhe aguardava.

A luz solar penetrava no quarto muito vagamente por entre as falhas do telhado quando John escancarou seu olhar para cima.

Levou as mãos aos pulsos e à garganta, tentando descobrir se havia algo de errado, mas estavam todos no lugar. Movimentou sua pupila para um lado e para o outro, buscando qualquer indício de sangue ou falha branca, mas era somente o seu quarto de sempre. Não havia ninguém perto nem detrás dele, o quarto estava com a porta e as janelas fechadas e as persianas, contraídas.

Ao seu lado o despertador tocava incessantemente, fazendo sua cabeça latejar. Bateu-lhe com a mão, desligando-o. Ergueu o tronco torácico e sentou-se na cama. No canto do quarto havia uma pilha de livros sobre psicologia que John havia revirado na noite passada e deixado ali. Sua toalha havia caído da maçaneta da porta durante a noite, provavelmente estava cheia de terra. O guarda-roupas tinha uma das portas entreabertas, mas isso era um defeito de longo prazo.

O William herdeiro levantou-se de sua cama surrada e caminhou até a porta, abaixando-se e juntando a toalha. Destrancou a porta e caminhou até o banheiro, passando pela cozinha que ele havia POLIDO ontem à tarde. Fora uma tarde cansativa, ele havia colocado no canal de músicas, onde a rádio tocava o heavy metal. John nunca gostou muito de rock, mas até uns dois anos antes, quando, em uma comemoração com uns amigos de escola - algo relacionado à jogos eletrônicos -, foram para a casa de Renato. Era um daqueles lugares que serviam para tocaram músicas de reggae ou sertanejo por toda a noite, com cerveja e gritos. Semelhante a um bar, as caixas de som ficavam no quintal quando em desuso. Eles pagaram a noite e a viraram ouvindo aquele rock dos anos 80 e se embriagando com bebidas leves. John ficou tonto no final, mas acabou simpatizando com o som.

Despiu-se e ligou o chuveiro. A água caiu.

[...]

Na geladeira só havia comida para o almoço. O bife e as duas bistecas seriam suficientes para almoço e janta, concluiu, mas o café teria de ser diferente. Uma desvantagens de ter poder de força era essa: muito uso de energia muscular e muita necessidade de alimentação. John optou por ir em um restaurante que tinha na Parte Um; tinha pouco movimento ali, mesmo nos dias mais movimentados. A essa hora não haveria quase ninguém lá, proporcionando-lhe a paz que buscava.

John concluiu que sua camisa estava demasiadamente suja para sair com ela, por isso voltou ao quarto e optou por uma nova, de cor laranja. Enquanto se vestia olhou-se no espelho do guarda-roupas. O cabelo preto, salpicado de tons amarelados estava penteado e molhado. A face estava exageradamente crua, resultado de quem não saía de casa havia um bom tempo. John não se achava atraente, tinha a pele um pouco endurecida, o olhar desconfiado e o nariz pequeno. Enquanto fitava o espelho, lembrou-se de um personagem de um jogo de RPG antigo. O nome dele era Sábio, ou algo parecido, com a exceção de que ele era loiro.

Após um tempo chegou à conclusão de que se pintassem o cabelo de Sábio, iria ficar exatamente igual a ele. O sorriso veio involuntariamente. "O Sábio dominava várias artes marciais. O nome ele não era Sábio, era Sabin".

[...]

A rua estava como John pensou: Calma.

O chão principal era feito de pedras, que, aparentemente, estavam húmidas. A confusão dominou John - nao era época de chuva em Lancing Lord, ainda, até que ele derramou o olhar sobre um senhor com uma mangueira e um pano preso a uma vassoura.

Os raios solares caíam sobre seus ombros e cabeça, deixando-o com uma desconfortável sensação de calor. Andava de maneira estranha, sacudindo os braços descomunalmente afim de capturar o vento. Felizmente aquela rua era conhecida por sua igualdade de etnias; a rua estava bem vazia, mas ainda assim John olhou duas solitárias mulheres.

