Não estava muito afim não, mas... Acordei. Bocejei diante do fato de ainda estar com sono. Espreguicei-me, ainda deitada na cama de casal encostada na parede. Mexi o pescoço para o lado. A luz só estava lá por conta da janela acima da porta.

Olhei para a singularidade do meu quarto, um cômodo quadrado com uma pequena estante - de um metro -, cama, porta, pintura, ventilador e duas almofadas rosas e fofas. Havia também um cabide - um metro e cinquenta de altura - com várias das minhas roupas sujas. Um quadro de árvores com galhos fortes e folhas verdes com um oceano ao fundo era motivador. Parecia dizer "Você vai fazer mais do que pensa".

Eu queria que ele estivesse certo.

Levantei-me da cama, fiz minha higiene, tomei banho, escovei meus dentes e vesti-me. Tive vontade de usar minhas roupas normais, mas eu sabia que teria de usar minha farda escolar, junto com um tênis Allstar.

Minha farda era igual a que eu vi em meu sonho, exceto pela logo, que era uma pomba de asas aberta, o nome "Peace" na asa direita e "Wings" na esquerda.

Até achei estranho aquela logo ter me parecido familiar, como se eu tivesse acostumada com ela havia anos. Talvez tivesse sido apenas um sonho louco e aleatório mesmo... Um daqueles que a gente normalmente tem após uma conversa.

Só então eu percebera que não tinha arrumado meus livros escolares. Até porque minha mãe ainda não os comprara. Eu só tinha um caderno marrom de doze matérias que minha mãe comprara uns dias atrás.

Ah, esqueci de falar que se passaram umas semanas desde que eu tivera aquela visão. Aos poucos, pensando sobre isso, fui tirando a conclusão: Imaginação. Talvez somente um resquício de memórias ou minha imaginação.

Minha mãe pareceu feliz quando soube que eu apenas havia esquecido. Eu não falara para ela, mas ela, claro, devia ter percebido ao longo do tempo.

Eu também fiquei feliz por estar retirando este fardo das minhas costas e respirar como uma adolescente normal.

Êêêêêêêêêba.

Caminhei até a cozinha.

Por falar nisso, minha casa é pequena, pintada de branco por dentro. A primeira coisa que você olha ao entrar nela é um corredor pequeno com duas portas, uma na esquerda e outra na direita, que segue-se até a cozinha. Havia lâmpadas fluorescentes na sala, corredor, quartos, cozinha e banheiro.

O banheiro... Ele, por ficar perto da cozinha, seguia regras de higienização PESADAS. Sempre lavar as mãos ao sair; sempre dar descarga com a tampa fechada; SEMPRE dar descarga; limpeza a casa dois dias; organização sempre e outras coisas. Isso o mantinha cheiroso e agradável.

Vale salientar que eu forçara minha mãe a fazer um só pra mim em meu quarto. Ele ficava de frente para meu quadro do oceano, no outro lado do quarto.

Enfim.

A luz da cozinha estava ligada e de lá vinha um delicioso cheiro de café. Eu simplesmente amava café, uma de minhas bebidas favoritas.

Olhei de relance para a sala e vi a luz ligada, o mesmo com a televisão. Provavelmente minha mãe devia estar assistindo àqueles jornais matinais.

– MARCELA, querida, fiquei sabendo que o diretor do colégio contratou um motorista e comprou ônibus escolares!

Sim, aquela era um ótima notícia. Eu não teria de andar atééé o ponto de ônibus - no outro lado do mundo - para esperá-lo ao lado de várias pessoas agoniadas para irem trabalhar.

– Ele solicitou o endereço de todos, mas aumentou um pouco a mensalidade. O seu deve chegar em dez minutos.

O tempo que eu teria para tomar café e escovar os dentes, de novo.

Não havia presunto, queijo, requeijão, manteiga. Só os pães massa grossa amontoados em uma sacola branca de plástico.

– Mãe, a senhora não fez as compras?!

– Não! Mamãe teve de lidar com uns caras para conseguir voltar pra casa.

