Capítulo XI

“Rimiryn e os orcs”

O grupo despertou animado, tenho dormido bem e logo de pé para o prosseguimento da viagem. Killyk já havia se recuperado bastante dos ferimentos e quase conseguia andar rápido como antes, enquanto os demais queriam se apressar em deixar aquela região florestal com o temor de que mais gnolls, ou salteadores mais perigosos, aparecessem. Andaram por algumas horas sob um sol brando, até a mata se abrir e revelar uma extensa pradaria. A estrada calçada, cortando por entre a grama, levava a uma cordilheira de montes rochosos parcialmente áridos, um dia ou mais de caminhada adiante. As Terras Altas, famosa barreira natural antes do contínuo terreno plano rumo ao norte até a capital. Aos pés das elevações, um pouco antes das mesmas, podia-se visualizar um conjunto de casinhas singelas, feitas aparentemente de madeira com telhados de palha, alguns fios de fumaça cinzenta subindo de chaminés de pedra situadas em algumas. A vila de Garuny, povoação de agricultores com não mais que cem habitantes. Caleb passara por ela em sua ida até Tileade, enquanto Kirinak tentara contorná-la como pudera, caminhando pelos campos a uma distância segura de olhos intrometidos. Agora, provavelmente, avançariam pelo meio dela, e a idéia não agradava muito à clériga. Porém não se manifestou: o grupo parecia farto de seus protestos.

Continuaram pela via e aproximaram-se do povoado quando Northar estava no meio do firmamento, marcando a metade do dia. Os estômagos começavam a roncar de fome, e alguns desembrulharam de suas coisas os restos de carne de cervo da noite anterior. Comiam enquanto andavam, estranhando um pouco a ausência de trabalhadores nas terras cultivadas perto da vila. As hortas e plantações encontravam-se totalmente vazias, inclusive com ferramentas como enxadas e rastelos deixadas pelo chão de modo a pensar terem sido abandonadas às pressas. No meio do descampado, uma pequena capela de teto cônico se destacava, com cestos de milho, trigo e outros produtos dispostos à porta. Oferendas a Wella, protetora das colheitas. Ao passarem em frente ao templo, Kirinak apressou os passos. Não desejava travar contato com nada que remetesse à sua antiga e sofrida vida no santuário – incluindo a falsa deusa.

Atingiram, logo, a área dominada por casas. E a impressão tida das plantações seguiu prevalecendo: o lugar parecia uma cidade-fantasma. As simples moradas tinham portas e janelas cerradas, embora as chaminés liberando vapor deixassem claro haver alguém dentro delas. Pessoa alguma podia ser encontrada do lado de fora, no entanto, e a brisa vespertina que soprava parecia conceder desalento ainda maior ao lugar. Intrigados, os aventureiros não continuaram avançando pela estrada, gastando alguns instantes numa averiguação do povoado para entender o que ocorria. A única explicação plausível era que, se salteadores não haviam atacado o local e dominado as casas dos antigos moradores, então estes estavam se escondendo de algo ou alguém.

- O que terá acontecido aqui? – questionou Lisah, Kiche olhando para os lados numa demonstração de quase sempre compartilhar dos sentimentos da dona.

- Não sei, mas com certeza não é natural... – murmurou Rosengard, coçando o queixo com a mão que não segurava o cajado.

O silêncio imperava. Por um momento passou pela cabeça de todos a possibilidade de os habitantes de Garuny terem sumido de súbito por conta de alguma magia atroz, enquanto estavam envolvidos em suas atividades diárias. Mas a sombria hipótese se dissipou quando Hachiko viu, atrás da parede de uma das casas, um par de bracinhos e uma cabeça semi-oculta espiando com olhos temerosos os estranhos recém-chegados. Um pequeno menino de cabelos curtos e pele suja sem achar ter sido notado. A elfa de cabelos prateados – que por sua aparência parecia centrar mais a atenção do garoto – adiantou-se na direção dele, fazendo-o recuar assustado. Ela soltou uma leve exclamação para que não tivesse medo e, cedendo à tentação de entrar em contato com uma criatura tão bela, ele parou. A arqueira ajoelhou-se diante dele, sorrindo, acompanhada pelos colegas de viagem.

- Qual o seu nome? – Hachiko perguntou, serena.

- Rick... – a criança replicou com um dedo na boca.

- Onde estão todos? – quis saber Lisah. – O que houve?

Nisso, o rangido de uma porta interrompeu o diálogo. Passos apressados foram ouvidos, os forasteiros tirando os olhos do menino e transferindo-os para a entrada da casa ao lado. Uma mulher de vestido velho e cabelos desgrenhados veio correndo até o pequeno, quase se jogando sobre ele de joelhos e abraçando-o pelas costas num gesto exageradamente protetor. Tateou o garoto de cima a baixo para verificar se não possuía algum ferimento e em seguida ergueu a agitada cabeça na direção dos aventureiros. Estes puderam então notar que os olhos da camponesa estavam vermelhos de tão irritados e que escuras olheiras delineavam-nos por baixo. Ao que aparentava, há tempos aquela vila não tinha noites bem-dormidas.