A ele não importava, só queria esquecer-se de Marcela. O terrível pesadelo ainda ainda lhe atormentava enquanto procurava com os olhos a lanchonete. Ele já tivera quatro pesadelos em que tentava achar uma porta, com uma visão aterrorizante da garota de sua vida perseguindo-o. Ele acreditava que essa perseguição era um desejo de vingança, pois ainda se culpava pelo que aconteceu naquele dia.

— Ela estava dominada, no chão, sangrando enquanto aquela mulher batia nela... De que adianta ter poder de força, se eu não resisto a um simples controle mental? - pensou.

A multidão amontoava-se em torno da luta entre Marcela e aquela vilã, com a carcaça da parte inferior do ônibus destruído a seu lado. As cadeiras estavam cobertas de sangue, proporcionando uma visão bizarra. Todos que estavam ali tentaram penetrar no limite, impedir a luta. Mas não podiam. A cúpula assemelhava-se a um campo de força, repelindo qualquer um que se aproximasse. Naquela hora John agachou-se, pegou uma tampa de esgoto, agarrando com cuidados as barras, e jogou-a contra a vilã. A tampa, quando chegou a uns dois metros, simplesmente parou e caiu no chão. Qualquer coisa que eles jogavam parecia não chegar a dois metros de proximidade das duas.

A lembrança de uma lâmina afiada, seguida de um esguicho de sangue, fez John decidir que não ia pensar sobre isso.

O restaurante estava espremido entre uma loja de roupas e uma de sapatos. A entrada era estreita, com uma luz incandescente pendendo do teto. O tapete tinha poucas marcas de pé, John contou duas, mas ignorou isso. Logo que entrou, deu de cara com uma escada, levando para cima, de onde vinha um cheiro de noz queimada. As paredes eram de madeira entalhada com figuras de vinhas, sem frutos, cujas ramificações pareciam ser infinitas.

Dentro da sala principal haviam várias mesas dispostas ordenadamente pelo meio. Nas paredes as mesas tinham cor e formato diferentes. As que estavam no meio pareciam aquelas mesas de plástico que são encontradas em alguns bares. Suas diferenças estavam nos pés, ondulados do início ao fim, e na cor verde-oliva - enquanto que as mesas das paredes tinham pés duros e retos. Os assentos localizados nas paredes eram aparentemente mais confortáveis, com bancos de pele recheados por esponjas. Enquanto que as mesas de madeira no meio cabiam quatro pessoas, no máximo, as das paredes pareciam conter seis pessoas, ou oito, se economizassem espaço. Tinha um cardápio e talheres em todas as mesas.

No fundo estava a cozinha, seu espaço separado do resto por uma enorme bancada, que ia de uma parede a outra. Na extremidade mais à direita haviam utensílios. Pratos, pirex, colheres, garfos e facas, bandejas, guardanapos, papeis-toalha, apoiadores, porta-bebida, copos, taças, xícaras, temperos adicionais, como sal, açúcar, pimenta, adoçante e garrafas demonstrativas de vinho e energéticos.

Ao lado ficavam os alimentos.

Olhando para aquele exagero de coisas, John não entendeu como aquela lanchonete se mantinha com tão poucos clientes. Nunca parecia faltar comida naquele lugar, nem mesmo feijão ou alfaces, que estavam em falta naquele momento de Lancing Lord. Isso sem mencionar que quatro pessoas trabalhavam lá: duas mulheres e dois homens. Naquela manhã, como não tinha ninguém lá, havia somente uma mulher, que estava no caixa.

Uma súbita explosão de risadas atraiu a atenção de John para um grupo de adolescentes no canto inferior direito. Haviam seis deles, enchendo a primeira mesa na parede direita. Tinham duas garotas e quatro garotos, todos com hambúrgueres e refrigerante.

Isso arruinou boa parte dos planos de John, que buscava paz. Aquele grupo não demonstrava intenções de sentarem-se em silêncio. Riam e apontavam uns aos outros, tentando falar alguma coisa entre as risadas, o que fazia algumas palavras saírem incompletas. John ouvia, mas não compreendia. Ele sabia que eles falavam alguma coisa, mas estavam longe demais.