Ela falou "lidar" como se tivesse orgulho disso. Comecei a imaginar várias coisas, dentre elas, uns homens de luto vestidos de preto correndo atrás dela porque rira durante um velório. O morto? Um alienígena.

Ah, qual é, essa mereceu o contrato!

Afastei o pensamento com uma risada, então olhei para a mesa sem vontade nenhuma de comer.

– Marcela, tem frango na geladeira. Você pode cortar e colocar no pão! - disse ela, como se lesse o que eu estava pensando.

Achei o frango cortado na geladeira um pedaço de peito que talvez seria usado para fazer empanado - mamãe amava empanado. Não o esquentei, apenas coloquei no pão, enchi a xícara e comi.

É, eu daria a nota de seis ou sete. Não estava tão bom, mas não estava ruim. Não comi mais do que dois pães.

Larguei a louça na pia e fui até o banheiro. Escovei os dentes. Saí de casa após dar um abraço na minha mãe.

Caminhando até a casa de Fernanda, olhei para algumas pessoas. Elas saiam de suas casas, apressadas para irem ao trabalho. Umas tropeçavam nas calçadas, outras não.

O sol surgia ao leste, dando um toque amarelo ao céu. As nuvens ao lado dele dariam uma pela pintura. Pássaros voavam em silêncio em torno delas, buscando abrigo, ou apenas rindo de nossa limitação humana.

– Ha, ha, vocês não podem voar.

Uma comum segunda-feira na Parte Dois.

Bati na porta da casa de Fernanda, que atendeu-a e cumprimentou-me jovialmente.

– Vamos?

– Vamos. - respondi.

Então sentamos.

Não, não teríamos de ir para a parada, uma vez que o ônibus pararia na frente de nossas casas.

Observei Fernanda. Estava com uma camisa branca detalhada de amarelo e um efeito de brilho. O cabelo curto loiro estava molhado, penteado lindamente - "lindamente" existe, certo? - e com uma presilha de caveira. Não caveira FOFA, mas caveira MESMO.

Usava uma calça de malha verde-petróleo escuro e um tênis Allstar branco.

– E aí, Fernanda, foi difícil limpar a sujeira?

– Não.

– Não?

– Não.

– Como assim "não"? Fiz o melhor que eu pude para ferrar com sua vida!

– Se deu mal.

Na noite anterior, Fernanda e eu nos juntamos na casa dela e brincamos até tarde, escutando música, gritando e fazendo louquices. Eu derramara um saco de areia pura no quarto dela de propósito. Eu demoraria um dia para limpar aquilo, mas ela... Ali, dizendo que fora FÁCIL!

– Até porque - prosseguiu ela - foi bem fácil. Percebi que areia e eu nos damos bem.

– Agora me responde VOCÊ como enxugou sua casa tão rápido! - ela falou, parecendo consternada.

– Não sei do que está falando.

– Hoje às 02h00 da manhã eu joguei milhares de balões de água na sua casa.

Olhei para ela.

– Cara, aí você passaria dos limites. Nós temos coisas elétricas que queimariam toda a fiação de casa, você não enlouqueceria ao ponto!

– Ah, mas eu enlouqueceria sim! Você sabe!

Ela estava certa. Eu conhecia Fernanda e sabia que certamente ela seria capaz de coisas piores. Isso que fazia dela minha melhor amiga.

– Você NÃO jogou balões de água na minha casa!

– Sim, joguei.

– Se jogou, não chegou, porque de manhã não tinha nada, eu não ouvi nada à noite e... NADA.

– Hum, você está...

Então o ônibus apareceu, interrompendo-nos.

– Depois falamos, agora vamos.

– Ih... Vem praticando rimas?

– Não estou a praticar, mas se não entrarmos vamos nos atrasar.

Ela riu e então caminhamos até o ônibus. Ele seria normal, não fosse a pintura amarela clichê, a única porta de entrar e sair, os retrovisores retangulares e o nome na lateral "Escolar"; embaixo o nome Peacewings no logo da escola.

Logo que entrei, olhei as pessoas que estavam ali, de várias raças e cores diferentes, trajando diferentes roupas. Uns usavam a farda, outros, camisa com gola, outras, bonés e etc. Também tinham idades diferentes e, claro, aparências diferentes.