- Vão embora! – a mãe lhes ordenou, a trêmula voz hesitando entre o medo e a raiva. – Não há nada para vocês neste povoado!

- Não queremos saqueá-los nem nada parecido – Killyk tentou esclarecer. – Estamos apenas de passagem, e estranhamos o vazio da vila.

- Não se detenham aqui, sigam seu caminho, é um conselho que dou! – a mulher disse muito séria. – Coisas terríveis aqui têm acontecido!

- Ela tem razão – concordou Kirinak, ansiando por deixar aquele lugar o quanto antes. – Vamos embora!

- Que coisas? – ignorando o apelo da clériga, o druida inquiriu.

A mãe de Rick demonstrou receio em revelar a eles o que sabia, seu olhar se perdendo no céu acima deles enquanto os braços permaneciam envolvendo fortemente o filho. Por fim respondeu, ainda incerta:

- Uma horda de orcs... Eles se instalaram nos montes perto daqui, têm pilhado nossa vila há meses... No último ataque, dias atrás, eles raptaram algumas crianças... Minha filha estava entre elas!

Incapaz de se conter, a mulher pôs-se a chorar, suas lágrimas banhando os ombros do filho que, ainda muito jovem e inocente, felizmente não compartilhava da mesma dor que a mãe. Atraídos pelo pranto da moradora ou pela aparente ausência de perigo representada pelos recém-chegados, mais pessoas começaram a deixar o interior de suas casas. Crianças, jovens, adultos, velhos... todos com expressões tristes ou vazias, físicos debilitados e uma desesperança quase tangível, conforme se aproximavam dos forasteiros. O bardo, perplexo, julgou não ver tamanha penúria desde quando ele e o pai haviam livrado um povoado em Astar de uma praga de insetos reminiscente do Crepúsculo dos Deuses. Naquele caso atual, porém, era um mal intermitente representado por criaturas capazes de seqüestrar crianças. Algo bem mais perverso, talvez.

- Os malditos orcs vêm e nos roubam sempre que querem! – berrou um senhor idoso de bengala e barba branca, trajando uma túnica surrada. – Se ao menos tivéssemos uma guarda para resistir a eles, mas somos apenas agricultores, não usamos armas!

- O único que nos defendia, para piorar, sumiu! – revelou um pai de família, algumas crianças se escondendo atrás de si.

- E quem é esse? – Caleb franziu as sobrancelhas.

- Rimiryn, o velho! – replicou um rapaz pouco mais novo que Kirinak. – Ele era um espadachim a serviço de algum rei no passado, portanto sabe manejar um sabre. Chegou até a derrubar um ou dois orcs em ataques passados à vila. Depois do último, ofereceu-se para perseguir os bandidos até seu covil e trazer as crianças de volta... Mas já se passaram várias luas sem sinal dele. Acreditamos que não voltará.

- Ele já era quase um esqueleto em pé... – resmungou uma senhora corpulenta, braços cruzados. – Ou morreu de cansaço no caminho, ou foi moído pelos malditos orcs...

- Eu confio em Rimiryn! – contra-argumentou um outro camponês. – Ele ainda voltará. Talvez apenas esteja eliminando os orcs aos poucos.

Um repentino silêncio voltou a se instalar, como se a vila ficasse novamente vazia – mas não, seus habitantes se mantinham ali. O fato de terem se calado deu-se devido a perceberem, finalmente, que os forasteiros portavam uma infinidade de armamentos – característica a qual, devido à velocidade dos acontecimentos, não haviam sido capazes de ocultar. Espadas, adagas, arcos, até mesmo o bordão de Caleb... No entanto, os observadores apenas trocaram murmúrios ansiosos entre si, alternando o olhar entre seus conterrâneos e os visitantes... quando um menininho, desprovido de vergonha, gritou, apontando para o grupo no centro da roda que se formara:

- Vejam, eles têm armas! São guerreiros! Podem ir procurar Rimiryn e meus amigos!

- É verdade! – emendou um lavrador. – Mercenários, talvez. Não temos muito, mas podemos pagar com comida, com grãos! Sejam nossos salvadores, por favor! Nossos filhos ainda podem ser resgatados!

- Não podemos contar com mais ninguém neste momento, fariam isso por nós? – choramingou a mãe de Rick, ainda ajoelhada, agora numa postura remetendo a súplica. – Por favor!

Kirinak fez uma careta tão feia que parecia ser acometida de dor. Os demais se entreolharam, sem jeito. Hachiko até esboçou um gesto para esconder sua aljava de flechas; porém, desconcertada pelos olhares, constatou já ser tarde demais. Rosengard, o único não tão afetado, deu de ombros.

