Pensei que falar a minha mãe sobre a morte de Fernanda seria a coisa mais difícil que eu faria na vida. No entanto vi que, quando mais profundamente dizia tudo, mas livremente falava sobre como tinha sido. Eu conseguia me acalmar mais. Sentia uma sensação de estar conversando com uma amiga.

Minha mãe tinha essa característica. Podia estar sempre rindo, mas quando o assunto era sério sabia que semblante tomar. Sabia falar de uma maneira que nos manteria todos calmos, reconfortados e com a certeza de que logo tudo passaria. Ela não nos pressionava, o que deixava tudo melhor. Olhava em nossos olhos dando-nos a sensação necessária para que tomássemos conhecimento de sua intenção em ajudar.

Quando terminei de falar ela não pareceu triste, nem abalada; nada que se assemelhasse à tristeza ou pesar. Simplesmente fitou meu semblante desafiante, como se perguntasse qual seria seu próximo movimento.

– Bem... - disse ela, por fim - Você... Não sofreu nenhuma transformação?

– Não! - falei, quase indignada com seu tom tão calmo.

– Nada, MESMO? - enfatizou.

– Não... - lembrei de quanto vi Fernanda quase chorando - Bem, eu...

Ela pareceu interessada.

– Você...

– Eu senti as lágrimas prontas para saírem dos olhos dela, antes de... - a palavra que precederia com certeza era "morrer", mas seu pesar me desencorajou.

– Você SENTIU?

– Sim.

– E mais nada? - com a cabeça, disse um "não" tímido, mas raivoso - Bem, isso é muito estranho...

– Ok, mas a senhora vai me explicar tudo, ou não? - falei, segurando o choro.

– Está bem, Marcela. Vou explicar-lhe tudo. Bem, quando Luzia e eu fomos para sua escola, eu tive um pressentimento. Algo GRANDE aconteceria naquela escola e eu não podia impedir porque isso seria um crime contra o destino. Após conversarmos, decidi que Luzia estava certa em escolher Peacewings como sua nova escola.

– Até agora a senhora...

– Não estou te enrolando. Deixe-me continuar. Então tive aquela conversa com você, sobre telecinese, transformismo, habilidades duplicadas; enfim.

Ela fez uma pausa, para reorganizar os pensamentos.

– Marcela, desde séculos atrás, acontece isso. Pessoas nascem com habilidades especiais e algumas até controlam pessoas, animais, o clima e etc.

Demorei um pouco para entender.

– Mutantes?

– Sim. Todos nascidos de repente - ela pareceu hesitar quando falou isso.

– An... E?

– Agora vem a parte maluca. Alguns nasceram com habilidades sobre feitiços e encantamentos. Uns quiseram governar todos os "especiais", como chamavam-se, outros queriam ser livres e viver normalmente. Havia também os que gostavam dos humanos, como sempre. Queriam defendê-los e garantir seu bem-estar.

– Isso está passando dos limites da insanidade...

– Um dia, um dos "especiais" matou um humano. Esse humano estava planejando uma revolução contra os "especiais", que, julgavam eles, queriam dominar o mundo. Então o cara foi lá e matou o humano. A vila era defendida por um dos que controlavam feitiços, que ficou cego pela raiva quando soube disso. Como também medo disso alastrar-se pelo mundo afora, fez uma maldição. Cegou todos os humanos de verem qualquer especial usar seu poder.

– Espera, como assim?

– Se alguém levitasse uma usando a telecinese, veriam-no levantando a pedra com a mão.

– Ah, tá. Continua, tá interessante.

– Então, não demorou para que os outros planejassem uma caça à todas as pessoas que tinham o mesmo poder que a tal mulher. Os feiticeiros foram extintos. Mas quando iam matar a última mulher que sobrara de sua raça, esta teve uma visão do futuro. Previu que uma garota acabaria com alguma coisa. Não deixaram-na terminar de falar. Só depois repararam que sem os feiticeiros, não saberiam como desfazer a maldição. Começou uma briga sobre quem tivera a ideia de fazer aquela matança. Uns pregavam a ideia de que fora tudo culpa dos humanos e que eles mereciam serem mortos. A outra o contrário... Uma pequena guerra aconteceu, dos lados que defendiam a paz dos humanos e dos que eram contra os humanos.