Senti-me estranha e diferente, como se eu fosse a pessoa que iria acabar com a paz popular e causar destruição. Olhei para os lugares vazios. Haviam dois, no fundo e ao lado de um cara com cabelo azul. Só. Fora isso, era como todos os outros.

Quando sentamos, Fernanda começou.

– Mamãe falou que eles fizeram uma reforma.

– A minha não me falou isso.

– Agora tem uma quadra... TRÊS, na verdade. Compraram terras e expandiram. - ela suspirou, alegre - Sim, deve estar demais.

– An, sei...

– Não se preocupe, ainda tem os armários.

– Sim, legal.

Dedicamos o resto de nosso pequeno tempo para conversar sobre professores, aulas, alunos e etc. Então, quando a conversa foi acabando, o ônibus parou. Acompanhamos todas as pessoas que foram se levantando na direção da saída. Saímos do ônibus e olhamos a escola.

A fachada não mudara. Ainda tinham os grandes muros que separavam o meio interno do externo. Pintados de branco, haviam cartazes de propaganda de eleições passadas, descontos de lojas e um da própria escola: MATRÍCULAS ABERTAS! E o numero de telefone em baixo destacado com uma tinta vermelha.

Então víamos uma grande área. Eu estava acostumada, mas mesmo assim era bonita. Havia um caminho de cimento que guiava-nos até a entrada. Na metade, outros dois caminhos de terra, esquerda e direita, guiavam para um parquinho - para as crianças - e as quadras de esportes, respectivamente. Um pouco mais afrente haviam macieiras sem frutos e um chão de grama verdadeira, verdinha e regada. Eu via as paredes internas do colégio desviarem-se para os dois lados, com várias janelas de madeira abertas.

Fernanda e eu caminhamos junto com as outras pessoas, debaixo de conversas, murmúrios e estudantes de exatas discutindo o comprimento da quadra. Os de humanas admiravam maravilhados as árvores e a grama, dando comentários variados.

Entramos na escola. Bem, a primeira coisa que você vê é a diretoria. Olhando para a direita um corredor cuja parede direita estava enfeitada de avisos e lista de frequências. Não era muito grande o corredor. Acabava em uma parede cheia de prêmios de plástico.

Sinceramente, quem gastaria suas economias por algo de plástico cuja pintura já estava falhando? Enfatizando que não eram poucos, eram vários. Medalhas, troféus, diplomas, exemplares de livros; com direito à pipoca.

Para a direita havia um longo corredor, incrustado de portas abertas variadas nas paredes; os alunos entrando e saindo. O corredor não era muito longo, mas também não era pequeno. Acompanhando as paredes, havia vários armários entrecortados por extintores de incêndio e mangueiras. Lâmpadas fluorescentes iluminavam o local, refletindo no assoalho. O corredor de salas e armários acabava em uma curva para a esquerda, cujo caminho seguia-se por uma pequena escada.

O corredor da direta era a mesma coisa. A única coisa que diferenciava era a primeira sala, cuja porta era de um marrom vívido. Ela parecia liberar uma energia calorosa, que despertava medo, insegurança, conforto, raiva. Fora esse detalhe restante era igual. Acabava em uma curva para a direita, também seguindo seu caminho para uma pequena escada.

Estava tudo como eu lembrava-me. Eu sentia que ainda vivia os tempos em que Fernanda e eu saíamos da escola, ligávamos para mamãe e íamos para uma pequena biblioteca perto do colégio. Passávamos o resto do dia lendo várias coisas. Éramos crianças, mas as aventuras ainda davam saudades.

Olhei para os estudantes, que andavam para todos os lados, conversando entre si, abraçando-se e contando rapidamente sobre as férias. Uns até mesmo dava selinhos de "olá" antes de se matarem durante as aulas de filosofia.

Eu ainda não avistara nenhum amigo(a) que não fosse Fernanda. Talvez chegassem com a segunda onda de alunos vindos no ônibus, ou já estivessem na sala.

