Heróis de Boreatia: a Perfídia de Macker

Capítulo X: O imediatismo do imediato


Capítulo X

“O imediatismo do imediato”

Kraivin começava a gostar de Behatar. No começo achara tudo muito quente, quase tão quente como diziam ser o Helmus, porém aos poucos seu organismo habituado ao eterno gelo de Glacis começou a tolerar as temperaturas mais amenas. Além disso, o ar de Feritia – não só o da maresia, mas também o das pessoas das mais variadas origens que circulavam pelo porto e dos diferentes produtos ali trazidos pelos navios mercantes, gerando incrível e deliciosa diversidade de aromas – já o conquistava. As cidades costeiras de sua terra natal, com seus grandes fiordes brancos salpicados de entradas para ancoradouros subterrâneos, tinham bem menor encanto. Quando retornasse no dia seguinte a bordo do Barestia, agora como comandante, não saberia se ainda era mais anão das montanhas frias ou mais humano das terras temperadas dos boreais. Talvez um pouco dos dois. Sorriu com o pensamento.

A tarde seguia ensolarada, já havendo se passado várias horas desde a partida de Kal Sul para leste. Do alto do convés do navio vazio, debruçado sobre um parapeito de madeira, seu imediato observava o movimento no cais. Uma nau de pimenta acabara de chegar de Barbety e era descarregada já há algum tempo por funcionários halflings do Armazém Público, parecendo haver uma quantidade interminável das iguarias vermelhas em seu interior. Barcos de pesca de grande porte também voltavam abarrotados do alto-mar, pilhas e mais pilhas de cardumes ainda se debatendo sendo atiradas dentro de enormes redes pelo píer. As embarcações da Marinha, por sua vez, passavam aquele dia por uma inspeção de rotina feita pelo comandante responsável pela região, a preocupação dos marinheiros em deixarem tudo em ordem aos olhos do superior se manifestando em sua pressa e zelo ao limparem os conveses. O agitado porto de Feritia seguia sua vida... e Kraivin começava a se sentir sozinho.

Seus companheiros de tripulação haviam manifestado o desejo, mal Kal Sul botara os pés para fora das muralhas, de poderem aproveitar ao máximo o último dia em Behatar antes de zarparem na manhã seguinte. Sabia que, apesar de muitas vezes compartilhar da alegria dos comandados, o embaixador dificilmente o permitiria sabendo que ainda havia o reabastecimento do Barestia a ser feito antes da viagem de volta, mantimentos a serem comprados. Os marujos haviam guardado seus desejos para Kraivin, e este cedera, vendo-se incapaz de conter o furor de tantos anões loucos por bebida e mulheres. Apesar de seu aspecto e personalidade serem mais ameaçadores que os de Kal Sul... não possuía a mesma experiência no comando de tropas.

Ainda que, tinha de reconhecer, as mulheres de Behatar fossem bem atraentes...

O cheiro forte de pimenta substituiu a lembrança de perfume feminino em seus sentidos, arrastando-o de volta à realidade. Haviam transcorrido três horas desde que o sol estivera no centro do firmamento, e os anões, tendo saído cedo para sua excursão, ainda não haviam retornado. Arrependido por ter consentido que a folga do dia anterior se prolongasse e já certo de que a partida rumo a Glacis seria atrasada devido àquilo, resolveu sair pela cidade em busca dos companheiros... mantendo a esperança de não encontrá-los muito embriagados...

Após descer do navio, esgueirou-se pelas vielas do porto apinhadas de gente rumo às ruas de Feritia, seu corpo volumoso e a armadura larga fazendo com que esbarrasse em muitos dos transeuntes, chamando assim para si a maioria das atenções. Foi insultado por alguns, porém ignorou-os. Outros, ao vislumbrarem seu machado e sua espada, achavam mais prudente abrir-lhe caminho.

Chegou às vias principais, logo encontrando a taverna Eterna Bruma. A muitos metros de distância já se podia ouvir os clamores ébrios em seu interior, fazendo o imediato concluir que fora correto em sua suposição, e que os colegas de navio eram mesmo imensamente previsíveis. Atravessou a rua enquanto era apontado com curiosidade por algumas crianças, abrindo em seguida a porta do estabelecimento. O cheiro de álcool e carne assada pairando no ar do recinto atingiu-o de imediato, causando-lhe o ambíguo desejo de se juntar à bebedeira e ao mesmo tempo encher todos os marujos de safanões.

Alguns deles já manifestavam claros sinais de embriaguez – o que, para a constituição de um anão, significava que haviam mesmo bebido muito. Jogados nas cadeiras em tornos das mesas pelo local, arrotavam alto e gargalhavam ao mesmo tempo em que lhes eram servidas mais canecas de cerveja e hidromel, os mais grogues derramando boa parte do líquido nas barbas quando viravam os recipientes para beber. Demoraram a notar Kraivin. Quando um deles, de barba tão negra que era quase azul e nome Yerix, notou-o, limitou-se a rir ainda mais alto e convidar o imediato a juntar-se à mesa com um gesto acalorado. Atrás do balcão da taverna, barris e mais barris vazios se amontoavam, o dono com um sorriso fixo na face enquanto providenciava mais bebida para os ávidos fregueses. O recém-chegado perguntou-se onde teriam encontrado dinheiro para pagar tudo aquilo. O próprio Yerix, por exemplo, devia tanto em Glacis que tivera de vender as próprias botas para quitar uma das pendências...

- Muito bem, pessoal, já chega, temos de pegar os suprimentos no armazém para a viagem! – avisou Kraivin quase gritando devido ao barulho, batendo as mãos cobertas por manoplas metálicas e gerando um estalido.

- Ah, seu barrigudo estraga-prazeres! – berrou outro anão, chamado Wulluk, de barba loira trançada. – Junte-se a nós e pare de reclamar! Venha, ou a cerveja vai acabar!

Kraivin aproximou-se alguns passos, tentando parecer sério, mas não agressivo:

- Se me permitem perguntar... como estão pagando toda essa bebida?

Fez a indagação temendo pela resposta... e quando ela veio, ainda assim conseguiu não estremecer ou soltar uma praga, por já esperar algo do tipo:

- Aquela reserva de peças de ouro que havia na cabine comum do navio... – replicou um terceiro anão, Velntür. – Demos ótimo uso a ela!