A tarde seguia com o grupo de cinco aventureiros rumando para noroeste, numa extensão mais próxima das Terras Altas, onde os habitantes de Garuny presumiam estar localizado o covil dos orcs salteadores. Aos poucos a paisagem de grama e árvores deu lugar a escarpas rochosas e íngremes, o solo se tornando árido e estéril. A subida tornava-se mais difícil a cada momento, mas felizmente eles não teriam de vencer grandes alturas para atingir o esconderijo dos bandidos, uma provável caverna inserida no recortado paredão de pedra. Marcharam em silêncio por uma considerável distância, até Kirinak se manifestar, fazendo questão de deixar clara sua expressão emburrada:

- Não sei como nos metemos nesta... Custava termos saído andando e ignorado aquelas pessoas?

- Se você é egoísta a esse ponto, clériga de Wella – e Caleb fez questão de frisar o nome da deusa, tanto por saber incomodar à garota, tanto por conhecer a verdade sobre ela – eu apenas lamento...

Conforme se enveredavam rumo à possível batalha, revisavam em suas mentes o que sabiam sobre orcs. Criaturas feias e asquerosas, nascidas, segundo o mito, da terra umedecida pelo sangue precipitado dos céus nos últimos anos antes do Crepúsculo dos Deuses. Tinham hábitos noturnos, já que detestavam a luz solar. Northar lhes era inimigo natural. Não que evaporassem ao serem atingidos pela claridade do astro, do mesmo modo como se dizia ocorrer com os vampiros das lendas, mas eram ofuscados pela luz, ficando quase por completo incapazes de agir. De fato, os camponeses confirmaram que as investidas da horda só se haviam dado à noite. Atacando durante o dia, os viajantes poderiam tentar atrair os inimigos para fora de seu reduto e, com a vantagem do sol, ceifá-los facilmente.

Quanto à aparência, julgava-se que nenhum deles até então encarara um orc de perto para sabê-la – foi o que todos declararam, ainda que não correspondesse por completo à verdade. Porém era universalmente conhecido serem tão disformes e desproporcionais quanto os goblins. Embora maiores e mais fortes que estes, seu aspecto não inspirava menor repugnância: pele oscilando em tons entre o verde e o preto, passando às vezes pelo cinzento. O corpo era coberto por pêlos espessos e as mãos e pés terminavam em unhas afiadas e sujas. A face compunha espetáculo bizarro à parte: orelhas compridas e pontudas, mas não graciosas como as de um elfo ou halfling: dir-se-ia serem orelhas de morcego. O nariz parecia um focinho de porco achatado e da grande boca se projetavam presas compridas e cheias de cáries como as de um javali. Os olhos eram um par de cavidades escuras das quais brotavam pupilas vermelhas como lava no fundo de um vulcão; órbitas que miravam seus inimigos com um instinto assassino que costumava encher os mais fracos de terror. Usavam geralmente peças de armadura em frangalhos roubadas dos indivíduos que assaltavam, suas armas em não melhor estado. Ainda assim, podiam constituir belo incômodo em grande número. Bandos de orcs saqueadores não costumavam passar de dez, já que uma maior quantidade de membros sempre resultava em disputas encarniçadas pelo saque que obtinham, mas os aventureiros não poderiam saber contra quantos exatamente lutariam naquele caso.

Estavam confiantes, porém. Eram cinco viajantes habituados a perigos – com exceção talvez de Kirinak e Killyk – e se achavam capazes de liquidar o bando e assim resolver o problema do vilarejo. Esperavam isso, ao menos...

Enquanto se moviam, apenas encaravam o cenário à procura de algum indício do esconderijo... com exceção de Eleniak. O bardo, repetindo um comportamento que vinha tendo desde a manhã, não tirava os olhos de Lisah praticamente um instante sequer. A elfa de cabelos negros perguntava-se a respeito do motivo da fixação do rapaz em si, e logo deduziu estar relacionada à revelação que a ele fizera na noite anterior. Começava a se arrepender do ato, desejando com todas as forças que ele não falasse a respeito com mais ninguém.

Hachiko, mais do que atenta à paisagem em si, tinha os sentidos focados no solo. Procurava nele indícios da passagem dos orcs que os pudessem denunciar até seu destino. Abaixando-se num dado momento, tateou o chão rochoso com cuidado, ao mesmo tempo em que indagava aos outros sem olhá-los:

- Os camponeses não falaram nada sobre os salteadores montarem cavalos, falaram?

- Não, nada – confirmou Lisah.

- Hum...