– Quem venceu?

– Ninguém. Após vários homens mortos e os especiais quase dizimados, fizeram uma trégua. A partir dali o grupo que quer manter a paz dos humanos chama-se "Heróis" e o que quer acabar com a paz chama-se "Vilões".

Digeri a informação. Era muita coisa para saber e eu estava muito confusa. Eu não sabia o que falar, que reação ter ou que fazer. Tudo assemelhava-se àquelas estórias de contos de fada.

– Mãe, mas se os humanos não podem ver o que os mutantes fazem, por que EU consegui ver Fernanda virando areia?

– Talvez fosse apenas ela morrendo.

Eu não gostei da piada de minha mãe. Fora cruel e insensível. Minha mãe começou a bater os pés no chão, ansiosa por algo.

– Mas, falando sério, Fernanda tem poder de transformismo. Ela pode controlar e transformar-se em areia; o poder de controle da terra que ela poder ter ainda é fraco.

– Então ela pode controlar areia e terra?

– Digamos que sim.

Olhei para minha bolsa. Eu estava feliz porque mamãe estava me dizendo o óbvio: Fernanda estava viva.

– Ah, Marcela, esqueci de uma parte muito importante.

Virei-me para ela.

– Alguns anos após todo esse desentendimento, nasceu o último Mutante com poder de controle sobre feitiços. Ele fez um feitiço ainda mais cruel que simplesmente separar os humanos de nossa vida. Ele decidiu que todos os Mutantes mereciam pagar por terem causado tanto sofrimento. Conjurou uma maldição. Nela, qualquer mutante que completar dezoito anos terá de fazer uma dura escalada até o topo de uma montanha. Lá ele faria um corte na mão para que o sangue alimentasse a raiva "dos deuses".

– Eles ainda acreditavam em deuses e tals?

– Não. AQUELE em especial acreditava.

– Então tenho que tirar sangue no alto de uma montanha quando fizer dezoito anos?

– Basicamente, sim.

Não consegui evitar dar uma risada diante de tal besteira. Era real e fazia parte da minha vida, mas ainda sim era bobagem. Aquela historia de Heróis e Vilões que tinham de derramar sangue após um escalada? Era tolice.

– E o que acontece se eu não fizer?

– Perde os poderes e acaba ficando com uma doença mental.

Eu ri mais uma vez. Minha mãe olhava para mim em uma expressão de aviso, como se eu estivesse fazendo o maior erro da minha vida. Esperei por ela me mandar um aviso, daqueles que mandam a gente não rir das coisas, mas seus olhos de censura cortaram-me a risada. Envergonhada, olhei para baixo, em busca de algo para pensar. Então pensei na condição de Fernanda.

– E quando minha amiga vai voltar à vida? Quer dizer, à forma humana.

– Aí eu também não sei. Ela já deveria ter voltado, até porque isso não é um processo demorado. - os olhos da minha mãe desviaram para detrás de, e ela assumiu um semblante empolgado. - Ah, olha!

Olhei para o chão. Pequenos fios de areia corriam em direção à minha bolsa. Chegavam perto do sofá e erguiam-se na direção da minha bolsa. Logo ela se mexeu, como se estivesse com vida. Alguma coisa dentro dela cutucava aqui... Ali...

Abri minha bolsa. Abri a de Fernanda. O saco havia sido rasgado por algo pontudo e enchera a bolsa de areia. Retirei o saco de dentro, a areia vazando cada vez mais.

Coloquei no chão. O saco rasgou-se. A areia dentro dele parecia estar ganhando forma e ficando mais sólida. Logo eu vi formar-se em minha frente uma mão recoberta de areia. O braço foi surgindo, logo havia resquícios do que seria a barriga.
Notei que a areia dentro da minha bolsa saía de dentro da mesma e cada vez mais ia chegando até Fernanda. Estavam unindo-se ao amontoado de areia. Logo o ombro apareceu. Quando o pescoço ia formar-de, alguém bateu à porta. Fernanda interrompeu-se, caindo mais uma vez em um amontoado de areia sem vida - aparentemente.

