Heróis e Vilões - Um mundo de poderes

Pizza de um milhão de coisas estranhas


A cabeça latejava de maneira intensa quando Fernanda, lentamente, abriu os olhos. Estava em casa, deitada na sua cama, com uma roupa limpa e o cheiro de sabonete. Sua mãe mudara a cama de lugar, deixando-a no meio do quarto. "Uma mudança bem ousada... Ela sabe que eu fico rolando encima da cama."

Essa nova posição dava uma perspectiva estranha. O guarda-roupa marrom-escuro, antes a dois quilômetros de distância, estava agora a dois metros, assim como a parede esquerda, agora com um criado-mudo, cheio de roupas sujas encima. A porta, pintada de um amarelo desgastado - Fernanda ia repintar aquela porta, algum dia; ela pensava nisso há dois anos - agora encarava diretamente ela nos olhos, no meio do quarto. "Pelas barbas do profeta!", pensou Fernanda, sentindo-se a pessoa mais engraçada do mundo; "ela comprou uma porcaria de cesto pra colocar roupa!". Pelo menos era um cesto bonito, da cor laranja.

A felicidade tomou conta dela. Estava em casa, descansada e segura. Em sua vida como Heroína dificilmente tinha essa liberdade, estava sempre saindo por aí, tentando se divertir, mas sempre acabava atacada. Sua mãe provavelmente também estaria, pois havia sido demitida do emprego.

"Espera!", pensou uma Fernanda confusa e subitamente assustada; "como eu sei que ela foi demitida?".

Não teve muito tempo de refletir sobre isso, pois a porta abriu-se. Luzia entrou no quarto, com um sorriso desconfiado no rosto e os olhos cheios de veias. Fernanda tinha tanta saudade dela, que só não chorou porque ainda estava com a névoa do sono no corpo.

— Bom dia, Fefe - disse ela.
— Mãe, a senhora fumou pó?

Ela riu.

— Não, querida - tornou a rir. - Eu só... Tava lendo fanfiction.
— Mamãe e suas fanfictions. Era Yaoi?
— Tu sabe que eu não gosto de Yaoi.
— Então era romance e tragédia?
— Ah, esquece... Como você está? - Fernanda odiava quando a mãe driblava suas perguntas. Dessa vez, engoliu o ódio.
— Considerando que eu tô em casa, falando com a pessoa que eu mais amo no mundo, saudável, segura e protegida... Eu estou bem.

Luzia assumiu um semblante carinhoso, aproximou-se de Fernanda, ergueu-a na cama abraçou-a.

— Eu te amo, filha...
— Eu também, mãe... - havia algo de errado o cabelo dela. Fernanda franziu o cenho quando ela se afastou. - A senhora mentiu pra mim? Tá com cheiro de... Pó!
— Eu não tô fumando, minha filha. Aquela fanfiction era muito triste! - ela passou as mãos nos olhos. - Viu! Sua mãe não é uma viciada! É, só em fanfiction... Agora, bora lá pra sala porque Mariana veio nos visitar.

Luzia deu as costas e caminhou para fora, fechando a porta atrás de si. Seu cabelo levemente cacheado estava com cheiro de cocaína, Fernanda tinha certeza. Se não era, talvez fosse qualquer outra droga.

Fernanda demorou mais que queria para se lembrar de quem era Mariana. Após pensar um pouco, recordou-se de um cabelo cacheado, sorrisos quase a cada segundo e o cheiro de galinha pairando no ar. Mariana era a tia mais engraçada que Fernanda já pensara em ter. Ela tinha o mesmo poder que sua mãe: telepatia. Conseguia ler pensamentos e desejos de pessoas. Fernanda nunca soube como funcionava isso, mas sabia que ela conseguia. Lembrou-se de uma ocasião em que ela e uma amiga quebraram alguma coisa e Mariana olhou para cada uma. Fernanda havia sido a culpada, e Mariana a apontara como tal. Sua outra amiga, entretanto... "Marcela!" Fernanda hesitou... Então o desespero tomou conta dela.

— Não, não, não... É só um pesadelo, vou acordar... - fechou os dedo em volta da barriga e torceu-os. Uma dor irrompeu da área onde ela havia se beliscado. Fechou os olhos, contorcendo a face em um redemoinho de dor.
— MÃE!! - berrou, recusando-se a acreditar que Marcela morrera.

A mãe chegou no quarto, desesperada, e olhando em todas as direções.

— Fernanda? O que foi, o que aconteceu?
— Marcela... - tentou falar em meio ao choro. - Ela...

Luzia olhou para Fernanda com olhos compreensivos e tristes. O clássico olhar de quem já havia passado por isso várias vezes, culminando em experiência. Mas ainda triste por ter de relembrar tudo sempre que fosse contar.