A elfa de Kartan examinou todo o aspecto do solo dali até mais à frente. Estava mais gasto do que deveria, indicando movimento recente e constante. Não se podia falar em pegadas – o terreno não permitia esse tipo de rastro e já havia dias desde a última vez que, presumivelmente, os orcs haviam se deslocado – porém era sinal suficiente de estarem no caminho certo. Parando no alto de uma pequena elevação da qual era possível visualizar com maior clareza os arredores, a arqueira apontou para uma direção específica levando a uma dobra do paredão. Os demais confiavam nela, e por isso seguiram no mesmo rumo. Além disso, Anuk e Kiche também avançaram farejando na mesma direção – ainda que, naquele caso, seus donos estivessem inclinados a ceder mais crédito ao julgamento da elfa.

Andaram até quase o fim da tarde. Um vento seco, já característico das Terras Altas, encontrou-os quando atingiram o término do caminho indicado por Hachiko. Atrás deles, Garuny se convertera num amontoado de pequenas casinhas que àquela distância pareciam miniaturas deixadas jogadas por algum príncipe traquinas. Diante deles, por sua vez, havia uma alta fenda negra nas rochas, tão estreita que de longe por certo passaria despercebida, levando ao incógnito interior do paredão. A caverna dos orcs, certamente. Silenciosos, os aventureiros esconderam-se atrás de um monte de pedras próximo, de onde podiam observar com clareza a entrada. Só teriam, agora, de esboçar um plano para emboscar os inimigos.

- Eles são ofuscados pelo sol – afirmou Caleb. – Voto em atraí-los para cá de alguma maneira enquanto podemos ainda contar com ele.

- Atrair como? – indagou Kirinak, sempre pessimista.

- Algum barulho, talvez? – cogitou Killyk, alguém bom nisso.

- Depende do barulho – ponderou Lisah. – Essas criaturas vivem de saque, é a única coisa que as atrai. Talvez se elas pensarem haver algo para ser pilhado aqui, bem na porta de seu covil...

Orcs não eram lá muito inteligentes, pelo que sabiam. Talvez algo não muito elaborado já bastaria. Valia a pena arriscar.

Os olhares se voltaram para o bardo...

Ele, um pouco trêmulo, apoiou ambas as mãos numa das rochas que lhes serviam de barreira e replicou:

- Certo... Vou tentar!

O elfo deixou o abrigo a passos rápidos, achando que caso se movimentasse velozmente poderia angariar mais coragem. Quase tropeçou no chão irregular quando parou, encarando a sombria entrada da caverna – como uma cicatriz num rosto pétreo – poucos metros à frente de si. Limpou a garganta. Talvez não precisasse necessariamente conjurar uma magia arcana para fazer aquilo – habilidade que os bardos possuíam graças ao uso de seus instrumentos ou lírica – bastando usar sua experiência de imitação de vozes, outro dom que lhe fora transmitido pelo pai. Certa vez, ainda em Astar, ele e Fertick haviam ludibriado todo um bando de salteadores kobolds ao se passarem por ogros atrás de uma moita, imitando os característicos murmúrios monstruosos de tais criaturas. Um processo que exigia bastante da garganta e treino para se mostrar convincente – mas, apesar de certo receio, Killyk confiava na própria experiência. Pigarreou mais uma vez... e abriu bem a boca, fazendo suas cordas vocais trabalharem:

AHHHHHHHHHH!!! SOCORRO, ME AJUDEM! POR FAVOR, SOCORROOOOO!!!

Kirinak conteve-se para não rir – ainda que os demais, atrás das pedras, mantivessem sua seriedade. O grito de Eleniak saiu tão agudo que, caso não estivesse olhando para ele, poderia jurar que fora emitido por uma mulher. Isso denotava a perfeição do ardil do bardo, porém não deixava de ser bem engraçado – ao menos a ela. Sem levar isso às claras, todavia, pois sabia que seria repreendida pelo grupo, a clériga fugida permaneceu observando a entrada da caverna... no aguardo, assim como os demais, da iminente reação dos orcs em seu interior.

O silêncio instalou-se. Todos eles mal ousavam respirar, Killyk permanecendo de pé diante da abertura sem mover qualquer músculo, quase como uma estátua. Seus olhos sequer piscavam, encarando a escuridão que aparentava ocultar seres dos mais vis. Nem passou por sua cabeça o pensamento de retornar para o esconderijo rochoso, tamanha era sua apreensão. Seus companheiros pensaram em chamá-lo, porém teriam de fazê-lo em voz alta e isso por certo atrairia atenções indesejadas – principalmente se já houvesse um dos bandidos a caminho. De todo modo, também não tinham mais tempo. Apreensivos, ouviram um grunhido vir do fundo da caverna, ecoando até o lado de fora.

Armas foram erguidas. Enquanto Lisah sacava suas duas espadas e Kirinak se munia de pedras, Hachiko inseriu uma flecha no arco e Caleb brandiu uma foice, até então oculta entre suas coisas. A elfa de Astar lançou um olhar intrigado para a lâmina levemente enferrujada, indagando em voz baixa:

- Onde conseguiu isso?