— É... - um deles conseguiu se acalmar. - Já imaginou se ele fosse nadar assim? A água ia ficar tóxica.

Então fez-se um silêncio proposital. Todos encararam o menino que havia falado aquilo. A maioria olhava para ele com censura, inclusive aquele de quem eles riam.

— Porra, Arthur, tu fudeu tudo! - resmungou uma das meninas. Essa tinha a pele branca e cabelos pretos que foram pintados para parecerem loiros, contudo a tinta já saíra pela metade.
— Teu cu, Karine! - falou "Arthur". A pele negra recebia um contraste extra por conta de seu cabelo, pintado de branco.
— Te cala aí, Arthur, eu vou morrer de tédio - falou um outro.
— Eu já morri - acrescentou a outra menina.

John pensou que o tal Arthur fosse ficar com raiva, mas, ao invés disso, riu nervosamente.

— Vão se fuder - falou, rindo. Os outros lentamente começaram a rir também e então John soube eram amigos há muito tempo.

Deu-lhes as costas e caminhou até o caixa. Lá fez o pedido:

— Dois beijus e café com leite; xícara média, três colheres de açúcar e duas de leite - ela passou o pedido para uma pequena folha, mas, antes de entregar, olhou para John, confusa.
— O que é "beju"?
— Quê? Você não sabe o que é beiju? - suspirou. - É uma massa que a gente esquenta numa frigideira e, quando fica pronto, a gente passa manteiga. A massa é feita com tapioca.

Ela murmurou "tapioca" enquanto escrevia.

Quatro minutos depois o café-da-manhã de John chegou em uma bandeja, com a manteiga e a colher separados, mais pro canto. Do beiju saía uma fumaça quase invisível, o que dava a impressão de estar quase esfriando. O café, contudo, estava derretendo a asa da xícara.

Do jeito que John William gostava.

Comeu sentado à mesa da parede oposta ao grupo. Eles haviam dado uma calma no falatório e agora comiam mais. O beiju estava bem preparado, não desvanecia quando John o pegava e nem parecia uma borracha quando ele mastigava. O café não estava muito bem temperado, como ele temia, mas ia ser suficiente.

Outra explosão de risadas invadiu o lugar. No outro lado da mesa, um dos meninos tinha o hambúrguer espatifado no rosto. O resto ria enquanto ele tentava retomar a postura, o que era difícil, devido à quantidade de condimentos espalhados pelos olhos, boca e nariz. O menino chamado Arthur era quem ria mais.

— PORRA, Arthur! Que caralhos tu fez, MERDA!? PORRA!

Os outros ficavam sem fôlego enquanto Arthur começava a tentar explicar-se.

— Foi mal ae, doido! - riu mais.

Eles tinham risadas variadas. Uns pareciam que estavam engasgados e outros riam alto. Um deles ficou com a face vermelha e uma das meninas chorou. Essa tinha cabelos cacheados e usava um óculos. O menino que tinha hambúrguer na face olhava para todos e, pela expressão dele, John não conseguiu saber se a raiva dele estava sendo encenada ou se era real.

Aquela manhã havia sido bastante depressiva quando John acordou. A solidão era tão grande, difícil de suportar. Seu pai não estava voltando para casa. John não sabia o que acontecera a ele. Em uma noite qualquer ele havia ido ao trabalho apressado, preocupado, com uma expressão dura na face.

— Tchau - disse, antes de não retornar.

Desde então a comida chegara todos os domingos na casa de John. Um taxista chamado Thiago chegava com a porta traseira do carro lotada de sacolas, com carne, arroz, frutas e guloseimas. Quando John perguntou quem havia lhe mandado isso, ele dissera, com uma dificuldade de lembrar o nome:

— Gary William.
— O quê? Você sabe onde ele tá? Me diz, por favor! - gritara John, assustado e com o coração palpitando.
— Ele só fala comigo por telefone. Me mandou uma lista de compras pelo aplicativo de mensagens, junto a uma foto do cartão com a senha ao lado - respondera ele.
— Você tá com o celular? Por favor, deixa eu falar com ele!
— Eu não trago meu celular ao trabalho. Você não sabe que tá cheio de Vi... assaltantes por aí?