As mesmas peças de ouro que deveriam ser gastas na compra dos suprimentos para o navio – pensou o imediato quase com escárnio, já que a situação, mesmo trágica, tinha seu quê de graça. Os marinheiros seguiram bebendo, animados. E eles não tinham mais tostão algum para reabastecerem o navio que os levaria de volta para casa. Será que haviam gostado tanto de Behatar que decidiram permanecer ali? Não, pouco provável... Por certo nem se tinham dado conta do que fizeram.

Huuuuuaaahhhhh!

Na rua, quem passava acreditou que algum monstro lacrado desde o Crepúsculo dos Deuses rompia pela terra, porém logo se constatou que o urro fora emitido por Kraivin. Um membro da guarda da cidade, junto a um colega próximo da taverna, cochichou algo no ouvido deste – por certo a respeito de como aqueles anões perturbavam a ordem. Deixando o estabelecimento pela porta da frente, o imediato puxava dois dos companheiros... pelas barbas. Vermelho de raiva, atirou-os sobre as pedras da via, os bêbados marujos rolando como se fossem sacos de tubérculos. Quem presenciou a inusitada cena pôde também ouvir o brado do comandante, que silenciou quase de imediato a euforia dentro da Eterna Bruma:

- Espero que consigam voltar a Glacis nadando!

Momentos passaram, e a cólera de Kraivin foi aplacada. Não de todo, no entanto. O imediato de Kal Sul ainda grunhia ou resmungava quando algum dos parceiros de tripulação se aproximava com um vão pedido de desculpas – que morria na garganta. Encontravam-se agora num dos becos junto ao porto, pensando no que fazer. Embora houvesse argumentado com o taverneiro sobre a importância da missão anã e reprovando a imprudência dos comandados, ele não se sensibilizara, mantendo o dinheiro que suprira a bebedeira seguro em seu balcão. O pior de tudo: era direito seu. Os malditos anões mostravam-se os verdadeiros culpados. Kraivin sentia vontade de nocauteá-los e enfileirá-los em ponte sobre o mar para chegar a Glacis, mas eram tão poucos e baixos que não conseguiria nem sair das águas de Behatar.

- E se pedíssemos dinheiro nas ruas? – sugeriu Morvath, um dos que haviam sido agarrados pela barba.

- Como mendigos? – o imediato rebateu quase cuspindo. – São mesmo anões das montanhas geladas, fiéis súditos de seu rei e seguidores de Bragondir e seu machado, ou tolos que imploram por uma safira ao invés de as talharem?

- Orgulho não vai fazer surgir safiras, comandante... – atreveu-se Velntür, e teve sorte de Kraivin estar distraído pensando, ou por certo perderia no mínimo alguns dedos.

Nesse momento, Karwevor, anão muito vivido e cuja barba outrora castanha agora era branca como a neve, ergueu a cabeça até então pendente por entre as pernas dobradas, sugerindo, enquanto seus olhos cansados miravam a grande silhueta do Armazém Público perto dali:

- E se expuséssemos nossa situação ao gnomo? Quem sabe ele não nos ajudaria? É ele quem cuida das mercadorias e víveres que abastecem as naus. Seria melhor implorarmos a ele do que àquele taverneiro.

Os demais se entreolharam, trocando tímidos abanos afirmativos de cabeça. Kraivin foi o último. Ainda com a cara fechada e mãos ansiosas por socar um daqueles cabeças de truta, ergueu-se do chão da viela e, bufando, murmurou:

- Vamos.

Apesar de ter tido a menor responsabilidade no grupo pelo que ocorrera, foi Kraivin quem se ofereceu para falar com o gnomo Trinx – talvez mais por medo de os comandados complicarem ainda mais a situação com palavras erradas do que por qualquer outra coisa. Pediu a um dos funcionários do lugar para que chamasse o administrador, e este veio pouco depois, andando rápido sobre suas perninhas e ajeitando o pequeno colete vermelho. O imediato afastou-se do grupo de anões, enquanto estes observavam ansiosos, e foi falar com ele. Os olhos de Trinx brilhavam conforme viam o interlocutor chegar mais perto, uma versão mais intensa do mesmo brilho que o navegador já vira tantas vezes nas pupilas quase sempre perigosas dos mercadores que aportavam em Glacis: o prazer em fazer negócios.

- Em que posso ajudá-lo, senhor anão? – o gnomo quis saber com sua voz fina.

Kraivin expôs todo o ocorrido, com calma, sem demonstrar desespero. Trinx ouviu calado, ora sorrindo, ora abrindo a boca em espanto, mas com as mãos sempre virando a gravata púrpura no peito para lá e para cá. Quando o imediato terminou, o sorriso no rosto achatado do administrador aumentou em tamanho, ao mesmo tempo em que respondia, num tom que unia interesse e piedade:

- Posso lhes prover sim suprimentos para o navio, caro anão... Mas, como não têm dinheiro... terão de pagar de outra forma. Entenda, não é apenas capricho meu, mas o Armazém Público de Feritia abastece um dos mais importantes portos do continente e, assim como as mercadorias, o dinheiro precisa ser mantido em movimento sem prejuízos...

Com o olhar, o gnomo apontou para um dos empregados do local, que carregava um pesado saco de estopa às costas... e Kraivin compreendeu.

Os sacos não pesavam tanto para o imediato. Claro que seu porte forte e bem-constituído, ainda que de pouca altura, contribuía para isso, mas tinha certeza de que os anos na Marinha de Glacis labutando em navios de guerra também contavam para o pouco esforço com que realizava a tarefa. Seus companheiros, no entanto, aparentavam não ter a mesma sorte: ainda sob reduzido efeito do álcool, tropeçavam ou escorregavam pelo interior do armazém, algumas vezes chegando a derrubar os recipientes com as aberturas para baixo e com isso esparramando toda a carga pelo solo. Nem era necessária a voz estridente de Trinx para que logo se pusessem a recolher tudo – coisa particularmente penosa quando se tratava de grãos.

Eram carregamentos de grão-de-bico, trigo, feijão, farinha, frutas temperadas e tropicais, tubérculos... víveres que entravam e saíam do porto quase ininterruptamente, e o gnomo dispensara todo um grupo de moradores da cidade que trabalhavam no armazém – recebendo para isso pagamento por hora – para colocar em seu lugar os tripulantes do Barestia, ajudando de graça até o entardecer e quiçá também na manhã seguinte. A partida para casa já estava irremediavelmente atrasada, porém ao menos conseguiriam, em troca do esforço, os suprimentos necessários para zarparem. Troca justa. E o tal Trinx era mesmo bastante astuto. Por certo sabia que fortes anões conseguiriam carregar muito mais em menos tempo do que seus habituais funcionários humanos e halflings. Só precisava que os homens de Kraivin recobrassem logo a plena sobriedade...