- Um dos lavradores me deu, lá em Garuny – Caleb explicou com naturalidade. – Fez questão. Seu instrumento de trabalho... talvez se mostre útil contra os orcs.

- É, talvez... – murmurou ela em resposta, perguntando-se se o druida conseguiria mesmo usar aquilo.

Mais instantes de apreensão. Os grunhidos se repetiram, ecoando pelas paredes do reduto – agora mais próximos. Alguém, realmente, estava vindo...

Um par de olhos amarelos animalescos logo brilhou na penumbra da caverna. Passos uniram-se aos murmúrios... e os contornos do orc puderam ser parcialmente visualizados. Killyk, como por reflexo, abaixou-se dobrando as pernas, acreditando que a medida dificultaria sua descoberta. A criatura, para sua sorte, não se aventurou para fora – confirmando a característica de ela e seus semelhantes não saírem ao sol. O tom dos resmungos remetia a isso, e o vigia não mais avançou. Sua silhueta semi-visível, porém, já era suficiente para que Hachiko conseguisse mirá-la. Ergueu-se lentamente de trás da pedra que a escondia, corda do arco esticada...

O salteador devia tê-la notado no último instante, já que emitiu um som surpreso – ou então enxergara o elfo. Mas já era tarde.

A flecha voou em sua direção, zunindo através do ar por cima do bardo. Do lado de fora, o grupo ouviu apenas o baque do corpo caindo sobre o chão, num leve estalido metálico devido à armadura que usava. Mesmo sem ter observado a cena, a elfa de Kartan sabia ter atingido o alvo onde o visara: no pescoço. De fato, o orc jazia agora com o projétil atravessando-lhe a garganta, o peitoral e as paredes sujas devido ao sangue preto que jorrara. Morreu engasgado entre espasmos, sem causar grande barulho... e aparentemente, sem tampouco alertar os companheiros.

- E agora? – inquiriu Kirinak baixinho, observando a novamente silenciosa entrada do reduto. – Como iremos atrair os outros?

- Eles logo sentirão a falta dele e virão ver o que houve... – afirmou Caleb. – Ao menos assim espero...

Nisso, Eleniak conseguiu finalmente voltar para junto dos colegas, correndo atrapalhado até o esconderijo rochoso. Estava ofegante, demonstrando ter sentido ansiedade bem maior do que gostaria. Sua expectativa se uniu à dos demais. Os próximos instantes poderiam determinar o rumo daquela incursão...

Os ouvidos atentos captaram novo rumor, vindo das profundezas da fenda. Os lobos rosnavam baixinho. Os aventureiros, por sua vez, apertaram os cabos de suas armas, aguardando. O som logo se converteu em passos, apressados... e novos grunhidos. Mais inimigos surgiam, em bando, e não eram poucos. Os viajantes estreitaram os olhos para tentar visualizá-los no interior da caverna... porém logo não precisaram mais do esforço. Os salteadores encaminharam-se para fora, desafiando o sol. Mantinham, na verdade, rústicos escudos metálicos erguidos acima de suas cabeças, os círculos e retângulos imperfeitos de suas formas fornecendo-lhes sombra suficiente. Nas outras mãos, traziam espadas, machados e maças em igual estado precário. Mais e mais, foram deixando o reduto: três, quatro, cinto... sete. E, raivosos, puseram-se a examinar os arredores, na certa alertados pelo infortúnio de seu companheiro.

Killyk, como bom bardo, lembrou-se de um verso que se enquadrava bem àquela situação... Se o sol reflete em nossos sabres e nos ofusca os olhos, verteremos o sangue do inimigo à sombra. Pertencia ao poema “Nemitus”, se bem lembrava. Foi retirado de suas recordações líricas, no entanto, quando o contrastante rugido de um dos orcs revelou que eles os haviam descoberto atrás das pedras. Todos ergueram seus armamentos e moveram-se. Chegara o momento de sangue ser vertido... sob o sol quente.

Lisah, brandindo suas duas espadas como um ágil lince saltando em terreno árido, apoiou um dos pés numa das rochas e lançou-se pelo ar contra um dos oponentes, pousando bem diante do mesmo e movendo as lâminas em sua direção antes de tornar a tocar o solo. O sublime aço élfico rompeu a enferrujada armadura da criatura como pergaminho, penetrando em sua carne e cortando-lhe os dois ombros quase de fora a fora. Com os braços inutilizados e sangrando em profusão, o monstrinho soltou um gemido agudo e tombou para trás.

Kirinak teve de encarar um orc mais corpulento que movia sua pesada maça-estrela para lá e para cá, tentando esmagar os ossos da humana. Ela se desviou da primeira vez abaixando, da segunda girando para o lado e da terceira dando uma cambalhota – todos os movimentos advindo mais do desespero do que de reais reflexos. A clériga, em resposta, atacou com a frigideira retirada do santuário de Wella, tentando acertar o adversário sem sucesso. Este recuperou o fôlego e avançou numa nova seqüência de movimentos desajeitados – mas letais – com a maça, devido a proteger-se do sol com o escudo... até Kirinak esquivar-se jogando-se para a direita e, surgindo inesperadamente atrás do monstro, dando com a panela em sua cabeça da forma mais forte que conseguiu...