— Fernanda... Você devia estar feliz porque ela se foi. Pense no lugar maravilhoso ela possa estar.
— Mas ela não era muito religiosa.
— Filha, qualquer lugar pode ser melhor que esse. Ela agora não vai ser obrigada a viver toda a tortura e dor que é estar vivo.
— A senhora faz a morte parecer tão boa - Fernanda estava mais calma agora. Falar com sua mãe sempre a acalmava.
— Eu só quero tirar essas lágrimas do seu rosto... - passou os dedos pelas bochechas molhadas. - E te fazer pensar de outra maneira.
— Agora tô com vontade de morrer. Não quero mais sentir a dor de perder quem amo - somente a menção de imaginar a mãe morrendo fez Fernanda, agora sentindo-se estupida e infantil, chorar de novo.
— Filha, a morte não vai resolver seus problemas. Vai deixar tudo pior. Pense em um momento pós vida onde há espíritos vagando por aí. Alguns estão satisfeitos, pois em vida tiveram tudo resolvidos. Mas outros ainda vagam por uma terra desolada, preocupados e aflitos, atormentados de tanto verem seus problemas piorarem e se agravem ao ponto de explodirem em uma sucessão de tragédias.
"A morte pode parecer a única verdade e certeza pela qual lutamos e estamos dispostos a seguir. Nós, humanos, sonhamos, lutamos e brigamos por tudo o que queremos, e isso nos mantém distraídos do fim... E quando ele chega pode ser um choque. Entretanto essa possível realidade pós vida pode ser a maior satisfação, se você persistir. As coisas só são mais fortes que você, se VOCÊ deixar que sejam."

Fernanda olhou para sua mãe, cujos olhos vidrados exploravam os cantos do quarto. Quando ela olhou para lá, nada havia de especial, mas Luzia jogava toda a sua atenção e concentração naquele canto. Seu olhar estático logo começou a lacrimejar, a luz refletida em seus olhos dando a ideia de brilho. E, incrivelmente, Fernanda já estava mais calma. Nenhum dos lúgubres pensamentos de espíritos ou vingança estava mais culpando-a por algo. O sentimento ainda persistia, mas não estava tão forte quanto antes; ela sabia que sua melhor amiga se fora para sempre, entretanto ela tinha uma sensação de rejuvenescimento. Uma nova inspiração a incitava seguir adiante. O motivo pela qual Fernanda não sentia mais vontade de morrer era desconhecido, mas tão forte que ela não pôde ficar com aquela cara de tristeza.
O que a fez sorrir. Ela teria chances de completar seus objetivos. Viveria uma vida cheia de sonhos e vontade, aproveitando-a ao máximo. Viajaria pelo mundo afora, exploraria cavernas e escalaria montes. Se não fosse o suficiente, criaria mundos para si mesma. E a satisfação ia ser tremenda. Faria tudo isso em homenagem àquela que sempre lhe ajudou em momentos difíceis.

Sua mãe olhou para ela e sorriu também, passando a mão pelos olhos da filha, enxugando as lágrimas e apagando os últimos vestígios da lúgubre tristeza com a qual quase morrera.

— Mariana tá mesmo aí? - perguntou uma Fernanda entorpecida pela inspiração de vida.
— Sim. Você quer vê-la?
— Quero. Quero sim - sempre que Fernanda estava na casa de Marcela, a mãe da amiga aparecia, relembrando avisos e dando risadas. Vê-la seria uma boa lembrança.
— Então vista alguma coisa, ela quer falar logo com você.
— Calma, mãe, ainda vou banhar.
— Não precisa banhar, você já está limpa.

Subitamente uma memória a assaltou. Chegou em casa, aparentemente à noite, com uma mochila nas costas. Usava a farda escolar e tinha os sapatos nos pés. Mexeu no interruptor da sala e jogou a bolsa em um sofá, caminhando até seu quarto. A toalha estava encima da cama, do jeito que ela deixara quando saíra de tarde. Pegou a toalha e caminhou ao banheiro.

Fernanda levou seu braço ao nariz e cheirou. De fato, o sabonete ainda tinha seu cheiro clássico.

— Verdade... Eu tô esquecida hoje.
— Não seja por isso, vambora!

Optou por uma camisa preta com caveiras fofas costuradas com linhas brancas e azuis. Para as pernas, pegou um short jeans que chegava à altura do joelho. As sandálias deviam estar novas, visto que ela as havia comprado na semana passada, porém estavam um pouco amareladas, sem contar que lhes faltava a natural maciez de uma sandália nova. O cabelo loiro estava escovado, naturalmente, caindo para a direita e para a esquerda, lisos e chegando aos ombros.

Quando olhou para baixo, Fernanda sentiu-se confortável com as roupas que usava... Mas um súbito incômodo nas costas a assaltou. A camisa não era apertada, mas isso não a impedia de enviar tremeliques de dor cada vez que tocasse as costas dela. Fernanda decidiu ignorar a dor. Se não estava lá antes, ia acabar sumindo depois.

A mãe de Marcela Philliams tinha um olhar vidrado, fitando intensamente a mesinha sobre o tapete na sua frente. Os olhos tinham a cor marrom comum da família Philliams, mas a parte branca estava injetada. "bem, só falta EU ter fumado um pó". Seu cabelo, normalmente de um cacheado breve, tinha agora um liso artificial, o que deixava em destaque uma serenidade incomum. Fernanda nunca se lembrou de Mariana Philliams como roliça, mas agora que a olhava percebeu que havia tido um aumento de volume em suas bochechas e braços, sem contar com a barriga volumosa que havia debaixo daquela camisa alaranjada.

Mas, à despeito disso, a visão daquela mulher de trinta-e-oito anos lhe trouxe uma paz interior. Fernanda ficou muito feliz em vê-la, tanto que pronunciou seu nome vagarosamente, saboreando cada palavra e sabendo que um sorriso a aguardava.

— Mariana!

Ela sorriu de volta, calorosamente. Parecia contente em saber que pelo menos a última lembrança da infância da filha ainda estava viva.

— Oi, querida... Como você está?
— Bem... Bem! - Fernanda sorriu, lembrando-se de que Mariana era a mãe dos trocadilhos.