Minha mãe chegou até a porta e abriu-a. Luzia apareceu lá e ia dizendo bom dia quando olhou para o amontoado de areia.

– Nossa! Vocês precisavam MESMO de uma faxina.

Ela entrou. Mamãe fechou a porta.

– Luzia, essa é Fernanda.

Mamãe falou aquilo como se dissesse: "Luzia, este é o novo perfume Jequiti!". Ela olhou cética para mim, como se perguntasse "Certeza?".

– An, sim. - consegui falar.

– Hum, então minha Fefe descobriu o poder dela - segurei a risada diante do "Fefe" - E o seu, querida?

Eu estava tão atordoada que até esqueci de ficar surpresa por descobrir que Luzia também sabia sobre essa história - ela também tinha poderes.

– Eu ainda não sei. - falei - Mas, já tenho uma pista.

Até minha mãe pareceu surpresa.

– Qual?! - perguntou.

– Água. Eu não falei à senhora sobre eu ter sentido as lágrimas de Fernanda?

– Sim, mas geralmente quem tem esse poder é o pessoal da manipulação mental.

– Ah.

– "Ah". - caçoou mamãe, arrancando um riso de Luzia.

– Fernanda, anjinho, levante! - disse Luzia, empolgada.

A areia novamente ganhou forma, dessa vez mais rápido. Logo Fernanda estava ali, sentada.

– Ai, minhas costas não ficam assim há séculos! - falou ela, logo que já estava sólida.

Senti uma vontade de dar-lhe um abraço, mas tinha medo dela voltar a derreter. E eu não queria vê-la como um amontoado de areia mais uma vez.

– Ai, isso foi relaxante. - falava Fernanda, espreguiçando-se.

– Fernanda, você ouviu minha conversa com Marcela? - perguntou minha mãe.

– Sim.
– Que conversa? - disse Luzia, coçando o cabelo.

Mamãe explicou a ela sobre tudo o que falamos. Desde a transformação de Fernanda até a guerra.

– Ual, que loucura. - comentou.

Só então percebi uma coisa.

– E vocês - dirigi-me as duas adultas - Quais seus poderes?

– Nós temos o mesmo poder: telepatia.

Imediatamente pensei na minha infância. Eu tive uma infância quase sem choros - fora quando o assunto era brinquedo -. Minha mãe, quando eu era criança, sempre sabia quando eu precisava comer, dormir, trocar a fralda; sempre sabia o que eu queria e falava de uma maneira tão aconchegante que eu não ia ter aquilo e não tinha relutância que conseguisse mudar a ideia dela. Eu acabava por aceitar e prosseguir. Ela conversava comigo de maneira calma e determinada. Sabia sempre o que falar para manter as pessoas calmas.

Só havia uma falha em minha memoria. Eu não tive quatro anos de idade. Eu só me lembrava de ter três e cinco anos, mas não tinha nenhuma faísca de memória antes disso. Nem sequer uma queda ou qualquer memória, nem que eu fizesse um esforço maior: Nada.

– Como posso descobrir meus poderes? - falei, após respirar fundo.

Mas todas elas olhavam atentas para minha mão aberta, o que eu só então reparara. Um cilindro pequeno e irregular de água flutuava a um metro de mim.

Levei um susto quando o vi. Não consegui evitar de derrubar a água no chão, o que deixou-o bem molhado - dããããããããã!

– Bem, suas doidas - disse Luzia, após um breve minuto de silêncio - Eu tenho que ir agora. Tenho um compromisso na Parte Um.

Ela abriu a porta de casa. Ia fechando quando olhou para minha mãe e falou:

– Ah, Mariana, fale para elas sobre o treinamento. Até mais!

E foi embora, me deixando um arrepio quando ouvi "treinamento".

Mamãe nos deu uma breve explicação. Havia um homem na cidade que treinava mutantes para que eles desenvolvessem os poderes e tentava guiá-los para o caminho dos Heróis.

O resto do dia foi dedicado a pensamentos, reflexões e tentativas minha, falhas, de dominar a água novamente. Fernanda só ficou ao meu lado, tentando controlar areia ou terra.