Sem causar efeito algum no orc, a não ser deixá-lo mais nervoso.

O salteador voltou-se para a garota disposto a afundar-lhe a cabeça no tronco com golpes altos da arma, a azarada combatente recuando de costas, tremendo, na tentativa de ao menos se afastar do ameaçador inimigo... apenas para cair nos braços de outro, que a prendeu com força e encostou-lhe a lâmina da espada ao pescoço.

- Ai, não! – ela berrou, debatendo-se tentando se soltar.

Logo conseguiu, atingindo um chute numa das canelas desprotegidas do orc. Ele a soltou, grunhindo de dor, recebendo uma flechada no nariz suíno logo depois. Hachiko, provavelmente, mas a clériga não tinha tempo para conferir. As narinas do moribundo tornaram-se mais estranhas ainda com a ferida – Kirinak conseguindo pensar nisso em meio ao frenesi da batalha – enquanto o inimigo caía duro. O outro, com a maça, vinha novamente em sua direção, e ela teve de rolar mais uma vez para escapar de um golpe que teria afundado o chão, caso não fosse tão duro. Mas era, e o impacto serviu apenas para afetar o próprio agressor, que recuou atrapalhado, a solidez do solo reverberando pelo cabo da arma e afetando seu corpo. Descuido demorado o bastante para que Caleb se aproximasse e cravasse a lâmina da foice numa das axilas do monstro. Suas mãos ficaram empesteadas de líquido negro enquanto o monstro agonizava de pé, o druida tendo dificuldade em remover a lâmina do mesmo. Só conseguiu quando empurrou o cadáver para trás com um chute em seu peito, a arma agora pingando com a substância escura e viscosa que lembrava até o dito óleo usado em Barbety para acender lamparinas.

Lisah avançava para cima de outro orc, este mais ágil, logrando desviar-se de seus golpes com as espadas mais de uma vez. Killyk, por sua vez, via-se mais uma vez perdido em meio à luta. Pouco aprendera no combate com os gnolls na noite anterior, e temia que novos ferimentos acabassem por tirar-lhe a vida. Dessa forma, afastava-se dos bandidos o máximo que conseguia, ainda que dois deles insistissem em persegui-lo – talvez desejosos de incluírem um elfo em sua lista de presas abatidas. Por um momento veio-lhe o pensamento de disparar correndo para dentro da caverna enquanto os inimigos se encontravam distraídos ali fora, porém poderiam persegui-lo ou, pior: acabaria dando de cara com mais orcs do lado de dentro, e então estaria cercado.

Acabou somando coragem – mais pela falta de opções do que por orgulho próprio. Fazendo uma verdadeira dança com os salteadores, mantendo deles distância segura com passos rápidos e estratégicos, teve tempo de retirar um pequeno saco de suas vestes, preso por um simples lacre de modo similar a uma bolsa de moedas. Encontrara aquilo no depósito do bobo da corte, e agora via que realmente seria útil. Não que houvesse usado magia arcana muitas vezes antes, mas... ele estava aprendendo.

Abriu o recipiente, os dois orcs fitando-o com olhos ferozes, Eleniak sabendo que cedo ou tarde um deles, ou ambos, atacariam. Teria de ser rápido. Abriu a palma de uma mão e, com a outra, despejou nela o conteúdo do saco. Um monte de areia. Seria melhor fazer aquilo ao som de sua harpa, mas, estando impossibilitado, teria de contar com a sorte. Limpou a garganta, encarou as criaturas... e pôs-se a cantar, com a voz mais terna e melodiosa que conseguiu em meio à tensão:

Dorme monstrinho

Dorme monstrão

Pra aplacar seu soninho

É fofo esse chão!

E soprou a areia na direção dos dois salteadores, mal terminou o último verso.

Os grãos penetraram nos orifícios das faces dos orcs, um deles quase espirrando. No início se entreolharam sem compreender, um deles até esboçando um riso debochado... quando estremeceram. Seus corpos pesaram, assim como as pálpebras... os escudos baixaram, as armas caíram... Eles emitiram quase ao mesmo tempo bocejos profundos, e desabaram adormecidos, suas armaduras resvalando e os corpos preguiçosos deitando um por cima do outro.

Killyk sorriu. Estava mesmo aprendendo.