Num baixo grunhido, o comandante do navio apanhou mais uma saca e pôs-se a atravessar com ela o interior do galpão, rumo a uma carroça de madeira metros adiante que a conduziria, junto com uma pilha, até um navio aguardando no cais. Passou por dois dos colegas esforçando-se em levar odres de azeite que seriam depositados no mesmo transporte, e se sentiu mais uma vez um garoto auxiliando o pai no porto de Regarxy. Quem diria que agora fazia aquilo para poder pensar em ver Regarxy de novo...

Andando rápido para tornar mais ágil o serviço, o imediato via-se tomado pelo aroma dos alimentos que carregava, ou dos materiais que conduzia. A forte flagrância de especiarias, o entorpecedor cheiro de madeira recém-envernizada, o instigante e prazeroso aroma de produtos exóticos de Kartan ou Barbety – como perfumes e loções, estocados com cuidado pelo armazém... e um súbito e terrível odor de podridão. Carne decomposta, massa rota. Com os sentidos afetados pelo inesperado indício de carniça, o anão depositou no solo o saco, incapaz de continuar sem oscilar as pernas, nauseado. Haveria algum animal morto ali dentro? Os gnomos costumavam ser extremamente zelosos em suas incumbências, então Trinx por certo cometera grave equívoco...

Olhou em volta. Seus companheiros, mais afastados, aparentemente não haviam percebido o cheiro. Suas pupilas procuraram por entre os montes de caixas e sacas, ansiosas... e nem sabia dizer ao certo a razão. Foi quando, afastando um pouco o odor, um repentino vento atingiu-lhe o corpo, fazendo-o gelar... e enxergou. Próximo a uma pilha de mantimentos, um tanto curvado, havia um vulto de capa e capuz, projetando uma sombra horripilante sobre o chão de brilho amarelado do início de entardecer. A silhueta corcunda, cujas mangas do traje estavam rasgadas nas bordas como se roídas por ratos, dava à projeção no chão o formato de um corvo empoleirado com as asas arqueadas. Kraivin ainda não sabia o porquê, mas seu coração desatou a bombear-lhe sangue pelas artérias como se quisesse abandonar seu peito e disparar correndo. Mas o povo de Glacis sabia ignorar certos apelos do coração, principalmente quando eram ausentes de coragem. Deixando o saco para trás, levou uma mão cautelosa ao cabo de sua espada, sem no entanto ainda sacá-la. Poderia muito bem não ser nada... ainda que duvidasse.

- Hum... olá? – tentou, aproximando-se da figura macabra.

Sem resposta. A coisa permaneceu imóvel. Ousou chegar dela mais perto, passos silenciosos. Era difícil para si não causar ruído algum, porém sua cautela fora tanta que o conseguira. Ela aparentemente ainda não o percebera. Planejava surpreendê-la com um toque, e com o outro braço singrar a arma em defesa se necessário. Um movimento veloz, apenas, e...

A coisa virou a cabeça. Kraivin procurou se manter onde estava, mas os pés recuaram imediatamente um metro como se possuíssem vontade própria. Sob o capuz, a face da mulher – se é que poderia ser chamada assim – era uma pintura oval, branquela e raquítica, semeada de vermes. Pelos orifícios onde um dia existira um nariz, parasitas serpentiformes agitavam-se em cores escuras, escavando mais e mais os músculos podres. Os olhos eram projetados quase para fora do rosto, em inchaços repletos de veias roxas proeminentes. Abriu a boca, e um hálito fétido como um campo de batalha entregue aos abutres foi lançado sobre o imediato. Ele achou que botaria para fora o que comera pela manhã, porém se conteve. Exibindo os dentes mais decompostos que as gengivas, negros de sujeira, a velha riu... Riu quase num guinchado suíno, digno de troça em outras circunstancias... mas assustador àquelas. Trêmulo como nunca antes em sua existência, Kraivin desembainhou o sabre e moveu-o, ansiando por cortar aquela aberração em duas... A lâmina, porém, partiu ao meio apenas a capa do monstro, a qual se manteve ainda alguns instantes erguida depois que ele desaparecera como se tivesse evaporado.

Com o abalo das mãos se propagando por todo o corpo, o anão deixou cair a arma ainda coberta pelo pano e acabou também desabando sobre o solo, sentado. Tinha os incrédulos olhos fixos nas vestes vazias, sua mente atordoada como se acabasse de encarar os mil demônios de Devitar. Cuspiu, ainda com algo do odor podre no nariz. E viu que, entre as duas partes rasgadas do manto, algo caíra. Algo que não devia estar ali.

Era um pedaço esfarrapado de pergaminho, enegrecido e rasgado pelo tempo e maus cuidados. Engatinhando até ele e sentindo o suor sob sua armadura, o imediato estendeu uma das mãos e pegou-o. Tratava-se de um fragmento de algo maior, como logo viu, estando incompleto e incompreensível. Não sabia ler, porém já navegara em naus por tempo suficiente para saber se tratar de parte de um mapa, como os sulcos representando ruas e as figuras simbolizando construções rapidamente levaram-no a crer. Só não podia imaginar que local era ali esboçado. Nisso, os outros anões já corriam em sua direção, tendo percebido tarde demais o que ocorrera... Ou apenas mesmo ele pudera visualizar a diabólica figura da velha?

Os colegas estavam mais preocupados com sua queda, mas ela nem importava a Kraivin. Queria saber de que raios se tratava aquele mapa. Abriu caminho entre os confusos parceiros e levou-o rapidamente a Karwevor, o mais velho da tripulação, e também o mais experimentado em cartas cartográficas. O ancião cuidara dos mapas de navegação da Marinha por muitos e muitos anos, antes de desejar um final de vida mais aventuroso como auxiliar náutico a bordo do Barestia. Aturdido, o comandante entregou-lhe o fiapo em mãos sem nada falar, apenas seu agitado olhar bastando para que o idoso anão compreendesse que ele exigia um parecer. Examinou o achado por alguns instantes, coçou a barba grisalha... e devolveu-o, dizendo com segura certeza:

- Pelo contorno das ruas aí desenhadas, em forma de linhas de planisfério, eu diria que se trata de uma representação da cidade de Borenar, capital deste reino. É a única urbe neste mundo projetada assim, a Cidade dos Imperadores. Esse trecho mostra a área próxima ao palácio do rei, mais precisamente.