[...]

– OK, TODOS CALEM A PORRA DA BOCA! - berrou Gary.

Todos os mutantes ali presentes silenciaram-se. Eu ainda não falara nada desde que chegara ali, o que acontecera a dois minutos.

O espaço era um pouco afastado da Parte Um, mas ainda sim era grande. Uma estrada de terra guiava o caminho de volta à cidade. Cercas aparentemente fortes - MESMO - faziam seu trabalho em torno de uma área semelhante a um campo de futebol considerado pequeno. A grama recém-cortada exalava um delicioso cheiro. Uma porta de cerca trancava o local. Pinheiros e carvalhos caracterizavam o lugar fora daquele campo.

Aquilo me lembrava um curral, sendo que um curral normal não tem mutantes berrando e xingando.

– Muito bem. - disse o homem - Meu nome é Gary William e sou seu treinador.

Gary era alto, branco - parecia nunca ter pegado sol -, olhos pretos, nariz pontudo. Usava uma camisa vermelho-sangue e um calção de ginastica branco. Seu olhar chegava a ser amigável, mas também assassino, sedento por sangue. E ele era bem alto. Por enquanto mostrara não ter paciência com novatos e seu semblante mostrava isso. Ele tinha cara de quem era autoritário, com aqueles brilhantes cabelos loiros cortados. Assim que terminou de gritar um menina respondeu:

– Quando vamos usar poder?

– Quando eu mandar!

Eu tentei achar a menina, mas era difícil. Haviam muitos adolescentes de treze a dezesseis anos. Em sua maioria, homens, mas haviam mulheres, fora eu. Eram poucas, mas ainda sim era possível ouvir seus grupinhos ao olhar em pontos aleatórios na multidão. No geral, estavam dispersadas na multidão.

– Ok, todo mundo que já descobriu o poder levanta a mão.

Todo mundo levantou.

– Bem... Todos já sabem como ativá-los?

Alguns responderam sim, mas a maioria foi não.

– Ok, vamos a primeira lição. Para usarem o poder, vocês têm de ter uma pequena concentração. Pensem no que querem fazer. Finjam que estão PEGANDO o que querem e então leve a mão para cima.

Ele fez uma pausa para olhar se todos estavam prestando atenção.

– Entenderam? - perguntou.

Algumas pessoas balbuciaram sim.

– Mas... E quanto aos telepatas? - perguntei.

– Eles têm de imaginar que são aquela pessoa. Logo vão sentir um grande êxtase e vão ter acesso a todos os pensamentos apenas com um comando.

– Parece difícil...

– No começo é, mas depois fica fácil como respirar.

Então ele explicou como os poderes se desenvolveram.

– Uma mulher tem poder de telepatia e um homem tem poder de controlar fogo. Dependendo do genes, o filho vai poder ou não controlar fogo, ou ler os pensamentos alheios. Ou então ele vai poder, por exemplo, ser invisível, criar campos de força, metamorfose e etc. As possibilidades são muitas. Agora, vou criar grupos.

E criou vários grupos - seis -, com variados meninos e meninas. Não eram separados por poder; ele apenas escolheu aleatoriamente. Tive a sorte de ficar no mesmo grupo de Fernanda.

Então ele explicou como seriam as coisas. Aulas todos os dias, das 10h00 às 20h00. Envolveriam exercícios para controlarmos o poder a distância; criação de plataformas para nos sustentar; sentir quando havia o elemento que controlássemos - no meu caso, água; criação de armaduras com o elemento que a gente controla.

Entre outros. Eram variadas possibilidades de uso. Era algo esplêndido.

Tenho que admitir que quando descobri que tinha poderes, fiquei assustada. Eu não sabia como usá-los e ainda estava debaixo do choque da não-morte de Fernanda. Tal coisa mexera com meu psicológico.

Minha mãe avisara-me que nos colocaria neste treinamento. Passaram-se quatro dias até que fomos. Após o primeiro dia de treino eu já conseguia controlar água. Mas eu percebia que cada vez mais eu sentia ficar sem energia. Parecia que eu desabaria e morreria. Após o segundo dia, fiquei sabendo o porquê daquilo.