A risada de Mariana despertou boas memorias da infância de Fernanda. Tempos em que ela corria pela casa, brincando de pega-pega ou pique esconde com Marcela; em que Mariana sempre atrapalhava uma delas e ria da frustração das meninas. E também quando Luzia comprara um quebra-cabeça de seiscentas peças e Fernanda, Marcela e Mariana resolveram-no, juntas, em dois dias. Naquela época a mãe de Marcela não tinha um emprego fixo, só fazia uns "bicos" em vários casas, limpando ou cuidando das refeições.

"Ela ainda faz isso, ou já arrumou um emprego?". Fernanda não se lembrava.

— É bom ver você de novo, Nanda... - havia muito tempo desde que ela a chamara disso pela última vez.
— Own, vem cá, me abraça - ela ergueu os braços.

Mariana se aproximou e a abraçou cuidadosamente, como se não quisesse tocar em algumas partes do corpo de Fernanda. Ela estava trêmula, mas quente e aconchegante. Fernanda nunca havia prestado atenção, mas agora que o pensamento veio-lhe, percebeu que a mãe de Marcela tinha os seios avantajados voluptuosamente sob a camisa. Quando ela se afastou, Fernanda instintivamente olhou para trás e percebeu que os de sua mãe eram menores.

— Bem... - falou, querendo afastar os pensamentos - quais são as novidades?
— A Burger King faliu - disse Mariana.
— Mentira - retrucou Fernanda.
— Mentira - confirmou ela.
— Peacewings foi reconstruída.
— Isso é verdade.
— Isso é antigo. Quero algo NOVO.

Elas pareceram pensar duramente. Nada pareceu lhes vir à mente.

— Qual é, vocês não sabem de nada?
— A TV sabe! - disse Mariana, pegando o controle e pressionando o botão vermelho.

Estava passando um telejornal, informando sobre o futebol. Um tiro de canto lançou a bola na área do gol, então um dos atacantes tentou dar um chute de bicicleta, mas o bico da chuteira acertou o rosto de um zagueiro do time adversário. Um tumulto começou, com os torcedores correndo e invadindo a área enquanto policiais equipados com cassetetes e escudos reforçados adentravam, tentando conter a multidão furiosa. Uma ambulância chegou e os homens que estavam lá puseram o jogador dentro do carro, enquanto ele gritava constantemente.

— Ele está desacordado desde o jogo, e os companheiros de time estão desolados. A partida foi cancelada pela CBF, e o jogador que deu o chute foi processado por danos físicos.

Então a matéria focou nos âncoras, que anunciaram o clima.

— Algumas frentes frias chegam do sul e causam chuvas em alguns estados nas regiões sul e sudeste do país. No nordeste há chances de precipitação nos estados da Bahia e Sergipe. Já em Lancing Lord o tempo estará nublado e cairá uma chuva fraca no fim da tarde. No Norte, o sol aparece, com máxima de 30 graus e mínima de 25.

A matéria mais uma vez mudou e, dessa vez, os âncoras anunciaram o intervalo.

Luzia falou:

— Que milagre eles citarem Lancing Lord.
— Pois é, parece até que não existimos.

Fernanda nunca havia parado pra pensar porquê LL era pouco mencionada nos jornais. Geralmente era citada apenas quando o clima era anunciado, e quando o falavam era estranho que o português dos outros países era misturado com a única cidade brasileira de nome estrangeiro. Decidiu que ia pesquisar depois.

— Por falar em existir, tu leu o livro que eu te emprestei?
— Ainda não tive tempo, Luzia... Tenho estado ocupada. Vários barões no bairro São Francisco estão sem empregadas e eu, fazedora de bicos, saio ganhando.
— Nossa, imagino que tu ganha muito... Quanto, por média?
— Tem dias que eu chego à noite com duzentos reais, mas o máximo que eu trouxe foi quatrocentos, quando eu fui em cinco casas diferentes.
— Sério que tu já ganhou QUATROCENTOS? - Mariana assentiu. - E quanto que tu cobra?
— Varia. Alguns barões têm dois filhos e quatro tios em casa, o que dá vinte reais por prato de comida. Aí faz vinte vezes seis, quanto da, Fernanda?
— Tia, a senhora sabe que matemática não é meu forte... Mas dá 120.
— Caramba... - exclamou Luzia - Mariana tá podendo, hein!
— É, mas como eu disse, varia. Não é só porque eles são ricos que vão gastar R$ 120,00 em um almoço e janta, então tenho que negociar antes.
— E eles gostam da comida?
— Eu falei com um amigo meu, o Júlio; ele tem um poder de inteligência; aí eu falo pra ele do que os barões gostam e ele me diz a melhor combinação. Ele basicamente me diz a receita inteira por telefone.
— Hum... - Luzia olhou para Fernanda. - Tá com fome, Fernanda?
— Tô. Tem comida?
— Tem um resto de pizza no microondas. Se quiser ta lá.
— Pizza de quê?
— Me esqueci.

Fernanda levantou-se e caminhou para a cozinha, passando pelo quarto da mãe e depois pelo seu.

A cozinha estava limpa, com a geladeira brilhando, branca, contra a lâmpada acesa. O fogão, no outro lado, estava fechado, com as panelas na pia à esquerda. O microondas ficava sobre uma mesa de parede, próxima à geladeira. Quando Fernanda abriu a tampa frontal, o cheiro de queijo invadiu suas narinas. "pizza de quatro queijos... A favorita de Marcela... A melhor maneira de fazer minha primeira homenagem a ela."