Kraivin piscou rápido.

- O senhor tem certeza, mestre dos mapas?

- Absoluta. Aliás... deixe-me ver novamente.

Ansioso, o imediato voltou a ceder o fragmento de pergaminho. O velho olhou-o mais demoradamente, virou-o para os lados, de ponta-cabeça... quase do avesso. Por fim completou:

- Há outras linhas gravadas aqui. E terminam em setas. Parece-me algum tipo de plano tático, traçado sobre o mapa da capital e envolvendo a região central, onde reside o soberano boreal.

Plano tático? Como assim? E por que a maldita velha fizera questão de que ele visse justo aquela parte? Indagações estocavam seu cérebro sem piedade, conforme tentava imaginar quem poderia querer invadir Borenar, ou iniciar nela uma guerra... quando lembrou-se.

A coroação!

Amaldiçoou a todos os deuses, até mesmo Bragondir e Shakrut, por depositarem aquele peso em seus ombros. Não poderia, entretanto, negá-lo. Já que o mesmo lhe fora incumbido, teria de seguir a Roda da Fortuna e fazer o que era certo. Ignorava a razão de a mulher pútrida ter-lhe revelado tal coisa – algo que parecia pelo bem e entregue por um arauto que remetia tanto ao mal – porém era certo que não tinha tempo a perder. Ignorando o trabalho no armazém, os companheiros e Trinx, partiu correndo para fora do galpão, no sentido da cidade. Um dos comandados gritou por ele:

- Aonde vai, senhor?

- Kal Sul precisa saber disso! – berrou em resposta, não se importando em gritar. – Maldição, eles querem matar o novo rei! Com sorte alcançarei o capitão antes que chegue à cidade! Podem ir embora quando obtiverem os suprimentos do gnomo, não se preocupem comigo!

Ganhou as ruas bastante aturdido. O breve pensamento de alugar um cavalo morreu quando sentiu os bolsos vazios. Não podia gastar mais instantes arrependendo-se por ter permitido que os anões bebessem, todavia: correndo o mais veloz que o peso de sua armadura e armas permitia, cruzou o portão de Feritia e avançou através da estrada rumo a leste, o céu sobre sua cabeça de longos cabelos já iniciando a transição para a noite.

Kal Sul e os demais ouviram a história do imediato calados, sentados sob a sombra das frondosas árvores junto à via. Levara quase uma hora no detalhado relato. Quando citou o suposto – e, devido às circunstâncias, provável – complô para assassinar Jetro I, o embaixador de Glacis foi visivelmente afetado, seus olhos se arregalando e o machado de batalha que trazia numa das mãos caindo na grama logo que os dedos afrouxaram. Fëanor também sentiu a revelação, cerrando os punhos como se quisesse lutar com os responsáveis ali mesmo. Já os outros, principalmente Freya, aparentaram não muito se importar. Atentados contra reis e imperadores não eram novidade na trajetória do mundo, afinal.

- Se isso for mesmo verdade, temos de nos apressar e avisar o rei – falou o diplomata finalmente. – Ele correrá perigo se sair desprevenido para as festividades da coroação!

- Eu não me preocuparia muito, já andamos boa parte do caminho em marcha acelerada por conta do infortúnio do nosso amigo... – murmurou a mercenária lançando um olhar irônico para Beli Eddas. – Se mantivermos o mesmo ritmo, chegaremos à capital quase um dia inteiro antes da cerimônia.

- E se o assassino se apressar? – cogitou o filho de Göther.

- E atacar Jetro num palácio cheio de guardas? Não, ele teria mais chances nas ruas, com uma multidão para se camuflar. Se houver mesmo uma tentativa de assassinato, será na coroação. Algo bem mais forte e simbólico, além de seguro.

Eles estranharam o fato de Freya aparentar entender tanto de atentados contra figuras públicas, porém não comentaram a respeito. Enquanto se erguiam da relva para seguir viagem Floresta Negra a dentro, Trent Dante questionou o imediato de Kal Sul:

- Teve problemas na estrada, até chegar aqui?

- Quase nenhum – Kraivin replicou num sorriso cansado. – Apenas alguns goblins numa ponte sobre um riacho, na tarde passada. Vigiavam alguns carroções aos pedaços, e quiseram cobrar pedágio quando fui cruzar a travessia. Nem precisei empunhar minhas armas: um grito de desafio e os covardes se atiraram ao curso d’água, dominados pelo desespero. Pensei que este continente reservava criaturas mais perigosas...

O mago de capuz massageou a área do braço que fora mordida pelo carniçal e respondeu, sinistro:

- Cuidado, anão... Pode conseguir exatamente o que procura.

O bárbaro navegador fitou Beli Eddas, e decidiu que não gostava dele.

Sem mais delongas, avançaram pela mata fechada engolindo mais e mais o trajeto.

A Floresta Negra, como haviam previsto, não era tão simples de se transpor. E essa dificuldade era incrementada pelo fato de várias seções da antiga estrada calçada terem desaparecido quase totalmente em meio à vegetação, o caminho exigindo cuidados mais atentos – e urgentes – por parte do rei. As raízes das árvores centenárias estendiam-se por debaixo das igualmente antigas lajotas do trajeto e as removiam do chão, tornando a travessia em muitos locais um monte desordenado de pedras espalhadas e, em outros, um descampado por completo tomado pela grama. Em diversos pontos era preciso ter cautela para não se perder a direção correta – o que quase aconteceu algumas vezes com os aventureiros, enquanto a manhã terminava e a tarde se estabelecia.

Enquanto assim prosseguiam, Beli Eddas observava a vegetação ao seu redor. Diante da diversidade de plantas e animais, o mago imaginou como o ambiente era favorável para os encantos de druidas, cuja magia provinha das forças da natureza. Imaginou se algum viveria ali, em meio às árvores, e a idéia o intrigou. No entanto, duvidava que se revelaria, caso vivesse. Pelo que sabia, costumavam ser reclusos e um tanto hostis a indivíduos que não pertencessem à floresta. Caso algum druida surgisse para espantá-los ou qualquer coisa parecida, todavia, Beli estava certo de que poderia reagir à altura. Um druida tirava energia mágica da natureza, mas ele, sendo um aspirante a mago, já começava a dominar a magia arcana... E ela era abastecida por simplesmente tudo que existia no mundo mortal, e até nos planos etéreos. Aprendera tais fundamentos, entre outros professores, com um mercador de Barbety que dominava o que ele mesmo chamava de “artes ocultas”. Ensinara a Beli, então ainda um menino, que a força do mago estava em poder retirar energia da própria aura do mundo e convertê-la no que bem entendesse. Essa havia sido a grande habilidade ensinada por Mager à cria dos deuses. A verdadeira magia, mais poderosa que a concedida somente pela natureza ou por um só deus.