– Quando você usa seu poder de controlar coisas, sua energia esvai-se ao pouco. Quando você ainda não manja dos paranauê, isso acontece MUITO rápido. No entanto, você vai crescendo e aprendendo tudo, depois chega a nem perceber isso.

– Mas o que acontece quando nossa energia esvai-se toda? - perguntou um menino aleatório.

– Você cai no chão para um sono de dez dias.

Então ele foi explicando sobre tudo. Logo comecei a entender. Eu já começava a usar meu poder sem muitas preocupações, mas às vezes eu caía no chão e sentia minhas pálpebras pesarem. Fernanda era minha salvação. Ela me trazia energéticos, uma maneira rápida de recuperar energia, o que era estranho, a julgar pela minha opinião.

Percebi que gostava de ter poderes. Era legal, tipo, "Chupem essa, aves, vocês voam, mas eu controlo água!" E vinha aquela risada estranha "shaushaushaushau".

Sim, é MUITO legal ter poderes.

Como eu era ingênua...

Passaram-se algumas semanas de treinamento. Eu já sabia controlar a água mais livremente, no entanto ainda perdia energia rápido demais. Eu ainda caía em intervalos de tempo, necessitando de energéticos, mas isso ia mudar aos poucos.

Certo dia Gary reuniu todos os grupos e avaliou nosso desenvolvimento. Eu não progredira muito, mas em boa parte. O mesmo não pode ser dito de Fernanda, que já dominava muito bem os poderes.

Inclusive, com ela é diferente. Quando ela transforma-se em areia, ela só... sente fome! Sim, quando ela vira areia, fica apenas com fome. E também a energia dela se esvai menos rapidamente, então digamos que ela tem uma certa vantagem com o poder dela.

Bem, voltando ao que Gary falaria.

– Bem, vejo progressos altos! Mas UMA pessoa progrediu MENOS que as outras - olhei em volta. Não havia ninguém com a cabeça baixa ou chorando. Nem mesmo aparentando estar arrependido. - JOHN WILLIAM! - berrou Gary.

Um menino meio magricela apareceu. Olhei para ele. Vi seu cabelo com ternos tons de loiro. Os olhos castanho-claro não eram enfatizados perto daquelas poucas sardas no rosto. Durante as semanas de treinamento eu conheci bastante gente, mas a primeira foi John. Eu gostava dele como amigo, mas prestes a pular para uma fase elevada. Eu gostava de sua personalidade alterando entre pessoa séria e determinada a pessoa engraçada e descontraída. Ele gostava de conversar sobre música, escola e como ele tentava se dar bem.

Mas ele não gostava muito de falar sobre o poder dele: Força. Sim, ele deveria ter uma força descomunal, mas, como ele não praticava, mantinha-se fraco. Só o suficiente para não conseguir levantar, exemplificando, um guarda-roupas lotado.

Saiu do terceiro grupo, caminhando até Gary. Ele geralmente andava com a coluna ereta, de maneira descontraída; naquela hora ele andava de maneira preguiçosa, como se a cada passo ele travasse uma batalha de vida/morte com a preguiça.

– Você tem feito o que eu mandei? - perguntou Gary, com uma sobrancelha erguida.

John hesitou. Perto de Gary ele parecia uma criança indisciplinada. Gary era bem alto, com 1,90; John, 1,70.

– Sim.

– Veremos.

Gary retirou do bolso um pequeno aparelho, com a estrutura semelhante à de um celular com botões. Discou um número, mas não levou-o ao ouvido.

Um pequeno vento esfriou minha barriga. Ao lado de Gary, o ar pareceu compactar-se e ser sugado por um pequeno círculo que formou-se ao lado dele.

Detalhe: Isso aconteceu em menos de um milésimo.

Logo havia um homem ali. Aparentava ter uns vinte anos, cabelos pretos e cortados no estilo social. Tinha olhos castanho-escuro e um semblante de "ninguém liga".

– Tiago, traga a geladeira, por favor. - acho Gary queria realmente dizer "Traz logo o cacete da geladeira!"