Comeu uma grande fatia, próxima à mãe, escutando a conversa dela com Mariana. Elas falavam agora sobre chocolates e salgadinhos. Luzia ia citando algo sobre sushi quando três batidas na porta foram ouvidas. Mariana caminhou até a porta, olhou pelo olho mágico e perguntou:

— Quem é? - ela deve ter ouvido algo, então abriu a porta. - Oi, Keyla. Como... O que aconteceu?

Fernanda olhou para a porta e observou a face do desespero. "Keyla" aparentava ter seus cinquenta anos de idade, pois sua pele era bem tratada. Apenas algumas poucas rugas circulavam seus olhos e sua boca. O cabelo era uma cacofonia de preto e loiro, salpicado nas raízes de um branco que indicava a idade. Os olhos eram grandes, marrons, molhados de lágrimas. A boca tremia quando falava, e ela era bem alta, para alguém com cinquenta, com seus 1,67m de altura, ou mais. Sua voz estava falha, embargada pelo cruel sofrimento que o desespero trazia.

— Mari... Por favor... Meu filho... Me ajuda... Por favor!

Fernanda não sabia quem ela era, mas tentou ligar os pontos: Mariana a conhecia, ela chorava por um filho... E o cabelo loiro, mesmo em pouco destaque, a fazia pensar que sabia quem era Keyla. Estava mastigando o segundo pedaço quando sua mãe levantou-se, olhando assustada para a porta. Correu para lá enquanto Fernanda deixava o resto do café da manhã encima do sofá.

— Quem é ela, Mariana? - indagou Luzia, no ímpeto da curiosidade.
— A mãe de John, aquele menino que ficava com Marcela.
— Ah.

Fernanda achou que ela fosse uma versão mais velha dela própria, que, de alguma maneira, voltara no tempo.

Olhou para a mulher, com interesse novo, tentando não parecer insensível:

— O que aconteceu, Keyla? - perguntou Luzia.
— Meu filho... Ele... QUER SE MATAR!

Fernanda notou quando a expressão curiosa de Luzia logo virou choque. Mariana estivera assustada desde o início, e agora não era diferente, mas Fernanda olhava para elas, o semblante tão imparcial quanto podia. Não queria mostrar desrespeito dizendo que não se importava com John, mas também não queria parecer sarcástica demonstrando interesse.

Mariana e Luzia, normalmente calmas, começaram a falar ao mesmo tempo. Kayla recomeçou o choro e Fernanda engoliu a , deixando as mãos livres. As vozes aumentaram até que nada mais era compreensível. Fernanda jogou suas mãos contra as bocas das mulheres que gritavam. Então falou:

— Berrar não vai resolver.

Esperou até que estivessem um pouco mais calmas, então libertou ambas. Não havia percebido, mas suas mãos haviam crescido duas vezes mais, adquirindo a clássica cor amarelo-queimado dos grãos de areia. Quando as recolheu, sentiu dificuldade de manejar as mãos para voltarem a ser humanas. Por mais que fizesse força de concentração, suas mãos não queriam voltar ao normal.

Mas acabou voltando depois que escutou à conversa. Aparentemente John havia ido para um restaurante pela manhã de segunda-feira, querendo tomar café. Fernanda de algum modo sabia que era quinta, o que indicava tudo ter acontecido três dias atrás. Um assalto ocorrera naquela localização e o Herói mais heróico do mundo mutante tentou impedir tudo pela diplomacia.

Antes dela terminar de falar, Fernanda deduziu tudo, mas ainda assim escutou ao que ela disse:

— O bandido pegou o menino pelo pescoço e jogou ele no chão e atirou nele... Depois atirou em John e nos outros que estavam com ele... - então ela meio chorou, meio falou, mas Fernanda entendeu que ele errara três dos quatro tiros disparados contra os outros e que um deles decepara o ombro de um deles. Nesse ponto, Luzia abraçou ela e a deixou mais calma, mas não tirou sua voz chorosa e hesitante: - O tiro não perfurou muito o braço. Os médicos disseram que era porque a arma do bandido tava falhando... Mas depois colocaram um pano nele e disseram pra mim que ele ia ficar em repouso numa UTI... Eu não entendi foi nada, mas eles levaram ele mesmo assim...
— E cadê ele? - perguntou Fernanda.
— Ele voltou pra casa dele ontem e me ligou antes de dormir. Ele parecia feliz, mas de manhã tinha uma mensagem dizendo "adeus, mãe. Nos vemos de novo no além"... Eu fiquei assustada e decidi ir na casa dele e quando eu cheguei lá, ele tava com um facão todo afiado no pescoço, chorando o tempo todo. Aí, eu... Tentei conversar, mas ele tava gritando muito, dizendo pra eu ir embora, que não era pra eu tar lá... Aí eu não soube mais o que fazer e vim pra cá... Por favor, me ajudem!

Fernanda considerou voltar e engolir o resto de sua pizza. Queria ir pra cama, pegar em seu celular e passar o resto do dia nele. Sair pra cidade e comer no Burger King, como sempre fazia. Tentar estudar os assuntos novos do seu curso, o qual ela nem se lembrava mais de que era.

Mas Luzia e Mariana já haviam decidido que iriam ajudar. Fernanda não queria parecer careta, então teve que ir junto. Prometeu que John iria pagar caro por ter que fazê-la deixar seu prato.