Ainda que estivesse aprendendo a lidar com tal poder, naquele momento o jovem bufava de insatisfação. O ataque do carniçal fizera com que perdesse um dia todo de viagem sem praticar seus truques ou ler o grimório do tio, tempo valioso de treinamento. E agora, com a marcha continuando acelerada rumo à capital devido à suposta ameaça ao novo rei, tampouco poderia ter sossego para se concentrar e tentar alguns novos encantamentos. Só mesmo depois que atingissem Borenar – isso se não surgissem mais contratempos pelo caminho...

Já Trent Dante, próximo a Beli, fitava a mata com outro viés. Apesar de também se utilizar de energia arcana, perguntava-se se, devido a ser um elfo, criatura naturalmente ligada à natureza, poderia tornar seus encantamentos mais poderosos naquele ambiente. Bem, não se mostrara lá um ser tão íntimo das criações de Wella depois da picada que levara após passar a noite fora das muralhas de Feritia, mas... ele ainda acreditava no que seus pais lhe haviam ensinado. E tinha fé que poderia ainda se tornar um grande feiticeiro...

Enquanto o conjurador encapuzado ouvira, em sua juventude, relatos e ensinamentos de andarilhos misteriosos, o elfo nascido em Behatar crescera com as histórias contadas pelos pais sobre Tanvir, Karshamur e outros feiticeiros famosos, protegidos do deus Feger e que teriam aprendido pelas palavras do próprio seus astutos truques. Ardilosos encantadores que haviam enganado reis, príncipes, impérios inteiros... Tudo por intermédio das artes arcanas...

- Hei! – berrou um carrancudo Beli Eddas quando Trent esbarrou em si, sem que o distraído elfo percebesse. – Olhe por onde anda!

- Desculpe... – Dante replicou desconcertado, afastando-se enquanto achava ser capaz de até tocar o mau-humor do mago, quase se materializando no ar.

Sentia consigo, entretanto, vontade de ensinar a ele boas maneiras...

Nisso, Kal Sul, um dos que seguiam à frente, parou subitamente de andar, logo após olhar agitado ao redor. Kraivin, próximo dele, também se pôs a vistoriar em volta sem nem saber ao certo o que seu superior procurava. Os outros, intrigados, também interromperam a marcha e passaram a averiguar as mesmas direções observadas pelo diplomata anão, uma após a outra, até Fëanor questionar:

- O que houve?

- Freya, a mercenária! – respondeu o embaixador coçando a barba. – Ela desapareceu!

De fato, não havia sinal algum da guerreira ao alcance dos olhos do grupo.

Freya tentava caminhar pela grama alta da floresta sem causar qualquer ruído – tarefa difícil considerando-se o chão acidentado e o peso do equipamento que trazia. Só sua armadura, semi-oculta sob o manto com capuz, já lhe fazia os passos tocarem o solo com bem mais intensidade do que queria. No entanto, se levasse em conta já ter se afastado bastante do grupo de viajantes – cada dia mais tolos e irritantes, para si – não teria problema em provocar ruídos mínimos. Com isso apenas afugentaria os animais nas cercanias, como uma raposa que vira há pouco se ocultar em sua toca, sem chamar a atenção de qualquer outro improvável aventureiro. Teria seu tempo para pensar sozinha, ainda que não muito. Mas era o que queria. Poderia, depois, alegar para os demais ter se perdido deles e demorado um pouco a reencontrar o caminho.

Escalou com os pés uma extensão de raiz que quase chegava aos seus joelhos e saltou de leve para frente, contornando a grande árvore. Quando precisava se isolar daquela maneira para ponderar o que fazer, significava que a situação em que se via envolvida evoluíra de forma muito rápida – para melhor ou para pior. Naquele caso em específico, não sabia dizer ainda ao certo qual era a probabilidade...

Ela demonstrara aos companheiros total descaso para com a história contada pelo imediato de Kal Sul – “Kravitch”, “Gramitch” ou qualquer coisa similar – porém quase deixara transparecer seus sentimentos quando ele citara a figura da velha encapuzada. O aspecto decomposto, soturno, débil... igual à mesma figura que Freya encontrara na taverna de Feritia, convocando-a a rumar até a capital. Não seria insano deduzir se tratar da mesma pessoa, já que não devia haver muitas senhoras morto-vivas vagando pelo continente. O mais intrigante, todavia, era o suposto esquema para assassinar o rei. A conclusão do imediato poderia ser considerada um tanto forçada por alguém que levasse em conta somente a vaga evidência por ele encontrada, porém a mercenária sabia o suficiente para crer que aquilo realmente procedia. Pior: tudo apontava para sua participação no plano. Começava a achar que o que “M” queria era mesmo matar o novo rei.

O pensamento a perturbava. Não que não fosse capaz de realizar o trabalho – muito pelo contrário. Já dera cabo de muitos nobres bem mais guarnecidos do que Jetro I provavelmente estaria durante sua coroação. O problema era a repercussão da morte, quem era o alvo. Cortar a garganta de um duque sovina influente apenas numa cidade isolada era uma coisa, fazer tombar o governante de um reino para o qual o mundo inteiro voltava seus olhos era outra. Para uma operação tão grande, “M” por certo devia ter contratado mais mercenários, mas... e se algo desse errado e ela fosse pega? Pior ainda: e se tudo não passasse de um esquema bem-elaborado para desmascarar possíveis traidores, sendo o suposto assassinato do rei apenas um embuste para atrair gananciosos? Se não fosse assim, por que a velha, então, cedera tão facilmente uma pista do plano ao imediato de Kal Sul? “M” lidava mesmo com gente amadora a tal ponto?

Já indagava demais ao vento. Procurou se centrar, pensando mais no presente antes de conjecturar sobre o futuro. Antes de tudo, teria de despistar Kal Sul assim que entrasse em Borenar e recebesse seu pagamento, pois não poderia cumprir as ordens de “M” na cidade com o anão e seus companheiros farejando-lhe o rastro. O pior era que o maldito sem demora contataria a guarda real, e diante da ameaça de atentado todos os soldados dentro da muralha redobrariam sua atenção. Não seria um serviço fácil, se este fosse mesmo enviar Jetro ao Helmus. Esperava ao menos que “M” lhe pagasse bem. Temia receber apenas mais um monte de ameaças ao som do grasnar de um corvo após cumprir com o combinado...