Então ele sumiu, levando consigo alguns pedaços de . Apareceu quase no mesmo instante; na mesma velocidade, sumiu. Havia uma geladeira branca e alta perto de Gary. Aparentava pesar dez toneladas.

– Ok, John. Veremos se anda MESMO fazendo o que eu mando. - ele mostrou a geladeira - Levante-a.

John, envergonhado, aproximou-se da geladeira e colocou as mãos debaixo dela. Fez força para a geladeira nem mover-se. Fez mais força ainda, tanto que tremeu. A geladeira mexeu-se, então caiu para o lado esquerdo com um estrondo, abrindo uma pequena cratera no chão e arrancando algumas risadas dos outros mutantes. John contemplou o semblante de vários mutantes dando risinhos e murmurando coisas ofensivas sobre ele. Não podia fazer nada, fosse pela ordem de Gary, fosse por não ter poder para isso.

– John... O PIOR desempenho de todas essas semanas... - a voz de Gary demonstrava alto suspense - Nem sei se deveria deixá-lo fazer parte do teste final.

O garoto ficou com raiva. Eu pude perceber isso pelas gotas de suor que caíam de sua testa. Ele parecia angustiado e a ponto de bater em Gary; e ao mesmo tempo parecia humilhado e rejeitado, como se nenhum pai no mundo fosse querer tê-lo.

– Volte ao seu lugar, John. Quero ver quanto tempo vai durar. Acho que não passa nem da primeira parte!

Eu realmente não entendi o que Gary queria dizer, até que Tiago apareceu ao lado dele.

– Cara, não sei se consigo... - comentou.

– Se não conseguir vou fazer picadinho de você. E você sabe que estou doido para fazer isso! - Gary parecia irritado em ter Tiago ao lado dele, nada parecido com a cena de dois minutos antes.
– Ok.
Quando Tiago disse "Ok", eu fechei os olhos, diante uma leve brisa. Então eu fui levada para um outro lugar numa velocidade descomunal. Sentia cada parte do meu corpo sendo arrancada daquele campo e sendo atraído para outro lugar. Tudo isso misturou-se a uma grande sensação de que não comia nada por anos, seguidas de uma sensação de que ia estourar de tanto comer. Então uma rápida sensação de prazer; logo abri os olhos.

Eu estava em um lugar BEM diferente. O chão era de feito de gigantes placas de ferro unidas umas as outras por parafusos fortes. As paredes também eram assim. Pela minha frente isto estendia-se em uma distância de aproximadamente sessenta ou cinquenta metros e então erguia-se em uma parede com pontinhos preto que eu não consegui distinguir.

Olhei em volta, confusa. Todos os grupos estavam lá, murmurando coisas sem sentido. Gary estava a nossa frente; Tiago ao seu lado.

– Vejo que valeu a pena ter você, Tiago, mas ainda quero matá-lo. Se manda.

Tiago pareceu ter um certo prazer desdenhoso em ouvir isso. Logo sumiu.

– Ok, turma, esta vai ser a prova final de vocês ANTES das "férias". Vocês vão ter que correr até o final; pisem com força nos círculos azuis brilhantes; evitem serem pegos pelos obstáculos; esqueçam a diferença entre grupos; nada de usar poderes e quem desrespeitar uma dessas regras vai ser removido da prova. Boa sorte e que vença o melhor.

Então Gary sumiu, inexplicavelmente. Achei que ele tinha poderes de teletransportação, assim como Tiago, mas não tive muito tempo para pensar nisso. Olhei para baixo quando uma linha quadriculada pintada de preto e branco apareceu. Ainda estávamos confusos e querendo saber onde havíamos ido parar.

Mas entendemos o recado quando um alarme soou e alguém gritou no alto falante: VAAAI!

Uma grande parte dos mutantes ali presentes logo saíram correndo quando a sirene parou, mas o meu retardo mental manteve-me parada dois segundos depois, quando quase todos já haviam ido embora. A multidão já corria estrada afrente, assemelhando-se às pessoas na Black Friday dos Estados Unidos. À minha lerdeza, corri para a frente, lenta e sem preparação.