Mais tarde, enquanto comia uma carne e macarrão com queijo - John sempre gostara de combinações alimentícias - a programação do canal de televisão que assistia fora interrompido por um plantão. O jornalista estava a quatro quadras de uma batalha que acontecera naquela região. A Parte Três tivera diversos danos no bairro Alegria Agridoce, um dos mais influentes. Sete casas e três prédios da prefeitura foram destruídos. Houveram aproximadamente quinhentas e cinquenta pessoas mortas e mais de dois mil feridas. Alguns professores de sociologia renomados disseram que aquele conflito se deu por conta de disputas territoriais, mas outros falavam que eles queriam se opor ao regime que dominava o Brasil.

E, à despeito de tudo isso, John não resistiu dar uma risada leve. A felicidade no rosto daqueles adolescentes acendeu uma chama de esperança, queimando-o por dentro. Logo ele estava igualmente feliz de novo. Ainda havia esperança para ele, o mundo não estava perdido. Marcela nunca quereria que ele se culpasse tanto por aquele acontecimento.

O pensamento de que eles ainda iriam trabalhar, ter filhos, sorrir, voltar a se encontrarem foi uma coisa muito revigorante. John percebeu que estava se remoendo no passado, impedindo-se de seguir em frente. A garota de sua vida havia ido, deixado uma cicatriz terrivelmente profunda. Ele a vira partindo e até agora tinha pesadelos com isso.

Mas seu pai ainda estava vivo. Podia não ter voltado e nem falado com John até agora, mas ainda estava vivo, sustentando o filho. Não faltava comida, nem saúde... E ele ainda tinha uma vida inteira pela frente.

Um vulto passou na frente de John.

Um homem havia entrado na lanchonete. Estava cheio de músculos e andava com a perna direita falhando, como se alguma coisa estivesse atrapalhando. Ele tinha o passo devagar, lento, caminhava diretamente para o caixa. O chapéu impedia John de ver seu cabelo e o pano que cobria sua boca o impedia de ver grande parte de sua face, mas ele conseguiu distinguir sua pele negra. Vendo-o passar em sua frente, John mordeu seu bejiu e voltou a olhar o grupo, que ainda ria.

O menino chamado Arthur, subitamente, escancarou os olhos na direção do outro, que tinha a face coberta de salada, tomate e pepino. A face dele agora não mostrava nenhum de sinal de brincadeira e os outros lentamente foram percebendo isso.

— Diabo é isso, Felipe?? - Arthur parecia assustado.

As risadas dos outros, pouco a pouco, foram se transformando em murmúrios assustados. Os olhos de "Felipe" estavam começando a mudar de cor. Não só a pupila, mas também a parte branca começaram a brilhar com um vermelho intenso. A temperatura na sala aumentou consideravelmente. Arthur começou a suar enquanto que os outros lançavam-lhe olhares assustados. O olhar curioso de John mostrava agora um interesse novo.

O poder de fogo era o poder mais comum. Grande parte dos mutantes tinham poderes de fogo, ou relacionados a fogo. Geralmente esse poder era baseado na criação do fogo através partículas no ar, que, quando entravam em constante movimento, provocavam o calor, que evoluía para uma chama. A maioria da população que dominava o fogo tinha essa habilidade, mas ainda haviam os que só controlavam-no a partir de uma chama pré-existente; sem contar alguns que não tinham uma resistência maior a altas temperaturas e acabavam com as mãos queimadas.

Mas o controle do fogo pelos olhos era raro. Esse tipo de domínio era difícil de ocorrer, pois tratava-se de um controle à distância, com um índice mais elevado de concentração e, além disso, da resistência mais forte à temperaturas altas. O olho, sendo o órgão externo mais sensível, precisa dessa resistência, ou o contrário é capaz de deixar o indivíduo cego. Felipe não estava hesitando e nem suando, o que convenceu a John de que ele precisava dele para os Heróis.