É mesmo, havia o tal corvo. Era certo que “M”, necromante ou não, o usava para observá-los, principalmente a ela. O contrário seria coincidência demais, e as habilidades que a ave já demonstrara não deixavam mesmo duvidar. Seria bom retornar logo para junto do grupo, ou o pássaro desconfiaria dela caso retornasse e a visse ali. Era certo que retornaria...

Quando deu as costas para voltar ao fiapo de estrada, sentiu ferro junto à sua garganta...

- Me dê um bom motivo para não cortar seu pescoço e me apoderar do seu belo arsenal! – sussurrou uma voz masculina junto ao seu ouvido.

O motivo de Freya foi uma forte cotovelada que atingiu o que achou ser o estômago do adversário. Este recuou junto com o golpe, reduzindo o dano – mas ainda assim com o abdômen latejando e as mãos sem ação por alguns segundos. Tempo suficiente para Freya sacar sua espada e erguê-la na direção do misterioso homem, tentando enterrar a lâmina entre o ombro esquerdo e o tronco...

Se a lâmina dele não houvesse bloqueado o ataque, erguida não se sabe com que força, já que o sujeito ainda mantinha a outra mão sobre a barriga golpeada. A lembrança da derrota para Latife em Tyrnan assolou os pensamentos da guerreira. Ela torceu os lábios. Não deixaria acontecer de novo.

Aquele, por certo, não era Latife. O rapaz vestia uma cota de malha com ombreiras que não combinavam em nada com o resto do traje – acessórios certamente roubados. As pernas eram cobertas por peças de procedência idêntica, os braços metidos em manoplas de couro surradas, porém inteiras. Empunhava um sabre um pouco menor que o de Freya, remetendo aos antigos gládios boreais. O rosto muito branco coroado por ralos cabelos loiros encarava a mercenária com petulantes olhos azuis. O indivíduo não era, entretanto, nada bonito. Porte mirrado, barba falha, uma cicatriz estampando-lhe parte de uma bochecha – embora Freya não pudesse falar muito acerca disso...

- E você, quem é? – ela quis saber, certa de que alguém com aquela personalidade responderia.

- Rillif, prazer! – ele sorriu.

E atacou com uma estocada.

Ela frustrou a investida, revidando com dois golpes altos. Ele bloqueou ambos com uma só mão. Era mesmo habilidoso com aquela arma, ainda que fosse um tanto antiquada. O infeliz devia ter começado a praticar com a mesma por diversão, por achá-la exótica ou coisa parecida. Devia tê-la roubado de uma coleção particular ou, numa situação que não envolvesse rapinagem, herdado-a de algum parente mais abastado. Era incrível o que uma arma podia dizer sobre alguém...

E também incrível como alguém que aprendia a manejar uma por diversão ou curiosidade podia se tornar bom.

Freya saltou para trás tentando escapar de uma série de movimentos do pseudo-gládio. Conseguiu, embora o último tivesse resvalado no peito de sua armadura. Revidou com um movimento longo, a espada cortando o ar demoradamente, até demais... Rillif tomou a vantagem e derrubou-a com um golpe dolorido nas costas. Definitivamente, aqueles não eram seus dias.

Quando ela encontrou o chão de barriga, viu a sombra do salteador por cima de si erguendo a lâmina para liquidá-la. Sua sorte foi que demorou demais, talvez propositalmente: a jovem conseguiu girar o corpo, voltando o rosto para o inimigo, e ergueu ambas as pernas, chutando-o nos joelhos. A força por pouco não foi suficiente para parti-los, mas bastou para atordoá-lo e, no mesmo impulso, colocar o corpo da mercenária novamente de pé.

Agora era Rillif que caía, sentado, sobre a relva... a ponta da espada de Freya logo tateando seu pescoço suado com ansiedade.

- Virada de jogo! – ela demonstrou em palavras o que já fizera por gestos.

- De fato...

Num movimento que Freya não conseguiu compreender – e acreditava até então só poder ser feito pelos famosos monges lutadores de Kartan – o bandido, ainda sentado, uniu as pernas, estendeu-as e girou-as da esquerda para a direita, sem tirar as nádegas do chão... o golpe destas, tão intenso quanto a rasteira de um bastão, servindo para levar a mulher de novo ao solo, quase rompendo suas canelas. Pega desprevenida, soltou a espada... apanhada por Rillif no ar, ao se erguer. Agora ele tinha duas, que usou para envolver a garganta da oponente num “X” antes que ela tornasse a se levantar.

- Realmente, virada de jogo – a competição de frases de efeito e truques sujos já dava nos nervos de Freya enquanto ela o ouvia falar.

A guerreira começou a pensar numa maneira de sair daquela situação, quando ouviu arbustos se mexendo perto dali, voltando a face para a direita...

Uma figura negra encapuzada saiu dos ciprestes, olhando ao redor aparentemente à procura de algo. A cabeça com os cabelos longos e pretos fez-se visível sob o manto por um momento: tratava-se do mago Beli Eddas.

Rillif não o viu, ao menos de início. A mercenária queria chamar a atenção do recém-chegado, fazer com que percebesse o que ocorria. Ainda que acreditasse que em quase nada aquele sujeito pudesse ajudá-la, seria melhor que ter o pescoço retalhado por um ladrão que se mostrara bom demais em combate. Voltou a cabeça de novo para seu agressor, com o intuito de disfarçar... e ficou aliviada ao ouvir uma exclamação de surpresa por parte do companheiro de viagem. Ele os avistara.

Beli Eddas teve uma visão no mínimo curiosa diante de seus olhos: um homem desconhecido, armado com duas espadas – uma das quais muito se parecia com a de Freya – mantendo a mercenária numa posição rendida, a ponto de cortar-lhe o pescoço. Naquele momento, o aspirante a mago não pensou no risco vivido pela jovem, na identidade do rapaz misterioso e muito menos em como aquela situação se desenrolara até aquele ponto. O ímpeto que o invadiu era, na verdade, bem egoísta – reconhecia isso – porém não podia negá-lo.

Alguém em quem usar seus poderes. Alguém para praticar suas magias.