O dia havia mais uma vez inaugurado na Parte Dois em Lancing Lord. As casas características de um residencial lembravam a Fernanda desenhos animados, em que quase todas as casas eram iguais. A diferença estava na cor e nas várias características pessoais que as pessoas adicionavam ao local, dentre elas, pinturas, gramado, garagens, algumas tinham piscinas e até mesmo árvores, aqui e acolá. Frequentemente Fernanda perdia o foco olhando, boquiaberta, a beleza que aquele conjunto de casas trazia, em uma paisagem harmoniosa e calma... Nada comparada aos estados de Luzia ou Mariana.

A casa de John ficava a quatro longos quarteirões da de Fernanda, o que significava pelo menos dois quilômetros de caminhada/corrida. Em situações normais ela e Marcela fariam esse mesmo percurso em uma hora ou mais, entretanto sua corrida agora era tão frenética que chegaram lá em trinta minutos, ofegantes e suando.

Keyla abriu a porta, depois de passarem por um gramado aparentemente mal cuidado, todo sujo de pedaços aleatórios de lixo e folhas decompostas. Dois enormes formigueiros estavam dispostos em lados opostos, próximos a uma cerca. "A casa de John... Acho que vou voltar aqui pra jogar uns pedaços de papel higiênico". Tinha uma fachada simples, com as paredes de tijolos pintados de branco e a porta de madeira entalhada, mostrando fogo.

Mas dentro a bagunça era maior, consequentemente pior. Fernanda, olhando para aquele lugar, imediatamente sentiu repulsa completa. Para aonde quer que olhasse, haviam coisas sujas e usadas, penduradas, arremessadas ou pregadas. Cuecas, papeis, plásticos, sacolas, carcaças de sucos, restos de comida, roupas, sapatos ou insetos; aranhas, baratas e formigas eram o destaque, mas Fernanda não duvidava ter outros tipos de bichos asquerosos junto.

O cheiro de mofo e roupas sujas molhadas e abafadas vinha da cozinha, onde uma pilha de louças sujas disputava espaço com baratas e piolhos-de-cobra.

Quando ela entrou na casa viu a sala, e, após caminhar um pouco, viu um caminho para a direita, que levava para o banheiro, a lavanderia e os quatro quartos. No caminho afrente havia a sala de jantar, adjacente à cozinha.

— Não reparem na bagunça, por favor - Keyla falou. Sua voz havia voltado ao normal e agora tinha um timbre mais acentuado.
— Que bagunça? - disse Fernanda, repelindo uma risada.

No banheiro a bagunça não tocara. O chão estava limpo e as paredes escovadas. O espelho era a única coisa que estava menos limpa. Haviam marcas de dedo no centro. O chuveiro ficava em uma esquina da parede afrente, virada à esquerda. O vaso sanitário ficava de frente para o espelho, a pia um pouco mais para frente.

John estava lá. Olhava para seu reflexo. Havia uma faca de cozinha enorme, assim como Keyla havia dito. Seu cabelo preto salpicado de loiro estava bagunçado; ele estava sem a camisa, e em seus braços, onde marcas de cortes se espalhavam, fios de sangue faziam poças no chão. Sua face exibia uma expressão de profunda tristeza, os olhos tremiam mas a mão que segurava a faca estava estática, pressionada contra o musculoso pescoço dele. Não disse uma palavra, apesar de ver o reflexo da própria mãe no espelho. O espelho ficava na parede da direita, o que deixava John de lado.

Mariana fitava o pescoço de John. Luzia provavelmente pensava em uma maneira de fazê-lo desistir de morrer e Keyla começara a chorar de novo. Fernanda se afastou e foi para a sala, onde a televisão repousava. Um dos sofás estava menos sujo que o outro, o controle estava nele, e foi lá que ela sentou-se. Pressionou dois botões, mudando de canal.

O telejornal havia acabado, mas um plantão urgente havia começado dois minutos atrás. A matéria exibia a mais importante descoberta científica da medicina naquele século: a cura imediata de uma doença antiga, famosa por seu mosquito. A cura da dengue.

Na reportagem haviam várias pessoas em hospitais, sobre leitos ou até mesmo jogadas no chão. Médicos e enfermeiros se aproximavam deles, injetando um líquido espesso e transparente em suas veias. Fernanda não ficou surpresa quando soube que os russos eram os responsáveis pela descoberta; ficou surpresa quando soube que um dos cobaias voluntários era brasileiro; ainda mais quando disseram que era mulher. Os repórteres não tiveram autorização para falar com ela, mas uma foto 3x4 apareceu na tela.

Fernanda gaguejou.

Tremeu.

Chorou.

Não acreditou.

E, depois, ficou desesperada.

O cabelo dela era preto, liso, caindo até a costela. Ela tinha um olhar jovial, divertido, convidativo. Seus lábios finos e lindos estavam levemente curvados em um sorriso fraco. Os olhos castanhos-escuro eram o detalhe que mais chamou atenção de Fernanda. A pele dela era lisa, branca.

A sensação de rotina cansativa se evaporou. Algo novo acontecera. Algo que ela nunca esperaria acontecer. "Mas eu a vi ser enterrada!". Quando ela voltou a olhar para a televisão, a imagem sumira. O nome não fora revelado, mas só pela foto Fernanda sabia quem era. Nos últimos meses do ano passado, Marcela havia ido tirar uma segunda via de sua identidade. Lá tiraram uma foto nova, colocaram as impressões digitais e arrumaram tudo. No outro dia ela mostrou tudo para Fernanda, que riu da face dela. Aquela foto havia sido mostrada na televisão.

— CAI FORA DAQUI! - o berro de John foi tão alto que abafou o som da televisão.