Levantou-se da cadeira e começou a caminhar até ele, mas, subitamente, o cara que havia entrado pegou-o pela camisa e puxou-o brutalmente para fora da mesa. Todos ficaram confusos, inclusive John, que ficou sem ação.

O olhar que ele lançou ao caixa explicou tudo. A mulher não estava mais lá, contudo havia respingos de sangue espalhados pelo balcão.

O homem puxou uma arma do bolso e apontou para a cabeça de Felipe.

O silêncio caiu sobre o lugar.

Felipe tentava compreender o que estava acontecendo, enquanto que os outros ficavam estáticos, olhando apavorados para a arma.

— Não se mexam, ou eu atiro. - o homem falou, alto. Não estava com coragem, parecia nervoso, como se aquela fosse uma tarefa que ele precisava fazer, mas não quisesse.

Os meninos lançaram um relance a John, que, ainda em estado de choque, olhou para o homem. Ele vestia uma camisa marcada por listras vermelhas e pretas, com um número atrás. Havia um nome debaixo, mas isso John ignorou. A calça era jeans preto, com tons azulados e o tênis estava velho e desgastado, com a sola descolando e os cadarços encardidos.

— Bora, bando de porra, me dá logo a porra do dinheiro!

Eles começaram a mexer nos bolsos, tentando encontrar qualquer tipo de dinheiro. Arthur achou dois reais, a menina que John deduziu ter o nome de "Karine" tirou do bolso apertado a quantia de dez reais, o outro tirou cinco e o último menino tirou vinte reais. O assaltante recolheu o dinheiro com a mão trêmula, apressadamente. John finalmente recobrou os sentidos e andou até o homem. Recusava-se a deixar que levasse o dinheiro deles.

— Ei, senhor.

Ele cravou a arma na cabeça de Felipe, e o menino fez um semblante de dor implacável.

— VAI PRA TRÁS! - berrou. Atrás dele os outros tremiam. Uma das meninas começou a chorar.

John recuou. Não queria que ele matasse o garoto. Sua mente trabalhou em uma conversa que poderia convencê-lo a interromper o assalto.

— Isso é realmente necessário, cara? - a voz de John era normalmente grossa, mas agora ele ouviu-se muito nervoso.
— Volta pra lá, eu vou matar ele!
— Por favor, me escute, senhor. Olha que o que você está fazendo. Eles vão ficar traumatizados.
— Olha, eu não sei quem tu é, mas se tu não voltar, eu avisando QUE EU VOU MATAR ESSE VIADO! - as veias de sua garganta revelaram a força posta no grito. Os garotos começaram a tremer e a outra menina começou a rezar entre as lágrimas. John recuou ainda mais.

Felipe olhou para John. Seus olhos eram castanho-escuro, profundos e amedrontados. John soube na hora que conhecia ele de algum lugar, já havia visto ele em determinado momento de sua vida, mas não sabia quando.

— P-por favor, moço, eu tenho duas famílias para onde v-voltar... - a voz dele convenceu a John de que havia algo extremamente importante. Fosse quem fosse, John precisava descobrir mais sobre Felipe, não podia deixá-lo morrer. E não ia.

O homem só pareceu notar ele agora.

— Cala a boca! Cala a porra da tua boca!
— Senhor, por favor, há outras maneiras de ganhar dinheiro na vida. Há trabalhos que você ganha cinco mil por mês.
— Se tu falar mais uma vez eu juro que...
— Por favor, não, moço... E-eu quero realizar meus sonhos, quero crescer, viver uma vida normal, por favor, d-deixa eu ir... Por favor... - as lágrimas que desceram pelo rosto daquele menino foram como facas no coração de John. Mal sabia quem ele era, mas já tinha uma vontade implacável de protegê-lo.

O homem puxou a trava.

Toda a cautela transformou-se em raiva. John sentiu os músculos enrijecerem e crescerem de tamanho e grossura. Como um verdadeiro NERD do mundo mutante, ele soube que sua pele havia ficado quatro vezes mais resistente a qualquer agente externo, sua massa muscular pesava agora quinze quilos a mais. A visão focaria com mais intensidade os objetos próximos. Os ouvidos captariam somente frequências mais altas e o nariz ficaria praticamente inútil.