Fora pouco tempo de prática desde o incidente envolvendo o carniçal, que o incapacitara. Entretanto, as poucas leituras do grimório do tio e momentos de concentração desde então já haviam lhe valido alguns novos truques anotados nas páginas do livro de encantamentos. Melhor ainda: dois deles que prepara aquela manhã, consultando o tomo, serviriam perfeitamente para aquela ocasião.

Preparando sua investida, o jovem conjurador abaixou-se e apanhou uma pedra do solo – um tanto roliça, mas dura. Segurando-a na mão direita, atirou-a de leve para cima algumas vezes, para sentir-lhe o peso: bastaria. Foi nesse instante que a cabeça do sujeito ameaçando Freya voltou-se para ele, franzindo as sobrancelhas. Exclamou, com ar zombeteiro e convencido:

- Vá embora, mendigo! Não quero ter de machucar mais alguém!

Foi a vez de Beli franzir o cenho. Odiava quando o chamavam assim, por certo devido à sua aparência. Continuou impelindo suavemente a pedra para o alto, a mesma tornando a pousar na palma de sua mão a cada segundo. Respondeu, sua voz determinada ressoando pela floresta:

- Eu não sou nenhum mendigo.

Rillif riu, continuando a depreciá-lo:

- Vá embora, homem. Se ousar arremessar essa pedra contra mim, vai sair daqui com esse manto encardido rasgado, assim como sua carne!

Beli procurava conter sua raiva. Esta ajudava na acumulação de energia mágica não poucas vezes, porém atrapalhava e muito a canalização da mesma, já que o processo exigia que se concentrasse. Durante sua vida cheia de percalços, experimentara o ódio puro diversas vezes, e estava ciente de que constituía estimulante perigoso. Para uma magia bem feita, teria de controlar seus impulsos. Queria, afinal, dar uma lição naquele imbecil, e não ser alvo de chacota ainda maior fracassando.

- Com medo, é? – o guerreiro soltou mais uma provocação diante do silêncio do mago.

Este fechou brevemente os olhos, apertando firme a pedra em sua mão, envolvendo-a com os dedos. Focou-se nela, em sua textura, constituição... e murmurou baixinho algumas poucas palavras no dialeto arcano. Deixou que as forças regentes do universo invadissem seu corpo e permeassem o artefato... Apesar da aparência demorada, o processo levou pouco mais de um instante. Menos tempo do que o inimigo poderia perceber.

Num súbito movimento com o braço, Beli Eddas atirou a pequena rocha... de maneira desajeitada, como uma criança que não sabe ainda medir a própria força. O objeto levantou vôo de forma curva, descrevendo trajetória por total contrária ao alvo, fazendo com que ele iniciasse uma gargalhada de deboche...

Quando de repente, em pleno ar, a pedra se redirecionou num caminho aparentemente impossível, como se guiada por algum tipo de força que não pudesse ser vista. Após uma ou duas curvas inacreditáveis, chocou-se contra algo duro e o riso de Rillif foi calado. O projétil acertou-lhe no queixo, quase o quebrando e fazendo sua mandíbula estalar dolorosamente. Em seguida precipitou-se no chão, caindo de forma normal como se nunca houvesse deixado de ser uma simples rocha. E o bandido, segurando o local ferido com uma das mãos, tinha agora os olhos arregalados.

- Bruxo maldito! – praguejou, sem perceber ter agora novamente só uma espada em seu poder: a sua.

Bem, depois daquela ele por certo não voltaria a chamar Beli de mendigo. Mas a desforra ainda não estava completa. No momento de distração de Rillif, Freya aproveitou-se para chutá-lo no abdômen e erguer-se já com sua espada novamente em seu poder. Ela a brandiu contra o oponente... porém o mago foi mais veloz. Gesticulando com as mãos como se manuseasse algo invisível no ar, ao mesmo tempo em que os lábios balbuciavam as palavras necessárias, um disparo de energia esverdeada, formato oscilando entre o oval e o circular, foi lançado pela ponta dos dedos de uma de suas mãos... atingindo o peito do guerreiro numa leve explosão luminosa. Ele caiu para trás, empurrado alguns metros sobre a grama pelo ataque. Mal teve tempo de medir os danos, sentindo suas costelas queimarem, outro projétil brilhante veio zunindo em sua direção, atingindo-o numa das coxas armaduradas. E antes que a mercenária ou o conjurador empreendessem nova investida, o salteador levantou-se do chão e desapareceu mancando por entre a floresta, soltando palavrões que aos poucos se silenciaram.

Freya voltou-se para Beli, ofegante e com a arma ainda erguida:

- Tenho de reconhecer que foi rápido e ágil... Obrigada.

O mago não esboçou nem mesmo a sombra de um sorriso quando respondeu:

- Não pense que eu fiz isto por você.

E afastou-se de costas para a jovem, andando lentamente... deixando-a atônita. Coisa difícil de se conseguir, no caso dela.

Após Eddas ter se distanciado um pouco, a guerreira por fim embainhou o sabre e também partiu.

A tarde já avançara um bom tanto quando Beli Eddas e Freya retornaram para junto do grupo. Este havia se dividido à procura da mercenária e há pouco se reunido novamente – apenas o mago tendo obtido sucesso. Ele se recusara a perguntar à mulher sobre quem era o homem que a atacara, e como ela também nada comentara a respeito, resolveu deixar pra lá. Para os demais, ela usara a desculpa de ter se perdido deles – e por incrível que pareça conseguiu resultados, apesar de um ou outro grunhido insatisfeito por parte de Kraivin. A marcha prosseguiu cansada, em velocidade menor. A floresta parecia nunca terminar, embora após algum tempo a estrada já voltasse a aparecer em meio à relva alta. O sol foi se escondendo, o céu ficando escuro... e, quando os últimos carvalhos ficaram para trás, dando lugar a uma vasta e confortável planície, já era noite estrelada. Foi bem na saída da mata, próximo ao caminho, que eles acamparam.

Fëanor e Trent Dante cuidaram da fogueira. O primeiro providenciou a lenha – tendo jurado ver alguns monstros altos e bípedes nas redondezas quando se embrenhou entre as árvores para cortá-la – enquanto o feiticeiro criou nela fogo com um truque simples. Indagando aos demais a respeito do que podia ter visto, o aspirante a Cavaleiro da Luz foi informado, pela descrição fornecida, que provavelmente se tratavam de bugbears. Nunca tinha visto um, porém não queria que aquele fosse o momento. Talvez depois de uma reconfortante noite de descanso...

Sentando-se junto às chamas, imaginou se um dia seria capaz de partir um deles em dois com a espada de seu pai. O pensamento o fez sorrir.