Nisso, o orc que se defendia de Lisah seguia em seu balé combativo, cada movimento encontrando o correspondente da elfa com uma quase perfeição. Ele era mesmo bom, bom até demais para um orc... no entanto logo acabou errando. Teve de erguer o escudo muito alto para bloquear um golpe, e acabou desprotegendo os olhos habituados à escuridão. A luz solar cegou-o momentaneamente, numa decisiva falha: Lisah aproveitou o atordoamento do oponente para cravar as espadas em seu tórax. Tombou de joelhos, porém a elfa fez questão de rapidamente retirar as lâminas: ele lhe oferecera uma boa luta. Não precisava sofrer muito.

Restava um. Os lobos, até então contidos por seus donos e apenas rosnando para os inimigos, foram liberados para agir. O último orc, munido de dois machados, tentou enterrar um em cada fera conforme se aproximaram... mas não foi páreo para sua bestialidade. Num salto, Anuk arrancou quase a seção frontal inteira da armadura que o monstro usava, tanto pela força do ataque quanto pela mesma não estar tão bem presa ao corpo esguio do salteador. Constatando não ser capaz de lidar com aquela ameaça, pôs-se a correr de volta ao esconderijo, numa possível tentativa de chamar reforços. Porém, quando estava prestes a adentrar a fenda e Hachiko já tinha uma flecha pronta em seu arco, Rosengard simplesmente ergueu uma mão... e uma pedra pouco maior que um punho se desprendeu do teto da caverna logo acima do fugitivo, atingindo sua testa em perfeita sincronia. Tombou desmaiado, talvez morto, os lobos avançando sobre o corpo inerte... porém sendo detidos por Lisah e o druida. Não havia necessidade de mais carnificina. Além do que, morder orcs não devia ser lá muito saudável...

Kirinak e Killyk viam-se mais uma vez embasbacados diante do poder de Caleb – aparentemente imenso, mas demonstrado com raridade.

De todo modo, estavam cobertos de fedorento sangue orc, aturdidos e ofegantes... Mas vivos, sem ferimentos além de umas poucas escoriações... e com um covil a ser explorado, logo à frente.

Sem demora procederam a essa tarefa, depois de limparem rapidamente suas armas – um bom banho para seus corpos tendo ainda de aguardar.

O caminho caverna adentro era escuro e apertado. Lisah, Hachiko e Killyk tinham a vantagem de enxergar nas sombras, mas para os outros o trajeto mostrava-se por demais misterioso, tendo de tomar cuidado para não pisarem em falso. Num dado ponto, o estreito corredor rochoso passou a descer – ora em degraus toscos, ora em rampas íngremes – levando às profundezas do monte. Tal fato prejudicou ainda mais aqueles que não conseguiam ver, levando-os a se apoiarem uns nos outros. A estrutura parecia se aprofundar em espiral, os orcs aparentemente querendo mesmo se ocultar do mundo; mas a descida logo terminou. E eles chegaram ao esconderijo propriamente dito.

Tinham avançado até ali com o mínimo possível de ruído, porém o cuidado agora se mostrava desnecessário: não havia mais bandidos naquele local. Restavam apenas seus espólios, compondo intrigante e ao mesmo tempo repulsivo ambiente. Caleb acendeu sua pederneira, permitindo que todos o examinassem: a caverna se ampliava alguns metros horizontalmente, revelando uma sala definida pelas irregulares paredes rochosas, embora o teto se mantivesse quase na mesma altura. O lugar fedia, num misto de suor, bolor e carne podre. Os mais sensíveis tamparam o nariz, como Kirinak, conforme seguiam olhando. Num canto, havia uma pilha de sacos rasgados contendo grãos, frutas e legumes, alguns já bastante deteriorados – provável resultado dos roubos feitos na vila. Em outro, podiam ser enxergados trapos, montes irregulares de feno, pedaços enferrujados de armadura... onde os orcs dormiam e mantinham suas vestimentas, talvez, num pálido esboço de organização? A parte mais repugnante do covil, todavia, era com certeza aquela com os sacos de carne cobertos de moscas sobre uma pedra, o insalubre alimento dos salteadores – que os visitantes fizeram questão de ignorar. Por um instante, a luz gerada pelo druida iluminou uma pequena quantidade de moedas douradas dispostas junto a uma solitária estalagmite. Desinteressado, removeu a claridade dali para tornar nítida uma parede nua próxima, voltando então a iluminar o local... para constatar que as peças haviam desaparecido. Lançou um olhar desconfiado para Hachiko e em seguida na direção de Lisah, preparando-se para murmurar algo...

Quando ouviram um débil gemido.

As cabeças se voltaram para a origem do som, assim como a chama de Rosengard. Kiche ganiu, apressando-se no mesmo rumo. Ao fundo da caverna, num ponto ainda não vistoriado, deram com uma grande jaula de metal carcomido suspensa a poucos metros acima do chão, presa ao teto – naquele ponto mais alto – por uma grossa corrente. Por entre as frestas das grades, os aventureiros puderam enxergar uma série de rostinhos sujos, alguns machucados, de cabelos curtos e compridos, expressões tranqüilas ou assustadas... mas todos, sem exceção, encarando-os com olhos brilhantes que remetiam a uma invencível esperança – por mais fragilizada que já houvesse sido naqueles vários dias de duro cativeiro.