Gritos foram ouvidos, seguidos do som de vidro quebrando-se. Em seguida Luzia e Mariana saíram de lá, e Fernanda procurou por sangue, mas elas estavam intactas.

— Fernanda, ele quebrou o braço! Tem sangue pelo chão inteiro! - berrou Mariana, deixando Fernanda com um peso imaturo no coração. Não gostava de John, mas Marcela gostava dele, e ficava feliz perto dele. Vê-la triste por saber que o namorado havia morrido seria desencorajador.

— Ela tá mentindo - assegurou Luzia. - Ele só quebrou uma xícara que tava cheia de leite estragado. Agora tem uma gosma branca e fedorenta no banheiro. E a mãe de John ta chorando de novo. Não tem sangue nenhum.

Fernanda olhou para Mariana, com raiva. Ela sorriu com o canto da boca.

Keyla não havia saído, percebeu Fernanda. Mal havia entrado ali e já queria ir embora. Estar lá fizera seu nariz torcer tanto que estava quase espirrando. O chão estava coberto por uma fina camada de terra e tudo parecia estar virado de cabeça pra baixo. Chegou pra Luzia e pediu pra sair dali.

— A gente tem que ajudar Keyla, Fernanda, John é muito jovem pra morrer! Além disso, é um Herói com poder de força. Esses são muito poderosos e dão ótimos aliados contra Vilões.
— Não me interessa, mãe - choramingou. - Me dá vinte reais que eu só apareço aqui no fim do dia.
— Você não vai sair de casa hoje. Eu preciso conversar com você mais tarde, só que agora a gente tem que dar apoio à Keyla, o filho dela vai suicidar-se!
— Por que ele quer se matar?
— Ele disse que tá tendo pesadelos com a morte de Marcela todos os dias, que recentemente percebeu que fez uma coisa da qual vai se arrepender pelo resto da vida, disse que não aguenta mais viver sem um propósito na vida.
— Marcela não morreu, mãe. Eu vi ela no jornal.
— Tu confundiu ela, Fernanda. Todos nós estivemos no velório. Você nem chorou.
— Apareceu uma imagem dela lá na televisão, era ela. Dizem que ela foi voluntária de alguma coisa.
— Tinha os cabelos longos, pretos, olhar jovial, um sorriso falso e era branca?
— Sim.
— O nome dela é... Algum nome chinês aí. Marcela está com Deus agora, filha.

Fernanda sempre foi cética quanto a existência de "Deus", mas não era isso que importava. Queria ir embora.

— Mãe, Marcela não morreu, se eu falar isso pra John ele vai querer viver.

Ela pareceu pensar um pouco, enquanto Mariana retornava da cozinha. "Quando foi que ela saiu?".

— É uma boa ideia, talvez dê certo. Mas é você quem vai falar com ele.
— O QUÊ? Por que eu?
— Você que "viu"! - ela olhou pra porta do banheiro. A luz estava ligada, branca e forte, com as sombras projetando no chão, alguns metros afrente.
— Tá bom, mas eu ainda quero vinte reais.
— Dez.
— Quinze.
— Feito. Boa sorte, John tá muito impossível hoje.

Fernanda caminhou para perto do banheiro. Seu corpo entrou em estado de alerta imediato, com o coração palpitando rápido o suficiente para ela saber que havia um perigo. Havia algo de errado com aquele banheiro. Direcionou sua concentração a seu corpo inteiro, que, agora, havia se transformado em um "boneco" de areia, andando cautelosamente. Qualquer dano que levasse resultaria em uma nuvem de areia pura.

Quando chegou na frente do banheiro e olhou para dentro, viu a mãe de John chorando, inconsolável, no chão, curvada. Seus soluços eram refletidos nas costas, que balançavam violentamente cada vez que outro surgia.

— João. - chamou Fernanda. Ela sabia que chamá-lo assim o deixava com raiva.

Ele estava encarando o espelho, uma expressão indicando um triste desespero. A faca estava pressionada com tanta força contra seu pescoço que ela chegou a temer qualquer movimento dele. Quando ouviu a "hater" chamá-lo, nem olhou para o lado, não se mexeu e a ignorou completamente.

— Tá surdo? Além de burro e porco ainda é surdo? - disse Fernanda, alto e em bom som.
— Sai daqui - respondeu, raivoso.
— Não vou sair. Você não manda em mim, não mandou e nem nunca vai mandar.

Ele não respondeu.

Fernanda, que já estava estressada por estar ali, falando com a pessoa que ela mais odiava no mundo, resolveu extravasar. Foi dominada por uma onde de ódio que só a permitiu ver uma solução.

Agarrou o pescoço de Keyla, notando o quanto ela era leve e alta. Moldou o braço direito afim de fazê-lo parecer uma grande lâmina. Fernanda ouviu a mulher gemer de dor quando apertou o braço contra o pescoço dela. Sentiu-a tentar lutar, e apertou ainda mais. A mulher agora não lutava e não falava nada, nem podia implorar pela vida.

— Tá, João Fortinho. Se tu não se virar agora mesmo e me olhar nos olhos, eu vou fazer sua mãe sofrer tanto que ela vai implorar pela morte.

Ele pareceu nem ouvir durante um tempo. Fernanda não ia fazer nada contra Keyla, falou aquilo somente pra fazer John se virar. Temeu que ele não estivesse dando importância para a própria mãe, que seu plano tivesse falhado... Mas levou apenas alguns minutos antes que ele aliviasse a mão e virasse o corpo.