Ou talvez porque tivéssemos poucos amigos. Não nos dávamos bem com nossos colegas de classe pelo fato de termos um pensamento vivendo em uma metamorfose ambulante. Trocávamos de idéias sempre que víamos algo melhor, ou quando nos convencesse.

Mas a maioria de nossos pensamentos dedicados à escola - o que eram poucos - voltavam-se para estudo. Eu gostava de história, português, ciências. Fernanda preferia matemática, geografia e geometria; e embora não dominasse, era sempre interessada.

– No que está pensando? - perguntou-me Fernanda, interrompendo meus pensamentos.

– Não tenho certeza... - demorei um pouco pra processar a pergunta dela.

– Então, vamos?

– Sim.

Seguindo pelo caminho da direita, andamos no meio daquela gente, procurando nossa sala: nono ano.

O sinal tocou, um som gélido semelhante à uma música aguda e grave ao mesmo tempo, aumentando de volume ao máximo e depois ficando terna até morrer de vez.

Uma correria começou. Os alunos procuravam suas salas em busca de não atrasarem-se. Eu observava atenta quando uma porta fechou-se. Outra, e outra; mais uma. As portas foram fechando-se até que restava pouca gente. Olhei para a penúltima porta no corretor, uma placa de madeira com as letras: "9° ano - EF".

Calculei que "EF" devia ser Ensino Fundamental; ou "estamos fracos". Fiquei com a primeira opção.

Corremos até lá. Fernanda entrou primeiro e passou indiferente por todos aqueles olhares rápidos e duvidosos - como se ela fosse fazer algo incrível.Notei um pouco de areia cair do cabelo dela, mas olhei indiferente.

Então entrei.

Não me sentia necessariamente livre ali. Os alunos olhavam uns aos outros querendo impressionar os novatos - três. Eu conhecia a maioria, mas tratava eles de maneira indiferente. Logo quando passei pela primeira fila de cadeiras - eram carteiras, na verdade; uma espécie de cadeira, mas com o típico braço - senti a tensão sair de meus ombros, para sentir-me à vontade. Eu estava entre conhecidos, foi o pensamento que me acorreu.

Sentei-me ao lado de Fernanda. Logo a professora chegou e todos calaram as bocas - eu até ri quando fui corrigir essa parte da história.

– Bom dia! - disse ela. Sua voz era melodiosa e convidativa. Eu não conhecia ela, mas tinha cara de quem ia dar um sorriso radiante e abrir um portal mágico, levando todos para uma aventura.

Olhei para a professora nova. Os cabelos ruivos eram curtos - como os de Fernanda - e sedosos, penteados lembrando a forma de ondas pequenas. Tinha a pele clara, olhos pretos e atentos. O nariz levemente arrebitado servia como complemento para a boca fechada em um sorriso espontâneo. Não era muito alta; apenas o suficiente para que se tivesse afrente da sala uma moça de boa aparência, talvez com trinta anos de idade.

Os alunos responderam em um coral desafinado e sem ordem.

– Meu nome é Lorena. Sou a professora de Filosofia e blábláblá. Agora fechem as matracas e me escutem, se não retiro pontos de suas avaliações. Só falem quando eu conceder permissão após levantarem a mão - ela falou como se instruísse um time de futebol, usando apenas as palavras mais agradáveis possíveis.

Levantei a mão.

– Prazer em conhecê-la.

Ela sorriu. As faces do rosto se alteraram quando ela o fez. Seus trajes eram novos e gomados. A camisa era cinza, detalhada com imagens em preto e branco que variavam de cenas de guerra antiga, com espadas, à gueras atuais. A calça era verde e me dava uma impressão de que era jeans, mas parecia de malha, ou etc.

– Prazer. Seu nome é?

– Marcela.

– Marcela. - memorizou - Prazer.