John afastou-se. As mãos amaçariam aço triplamente reforçado, e ele não queria matar a espécie que ele defendia. O homem olhou diretamente nos olhos de John, mostrando o quão nervoso ele estava.

— Segundo aviso! - olhou para o outro menino. Esse tinha o cabelo curto, crespo, e a pele morena. - Você, vai pegar o dinheiro que tá naquelas caixas. Agora!

Quando ele levantou, John aproximou-se um pouco.

O homem voltou a olhar para John.

— Volta pra lá, eu tô avisando! Você não quer ser responsável pela morte desse menino, quer?

A troca de olhares que se seguiu assemelhou-se a uma rápida batalha. John, por fim, afastou-se duas mesas, levantando as duas mãos e agora atento a qualquer falha do homem.

O menino levou tempo demais pegando o dinheiro. O homem não vacilou nem uma vez, frustrando ainda mais a John. A voz, antes nervosa e hesitante, agora estava coberta de uma razão própria e superioridade inexistente. Todos ficaram um pouco mais calmos, com a certeza de que ele iria embora.

— Me traz logo a porra do saco! Tu é lerdo demais, caralho! Volta pra mesa. Tu também, ô, Justin Bieber! - olhou para John, um sorriso maníaco no canto do rosto indicando a falta de sanidade - Junta as mãos e bota a cara no chão! Nem tenta fugir, ou eu mato ele! É, é, assim. Vem comigo, senhor futuro.

O homem arrastou Felipe até a escada, sem nunca tirar a arma da cabeça dele. A sacola de dinheiro estava suficientemente transparente para que John visse o roubo de mais de quinhentos e cinquenta reais. Ninguém se mexia, todos ansiosos para que o homem fosse embora. Ele demorou tempo demais perto da escada, parecendo indeciso. No chão, John viu quando os joelhos de Felipe tocaram o chão.

— Não podem haver testemunhas - ouviu-se.

A face de Felipe transformou-se em uma completa demonstração de terror alguns segundos antes, quando o homem puxou o gatilho; o som do disparo foi abafado por um silenciador. O grupo gritou e John olhou-o, com toda a raiva pronta para ser liberada. O corpo de Felipe caiu no chão, os olhos, agora mostravam a natural ausência de emoção de um morto. Do buraco em sua garganta, uma grande poça de sangue começou a se formar.

O assaltante caminhou até uma das mesas, parou em frente a ela, e disparou mais uma vez, na direção dos outros. John havia se deitado na direção da escada, por isso não conseguiu ver o que aconteceu, entretanto ele ouviu, quase inaudível, o som de uma mesa caindo. Um grito e um baque. Seguiram-se quatro disparos, todos rápidos, consecutivos. O homem estreitou os olhos na direção da mesa.

O que antes era irritante, poderia ser, agora, o indício de que todos haviam morrido. Nem um som podia ser ouvido de lá. Nem as meninas gritavam, nem o movimento, muito menos gritos de socorro. "Ele matou-os...". E agora ele se virava para John...

Que levantou-se de um salto, olhando diretamente para o cara. Ele levantou a arma para o William herdeiro e puxou o gatilho. A bala perfurou o braço direito de John de maneira inútil. A dor evaporara em raiva. O gatilho foi puxado pela última vez, pois as balas haviam acabado - dessa vez ele errou, a mão tremendo. O homem jogou a arma na direção de John, que simplesmente levantou a mão, pegou a arma em pleno ar e a jogou de volta.

Vendo o súbito perigo em que se encontrava, não foi nenhuma surpresa quando ele correu para a escada, desviando do corpo de Felipe, e descendo em uma velocidade extra. A arma havia se chocado de encontro com a parede e quebrado grande parte da madeira que havia lá. Haviam respingos de sangue no caixa e na parede próxima à mesa onde os meninos estavam. Felipe havia morrido, provavelmente o único mutante com poder de fogo óptico. John sangrava no braço direito.