— Sai. Daqui. Não quero machucar Luzia.
— Vai se foder, John. Eu não tenho medo de ti. Cai dentro, tu acha que vai me matar fácil porque eu sou mulher? Não é só porque você matou Marcela que vai me matar, né? Tu tirou metade da vida de Mariana, Luzia, de todos os amigos da Cecela, e agora quer tirar a da minha mãe também? Não vai.

Ele olhou para sua mãe. Os olhos ainda pareciam poças de dor, com as olheiras roxas conferindo-lhe uma aparência um tanto quanto tenebrosa. Abaixou a mão que segurava a faca e transformou a face em um oceano de raiva.

— E aí, vai me matar também? Herói que mata Herói tem mil anos sem os "ói" - Fernanda quase riu. - Ah, é: você JÁ matou um Herói. Seu covarde.

Ele caminhou e chegou perto de Fernanda. Ela ficou ainda mais atenta a qualquer movimento dele. Sabia que ele era bem rápido quando queria e que a rapidez em nada afetava a força anormal dele.

Ele ainda estava com raiva. Sua expressão facial comprovava isso. Ele parecia estar passando por casa momento triste de novo, a pupila balançando de um lado ao outro. Fernanda berrou e atraiu a atenção dele.

— Você é um estupido. Retardado, idiota e feio! - ela esperou ele olhar para ela com toda a raiva que conseguiu acumular. Então falou: - Mas pelo menos ainda vai ver Marcela de novo, mesmo que ela não te mereça.

Sua expressão não mudou, nem vacilou.

— Do que você tá falando?
— É, Cazumbá. Ela tá viva.

John abriu a mão que segurava a faca e a pôs na face. Desatou a chorar. Fernanda sentia que agora ele não ia mais querer se matar. Largou o resto de lixo que era a mãe dele no chão e chegou perto daquele brutamontes. Pôs uma mão de terra no ombro grosso dele e falou, ternamente:

— Além de burro, ainda é saco de batata? Para de chorar, ô nemo maromba.

Fernanda ia pensar em mais apelidos, mas, subitamente, John jogou os braços nas costas de Fernanda. Ele era, de um certo modo, baixo, mas Fernanda sentiu que seus ombros tinham a mesma altura. John chorava agora encima do ombro esquerdo de uma Fernanda perplexa. Os braços dela viraram gelatina, mas depois abraçou-o também, pra ver se ele ia embora logo.

Ele não era tão forte em seu estado humano quanto ela pensava. Seus braços eram normalmente bem grossos, mas tanto tempo na rotina sedentária envolvendo quase nenhuma comida o havia deixado relativamente magro. Surpreendentemente ele tinha cheiro de menta e seu tronco estava cheirando a um perfume quase discreto.

— Me larga, agora, antes que eu lhe...

Ela não terminou a frase. John puxou a cabeça para trás e empurrou-se para frente. Antes que ela pudesse perceber seus lábios estavam se tocando, voluptuosamente sobre uma sensação de impotência e ameaça.

Foi contra a vontade dela, ele praticamente a forçara a tal coisa. As mãos dela, antes abraçando-o, estavam agora empurrando-o, afastando-o. Ele saiu de perto, olhou para ela, sorrindo, feliz. Toda a tristeza e melancolia que antes havia nele agora haviam sumido. Ele riu, riu e riu ainda mais, jogando sua cabeça para trás, tremendo de tanta risada. Fernanda passou a mão na boca, limpando qualquer vestígio do dia mais horrível de sua vida.

— Obrigado por me salvar, Fernanda.

Ela olhou para ele, aquele sorriso estupido na cara feia e ridícula dele. Estava com raiva agora, transbordando. Marcela sempre gostou dele, mas Fernanda nunca quis estar perto dele. As bochechas dele eram roliças, uma maior que a outra. O olhar dele era curioso, como se fosse algum tipo de criança inocente demais, que repetia toda hora as mesmas perguntas. Claramente a sensação de que Marcela estava viva trazia uma sensação de completo alívio. O peso enorme que caía sobre as costas de John agora havia caído, e ele podia se sentir em paz de novo. Fernanda se sentia igual, e chegou à conclusão de que salvara a vida do mutante que mais manteria marcela viva.

Então inclinou-se para frente e deixou que os lábios dele tocassem os seus. John a abraçava forte, pressionando-a contra ele voluptuosamente. Ela perdeu a noção de tempo e tudo o que importava agora era a sensação que sentia enquanto John a beijava. Ele inclinava sua cabeça para o lado, mas quando Fernanda abriu os lábios, ele movimentou-se para o outro lado, sua língua agora mexendo-se sensualmente. Ele tinha hálito de menta, como se tivesse chupado uma balinha de Ice Kiss a pouco tempo. Ela não sabia o porquê de estar fazendo isso, mas deixou continuar.

Passaram um bom tempo ali, apenas sentindo um ao outro, enquanto Fernanda sentia uma agitação dentro de si. Quando John se afastou, ela quase pediu para ele ficar. Não pediu porque ele saiu do banheiro imediatamente. Berrou:

— Marcela tá viva!! Meu Deus, ela tá viva, Marcela!!

Fernanda olhou-se no espelho. Tinha os lábios vermelhos e uma sensação de estar nas nuvens. Havia uma torneira em uma pia grudada na parede. Ela fez uma concha com a mão e bochechou a água, cuspindo-a. Lavou os lábios da melhor maneira que podia, como se aquilo a livrasse da memória. Recuperou a postura: "Eu odeio ele. Eu odeio esse idiota que se acha.", pensou, enquanto saía do banheiro.