Então ela foi falando sobre sua aula, planejamentos e sobre deixar os avisos no mural da escola - aquele lugar que eu vira quando chegara. Durante o ano ela falaria sobre filósofos, suas ideias, sugeria discussões, faria debates e valorizaria opiniões e discutiria argumentos. Queria dar-nos um intelecto crítico. A aula era interessante, ela falava com uma voz alta, autoritária e empolgante, de modo que era impossível não entender. Algumas vezes brigou, aqui e ali, mas foram pequenas. Eu participava da aula constantemente, expressando profundamente minhas opiniões.

A aula durou o que pareceram dois segundos, logo trazendo o intervalo.

Outra correria. Gritos e saudações ecoavam-se. Os alunos saiam das salas e iam para o lugar onde compravam lanches.

Fernanda e eu saímos logo. Andamos pelos corredores e conversávamos normalmente, ou tão normal quanto pode ser uma conversa em meio à berros de crianças brincando "do pega".

– Então... Achou a aula... Interessante? - perguntei-a.

– Não muito - sua voz soava com uma certa tristeza.

– Por quê? - perguntei, franzindo a testa.

– Sei lá... Me sinto sem... Energia... Com fome...

Olhei para ela.

– Você não tomou café, né.

– Não, tomei, claro, mas... É uma fome de... Eu não sei dizer. - não parecia brincar. Estava falando tristemente, como se estivesse deprimida. Eu sentia a tristeza em sua fala. Notei que ela parecia mais amarela, como se estivesse passando mal.

– Fernanda Andrade, não brinque comigo desse jeito! - falei.

– Não é mentira. Sinto como se estivesse... Faltando algo em mim...

– Bem, vamos para o banheiro. Lá temos a privacidade para conver...

Eu não consegui terminar a frase. Algo irreal aconteceu.

Demorei um pouco para processar o que se passou naquele momento. Parecia tão irreal, mas a mão dela, que já estava amarela, tornou-se mais amarela quando pareceu se dividir em pequenos fragmentos secos. Os dedos eram o parecia ser areia na mão dela.

Então o mais estranho. A mão de Fernanda começou a derreter. A areia foi sumindo com mão dela aos poucos, caindo ao chão com uma pequena cachoeira de perplexidade. Foi o cúmulo das coisas estranhas quando vi que ela parecia não perceber.

– Conver-o-quê? - perguntou, casual.

– Fernanda, sua mão! - gaguejei.

Ela olhou para baixo e só então pareceu alarmada. Arregalou os olhos em um rosto surpreso. Não assumiu um semblante apavorado, pois isso não era característica. Simplesmente olhou como se fosse algo bizarro, dirigiu-me seus olhos e perguntou:

– Eu não e-estou derretendo, estou?

Assenti assustada. A mão de Fernanda se desfez em uma camada de areia que então começava a cobrir o chão.

– Vamos sair daqui, pelo amor de Deus. - falei.

Passamos o mais rápido possível para dentro do banheiro feminino. Havia um grande espelho na parede, encima de algumas pias molhadas de mármore. As portas dos banheiros separados por paredes estavam abertas, indicando que estávamos sozinhas.

Observei Fernanda. EU estava apavorada. Minha amiga estava virando areia na minha frente e eu não sabia o que fazer. Eu não tinha a menor ideia de como ajudar ela, logo tornando o desespero impossível de ser controlado.

– Marcela, socorro! - ela falou, em um tom levemente preocupado.

Ela não pareceu estar sentindo dor, só um desconforto ao saber que estava virando AREIA. O cabelo loiro ficou mais amarelo e logo começou a cair. As maças do rosto deixaram-se desvanecer em grãos de areia que juntavam um amontoado no chão. Suas pernas fraquejaram e ela caiu. Estava paralisada, até porque se lutasse, sua essência espalharia-se pelo chão.

Então Fernanda era só um amontoado de areia com uma cabeça que também se desfazia. Só então pareceu ter consciência do que estava acontecendo, pois lançou-me um olhar medroso.

– Marcela... Nunca vou esquecer você...

Ela queria chorar. Eu SENTI isso. Eu pude detectar gotas de lágrimas vindo, mas nada aconteceu. Eu não cheguei a ver as gotas de água, mas eu senti-las. Misturadas à proteínas, um pouco de sal, açúcar e ótima para os olhos.