Comeram frutas silvestres e um pouco de carne de esquilo que Kal Sul conseguira durante o dia, na floresta, durante a procura por Freya. Para beber, o pouco de água de seus cantis. Esperavam atingir a capital no dia seguinte. O conforto de uma hospedaria já valeria por todas as penúrias daqueles dias de viagem a céu aberto.

O sono logo veio, como era natural naquelas condições. Kraivin optou por ser o primeiro a fazer a guarda, depois de ter passado algum tempo com Kal Sul examinando o fragmento de mapa que encontrara no armazém em Feritia. O embaixador só pôde ter a mesma opinião que a de seu imediato: tratava-se mesmo de um estratagema envolvendo a área central da capital e, dadas as circunstâncias, a hipótese mais viável era mesmo a de se tentar assassinar o rei. Teriam de agir depressa quando chegassem a Borenar. Se o assassino acabasse descobrindo que eles sabiam de seu objetivo, talvez por intermédio da tal velha asquerosa, o esquema poderia ser apressado e o soberano eliminado de qualquer maneira.

Os outros se deitaram e logo adormeceram. Kraivin permaneceu sozinho sentado em cima de uma pedra, de frente com a noite. O piar das corujas e o uivo de lobos no interior da mata não bastavam para quebrar sua sensação de solidão. Suspirando, lembrou-se de um antigo provérbio de navegadores que ouvira num dos portos de Glacis: “um marujo não se sente só no meio do oceano, ainda que ele seja tão vasto, devido ao murmúrio da madeira de seu barco”. Em terra, a situação era diferente. Não importava o som de qual animal ou o farfalhar de qual planta: nada conseguia aplacar o isolamento de um mortal habituado a se aventurar pelas águas marinhas.

Assim segregado pelo sono alheio e vazio na estrada, o imediato do Barestia pôs-se a divagar, logo sendo acometido de inevitável melancolia. Tomou-lhe os pensamentos a memória de Koola, antiga paixão não-correspondida e irmã da mulher de Kal Sul, Keylia. Os dois haviam crescido como grandes amigos, porém quando o sentimento de Kraivin para com a anã evoluiu ao ponto de ela não ser mais capaz de retribuir, o então rapaz decidiu se afastar e seguir um caminho próprio para esquecê-la. Fora quando se entregara ao oceano, arriscando-se na Marinha de Glacis. E continuava em tal vida... sem no entanto ainda ter tido sucesso em apagar a antiga paixão de suas lembranças. Possuía uma mulher em cada porto – até mesmo já tendo dormido em companhia de uma linda elfa – mas nenhuma era capaz de substituí-la...

CROA! CROA!

O súbito som o retirou de supetão dos pensamentos – e não sabia sentir-se agradecido ou violado por isso. Olhou para o alto de uma árvore próxima. Empoleirado num galho, um corvo o olhava e grasnava com deboche.

- O que foi? – inquiriu para a ave, nervoso. – Vá embora!

CROA!

- Vá embora, corvo! – o bárbaro ergueu mais a voz, mas o pássaro aparentou não dar a mínima.

Era um simples corvo, porém... algo na presença dele incomodava muito o imediato. Certo era que antes estava incomodado por ficar sozinho, entretanto não desejava uma companhia como aquela.

Teve de passar com ela algumas horas, até terminar seu turno da guarda. Kal Sul e Trent Dante então acordaram, assumindo ambos seus postos – já que tinham tido sono suficiente para aquela noite. Depararam-se com o corvo e agiram com naturalidade bem maior do que antes, ainda que a presença dele ainda os incomodasse perceptivelmente. Confuso a respeito, Kraivin perguntou:

- Que pássaro é esse?

- Ah, vejo que o conheceu... – o embaixador pousou uma mão no ombro direito do imediato.

- É um corvo – resmungou o elfo. – Um corvo muito insistente.

E permaneceu ali até a noite findar, quando voou com a aurora.

A manhã veio leve, cálida. Beli Eddas sentou-se para ler o grimório enquanto os demais arrumavam suas coisas, preparando-se para continuar. Eram oito horas quando se puseram a percorrer novamente a estrada.

A planície se estendeu por um bom tempo até atingirem o forte Gustaff. Uma das fortificações distribuídas estrategicamente em torno da capital para facilitar sua defesa, era também indício de que a cidade estava próxima. Possuía dois portões paralelos entre si: um na muralha sul, de frente para a estrada que percorriam e também para uma lagoa de águas cristalinas e alguns patos, e um outro voltado para o norte, aos fundos do local, conduzindo para as terras ao redor de Krisman e um braço da Floresta Negra que ainda se estendia por uma certa distância naquela direção. Os viajantes foram saudados pelos guardas nos muros, e nada mais. Não poderiam se deter ali. O tempo urgia, e a vida de Jetro I dependia da rapidez do grupo.

Mais algumas horas de caminhada e o entardecer veio, o céu sendo colorido de um laranja intenso. A estrada, num extenso trecho em que mantinha intacto seu antiqüíssimo calçamento, avançava quase em linha reta, até que seu destino final foi desenhado no horizonte. Diante dos aventureiros ergueu-se uma muralha alta e sólida, dotada de várias torres ao longo de seu contorno circular. Eles se aproximavam de um de seus quatro portões, cada um situado numa extremidade da circunferência, compondo um esquema em cruz. Aquele era o portal oeste, mais precisamente.

As cabeças de todos, principalmente daqueles que nunca tinham visto antes aqueles imponentes muros, ergueram-se para lhes prestar reverência com o olhar. Edificados em pedra e tijolos, bravos soldados em seu topo já haviam lutado para defender aquela urbe em muitas ocasiões, assim como o povo também se aglomerara no passado junto aos seus beirais para saudar a chegada de imperadores, reis e generais triunfantes. Cornetas douradas incontáveis vezes já haviam ressoado por sua estrutura, anunciando feitos que haviam alterado a história do mundo – a mesma tendo sido iguais vezes determinada pelos decretos dos soberanos habitando o interior daquelas muralhas. Construções rijas, resistentes como montanhas, sinceras testemunhas da trajetória dos mortais por aquelas terras desde seu surgimento.

- Aqui estamos... – suspirou Freya, a menos afetada pela grandiosidade do cenário. – A Cidade dos Imperadores.

“Borenar, Borenar, princesa da guerra

Dentro de teus muros o povo espera

Ansioso, regressar quem te governa”

- Salamir de Trondhor, aprox. 940 ACD.