Detrás dele, dois meninos se levantaram e caminharam até a escada. Surpreso, John percebeu que eles estavam vivos; isso o deixava menos preocupado. Quando olharam para baixo, começaram a vacilar, hesitando o olhar para o corpo. As duas meninas saíram em seguida e, chocadas por verem a vida de seu amigo esvaindo-se pelas escadas abaixo, começaram a chorar. A de cabelos cacheados abraçou Arthur e a outra simplesmente virou-se, sem aguentar.

Os seguintes murmúrios foram de lamentações e relatos de dor. A menina dizia que a culpa era dela, por ter convencido Felipe a vir; a outra dizia que era culpa dela por ter sugerido. Voltaram a chorar, mais e mais; soluços desesperados e inconsoláveis, tremores e berros que invadiram o local, tocando a canção mais triste que aquele lugar jamais veria.

Passaram-se alguns minutos antes que John percebesse que haviam inicialmente seis deles: os dois meninos e as duas meninas estavam na frente dele, um deles morrera e faltava o outro. Quando olhou para o fundo, desconfiou de quem era aquele sangue. Nenhum deles estava ferido, nem mancando.

Enquanto caminhava até a mesa, John temeu o que iria encontrar. Sabia que não era coisa boa, sabia que poderia ser tão ruim quanto suas tentativas de salvar Felipe.

Mas era somente o corpo inconsciente do quinto menino, deitado com a barriga pra cima. O braço esquerdo estava coberto de sangue e a mão direita estava deitada sobre o ombro oposto, onde sua clavícula havia sido estourada com o impacto da bala. Uma poça de sangue se formara em volta de seu pescoço, e continuava a se expandir. Os olhos estavam entreabertos, os lábios se mexiam e a barriga subia e descia em um ritmo quase imperceptível.

A audição de John nunca fora boa. Ele não ia pedir para que o menino falasse mais alto, nem que respondesse como estava. O que quer que ele tenha falado, permaneceu desconhecido. O baixo tom de voz impediu ele de ouvir, mas, analisando seu estado, John interpretou o que ele achava ser um pedido de socorro. Ele havia perdido quase 1/4 do sangue e ia continuar perdendo pelos próximos dez minutos. Não havia nenhuma chance de sobrevivência para ele.

John levou sua mão até os olhos dele e os fechou. Esperava que a certeza da morte agilizasse o processo, ou ele iria morrer lenta e dolorosamente.

— Não... Mais um, não...

Correu até o caixa, ignorando o corpo da mulher no chão e os respingos de seu sangue, procurando um telefone. Haviam papéis, canetas e... Um telefone.

— Alô? - disse John, apressado, tenso e ansioso. Discara o número mais rapidamente possível.
— Alô, John Williams?
— E-eu! - ele estava atordoado demais com o menino morrendo para prestar alguma atenção ao fato de que a mulher que respondeu conhecia seu nome.
— Aqui quem fala é Brenda. Preciso ter uma palavrinha com você.
— Mas tem um menino morrendo aqui!

Seguiu-se um breve silêncio um tanto quanto constrangedor.

— Ok, eu sei que seu tipo sanguíneo é O- e que você não tem nenhuma doença transmitida por sangue. Então prepare suas veias para uma transfusão de sangue. Assim que chegarmos...

Após ela falar isso, o vento assobiou nos ouvidos de John. Quando ele olhou para o meio da sala, viu a mulher que falava com ele, junto a quatro outras pessoas. Todas elas tinham algo em comum, além de serem mutantes.

A mulher tinha a estatura baixa, cabelos loiros pintados e lisos. Usava óculos, grandes, mas que destacavam uma certa beleza. Era relativamente magra, mas exalava uma aura que logo preencheu John com uma calma e paz descomunais. Sua voz era melodiosa, um tom agridoce de fino e grosso.

— Olá, John! - falou a mulher, do outro lado da sala. - Eu sou Brenda. Bem vindo à AVR!
Ele não compreendia.
— O que é "AVR"?
— Associação de Vilões Revolucionários!

John olhou para o que havia detrás dos óculos grandes: duas pupilas que brilhavam intensamente, vermelhas, convidando-o a uma realidade nova.