Fernanda lentamente desfez-se a cabeça e logo eu estava diante de um amontoado de areia.

Joguei as mãos na cabeça e chorei. A única pessoa que esteve comigo desde a infância se fora. A única pessoa que passara todos os anos apoiando-me, ajudando-me e estando comigo nos momentos mais difíceis se fora. E eu não podia fazer nada. As memórias de tempos felizes logo apareceram, trazendo-me saudades instantâneas. Eu via vultos loiros correndo de outras crianças em um grande pátio escolar, com professores a rir e conversar.

Assim que o pensamento desvaneceu, fixei o olhar naquele amontoado de areia, sem saber o que fazer. Percebi que havia passado cinco minutos ali, chorando.

Olhei em volta, atrás de qualquer coisa que me ajudaria a "recolher" Fernanda e levá-la para casa. Vi uma sacola em uma lata de lixo intacta. Ainda não fora usada, então agachei-me e pus a areia dentro, juntando-a com a mão em formato de concha.

Levantei-me para limpar as lágrimas e forcei-me a dar o sorriso mais difícil da minha vida. Eu tinha que agir normalmente.

Como eu iria falar para a minha e a mãe de Fernanda a notícia? Como reagiriam? É certo que não poderiam me culpar, não fora minha culpa. Logo lembrei-me de minha mãe umas quatro semanas atrás: "Isso eu falo quando você chegar do primeiro dia. Aí, se você não souber, eu te falo tudo".

O que quer que ela queria dizer, IA ter de me falar hoje. Eu não descobrira suas intenções com aqueles enigmas, mas assim que olhei para o saco em minhas mãos, um pensamento congelante trespassou minha espinha. Senti-me em choque diante da lembrança da minha estranha conversa com minha mãe: "Consegue VIRAR substâncias?".

Fernanda virara areia na minha frente. Se não estava morta, então estava ali, naquele saco querendo transformar-se em Fernanda de volta. Olhei para o saco, esperando uma chegada de herói, mas nada aconteceu. Talvez demorasse umas horas ou mais...

Voltei para a sala, guardando o saco preto em um canto escondido. Com sorte os zeladores não achariam.

Sentei-me no lugar de que estava antes e esperei o outro professor chegar. Eu conhecia este. O nome dele era Félix, de matemática. Ministrou sua aula por mais duas horas, mas meu pensamento estava em Fernanda. Eu não parava de imaginar em como Fernanda amaria essa aula. Não consegui prestar atenção, só pensava na saudade que eu sentia de Fernanda. De sua cara de interesse, de sua expressão vingativa e seu olhar de "dane-se".

O professor saiu e um coordenador entrou na sala, dando o aviso de que sairíamos mais cedo. O professor que viria após Félix não viera por causa de um congestionamento.

Isso raramente acontecia em LL, mas, como era a Parte Um... Talvez devesse ter uma exceção.

Os alunos gritaram e correram para fora. O coordenador pareceu com raiva, mas deu um sorriso de "amo vocês, seus pestinhas".

Levantei-me sem disposição e fui para a saída.

– AH, EI TURMA, ESCUTA! - chamou o coordenador.

Eles pararam.

– O ônibus vai e levá-los de volta somente por esta semana. Não está no contrato de vocês a volta.

– Por quê não trazer de volta? - perguntou um menino.

– Gastaria mais gasolina e teríamos de aumentar a mensalidade ainda mais. Tchau para todos e saiam sem gritar.

Os alunos saíram do mesmo jeito que antes, só que no mute. Conseguiram arrancar uma pequena risada do coordenador. Tomei o cuidado de passar por detrás dele para ele não reparar para onde eu estava indo. Recolhi o saco de lixo e escondi-o na mochila de Fernanda, escondendo-a na minha.

Abri a porta de casa. Mamãe estava na cozinha e a televisão acabara de ser desligada.

– Mãe... - minha voz estava um pouco embargada.

– Oi!

– Preciso conversar com a senhora.

Ela saiu da cozinha, desligando a panela do arroz. Sentou-se ao meu lado, ainda com uma expressão de curiosidade.

– Fernanda... Virou areia.