[...]


Às dez horas da noite, Fernanda saiu do banheiro. Almoçara pizza e jantara macarronada. Escovara os dentes e banhara como há muito não o fazia. A toalha estava tão mal arrumada em volta de sua cintura que, quando esticou o braço pra mexer no interruptor do quarto, ela caiu. Olhou para baixo. Seus seios haviam crescido tanto que pareciam duas melancias, cheias e idênticas, os bicos amarronzados. A barriga era uma alternância entre magra e gorda. Tinha a medida que Fernanda queria. As coxas eram grossas, sem estrias. Brancas como papel, Fernanda decidiu que iria à praia depois. O matagal, antes amarelo e espesso entre as pernas, agora estava raspado, revelando sua parte íntima. Fernanda se sentia satisfeita com seu corpo. Era seu, para fazer o que bem entendesse com ele.

Juntou a toalha, enxugou-se, vestiu a roupa de dormir e caiu na cama.

Estava cansada, pois aquele tinha sido um dia longo. Dedicou algums momentos de sua loucura pré-sonho para imaginar como encontraria Marcela. No jornal que assistira ela estava em outro continente, à mercê de cientistas que a usaram como cobaia. Se era voluntariamente, ela não sabia. Decidiu que iria investigar depois.

Além disso ela ainda não entendia como ela estava viva. Fernanda a viu ter a face esmagada por punhos. Ela sentiu o choque de todos quando aquela vilã pegou duas estacas de ferro e as enfiou em seus pulmões, o sangue jorrando a cada tentativa de respiro, a agonia presente na sensação da falta de ar, o corpo tremendo... E o toque sem vida que ela lhe dera quando a estavam levando na maca.

Enquanto fechava os olhos, Fernanda ponderou sobre tudo ter sido apenas um sonho. Então, sem nem perceber, estava no mundo do sonho.

Caída sobre o chão, próxima à duas paredes. Tinha um homem careca ao seu lado, a pele achocolatada escondida detrás de uma camisa coberta de sangue. Um terceiro homem apareceu de súbito e lhe desferiu um golpe na face. Ela apagou. O sonho a levou para uma localização diferente. Era estava cercada de paredes pretas, feitas de tijolos cobertos com sujeira. Pela lembrança proporcionada e a sensação de medo, estava num calabouço ou porão, amarrada junto ao careca. Ela sabia quem era ele, mas seu nome não lhe veio à mente.

Então chegou outro homem. Esse parecia ter uns vinte e nove anos, o cabelo preto coberto por uma coloração verde-claro, aparelho nos dentes e roupas laranja e vermelhas. Quando falou, a Fernanda do sonho não respondeu nada, então ele bateu nela.

Bateu de novo, de novo... A face de Fernanda se transformara agora em uma ruína de sangue, inchada e horrenda. Em seguida foi a vez do homem com quem ela acordara. Bateram nele com um bastão de baseball, seus ossos faciais rompendo-se diante da força bruta posta no golpe.

Jogaram Fernanda no chão, deixando-a com o sustento dos quatro membros. O homem apareceu com um chicote coberto de espinhos enquanto gritava alguma coisa, e Fernanda não abria a boca, apenas tremendo sobre o peso excessivo de seu corpo. O homem desferiu um golpe nas costas de Fernanda, com toda a força do corpo sob o golpe. O cabo do chicote penetrou na carne das costas de Fernanda, de onde mais sangue começou a jorrar. Um segundo golpe veio depois de outro momento de silêncio. Um terceiro, um quarto.

Até que um disparo foi ouvido.

Fernanda despertou tão subitamente que ainda sentia a dor. A noite era uma idosa. O luar passava por entre as brechas do seu telhado, trazendo um clima relativamente assustador. O silêncio era tão penetrante que se perguntou quem fazia mais barulho: ele ou os milhões de pensamentos que agora invadiam sua mente.

Então caíam lágrimas dos olhos de Fernanda. A dor era forte, penetrante e traumática. Levou a mão para detrás de suas costas e passou o dedo. Ela sentiu algumas irregularidades em lugares aleatórios, afundadas tenuemente, quase imperceptíveis. A costa estava mais áspera que normalmente.

A única memoria que ainda tinha deu-lhe um aperto no coração, quando se lembrou que dia era quando recebera uma ligação. "Deus... Era começo de abril... Estamos em junho...". Fernanda não sabia como ficara viva durante tanto tempo, nem como Marcela estava viva. A confusão lhe chegou, atormentadora e agonizante. "dois meses... O que aconteceu?".

Limpou as lágrimas e foi à cozinha. Pegou uma faca, à qual considerou suficientemente afiada, e foi ao banheiro. Quando pressionou a faca contra seu pescoço, somente areia jorrou. Tentou se bater e mais areia. Recuou e lançou sua cabeça contra a parede, usando o máximo de força que conseguiu, mas quando sua cabeça entrou em contato com a parede uma nuvem de areia se espalhou pelo chão do banheiro.

Fernanda estava agora seguindo seus instintos. Sentia a aspereza do chão e a quantidade de areia fina misturada à terra. Estava consiente dos milhares de formigas e vermes que rastejavam debaixo da estrutura de sua casa. Sentiu que podia fazer tudo e viver pra tudo... Mas permaneceu imóvel, apenas parada lá. Não era capaz. As coisas que agora pensava eram mais fortes que ela, por isso foi lá que passou o resto da noite.

Quando acordou, estava em sua cama, e não se lembrava de nada que acontecera na noite anterior.