Quando deram por si, Lisah, com sua inexplicável habilidade em abrir fechaduras, já havia arrombado o cadeado da prisão. As crianças, fracas, debilitadas e com as vestes em frangalhos, vieram para fora não sem certo receio, temendo que aqueles estranhos lhe fizessem tanto mal, ou até mais, que os orcs. Porém aos poucos constataram que a situação era outra e, rindo, puseram-se a acompanhá-los. O fato de os lobos lamberem seus pequenos pés ou oferecerem-se para um afago encantou-os ainda mais, contribuindo para acalmar os ânimos. Além disso, todos eles jamais haviam visto elfos, e os lindos seres de orelhas pontudas constituíam mágica novidade. Até mesmo a carrancuda Kirinak parecia gostar de ter os meninos e meninas ao redor – cerca de doze, no total.

Porém, a maior consternação referente à situação daqueles jovenzinhos era certamente a de Hachiko. Com os punhos cerrados, fitava os infantes desnutridos e feridos com uma ira difícil de conter, imaginando se tamanha barbárie podia ter sido mesmo empreendida até mesmo por orcs, criaturas consideradas tão baixas em sua conduta. Nunca lidara com algum antes daquela incursão, mas eles já figuravam em sua lista de piores inimigos. Para alguém capaz de maltratar seres indefesos daquela maneira, não poderia haver qualquer sombra de piedade.

Uma das garotas até então encarceradas estava muito doente e não poderia andar de volta até Garuny. Coube a Caleb tomá-la em seu colo e transportá-la, adormecida. Os heróis, seguidos pelas crianças, preparavam-se para deixar o refúgio antes que a noite caísse, quando algo inesperado ocorreu... lembrando-os de que haviam ido procurar mais alguém ali.

Um vulto ameaçador saltou das trevas, esguio e desajeitado como um orc que aguardara quieto o melhor momento para uma emboscada. Lançou-se sobre o druida com uma arma de mão – uma espécie de porrete, na verdade – dando-o em sua cabeça com força. O golpe, apesar de dolorido, esteve longe de desacordar Caleb, que conseguiu se afastar do inimigo e manter segura a menina em seus braços sem maiores dificuldades. Anuk, pego de surpresa, colocou-se rosnando em posição de ataque, o resto do grupo também parando e os pequenos gritando de susto, com alguns se escondendo atrás dos novos amigos. Olhos ansiosos e armas preparadas confrontaram a escuridão... da qual surgiu um velho raquítico de cabelos e barba comprida bem brancos, curvado, com um cajado de madeira pouco maior que o de Rosengard numa mão... e nenhuma roupa a lhe cobrir as partes íntimas.

Kirinak cobriu o rosto, horrorizada. As crianças riram, fazendo os aventureiros sentirem ainda maior confusão. Sem demora, no entanto, recordaram-se do que haviam ouvido na povoação... e entenderam quem era aquele indivíduo.

- Demoraram muito! – resmungou o idoso numa voz estridente, agitando o bordão no ar como se fizesse menção de batê-lo no crânio de mais alguém. – Logo eu seria um esqueleto e esses jovenzinhos estariam tão gastos como eu!

O sujeito, como constataram, atendia por Rimiryn.

Desceram pela região mais alta de volta ao povoado com o céu escurecendo e os primeiros ventos noturnos os atingindo. A comitiva, composta pelos viajantes, dois lobos, as crianças e o velho Rimiryn, era algo no mínimo curioso de se ver. Devido ao cansaço de alguns dos pequenos, mais deles eram levados no colo por seus salvadores, enquanto os que não o faziam carregavam os poucos sacos de grãos furtados que não haviam se deteriorado nas mãos dos orcs. Roupas foram encontradas para vestir o malfadado herói da vila, além disso: uma túnica encardida e um par de sandálias encontrados no covil que mal lhe serviam, mas Rimiryn não ousara reclamar. Falava, por certo, e não pouco, mas sobre sua grande empreitada de resgate às crianças. E os demais já começavam a se aborrecer...

- Aqueles orcs sem brio! Se não fosse por seu maior número, o que lhes conferiu sua única vantagem sobre mim, teriam sentido o gosto de meu aço!

- Aço? – indagou Hachiko num sorrisinho, com um menino nos braços, olhando para a arma de madeira do idoso.

- Sim, aço, elfa de cabelo desbotado! Os teria cortado em pedaços, mas o fato de serem sete contra um deu-lhes superioridade, covardes como são! Ainda que, considerando se tratar de orcs, seres asquerosos e péssimos manejando uma espada, a proporção seria na verdade de três para um... ainda que mesmo assim estivessem em melhor situação. Desse modo, desarmaram-me e fui mantido como prisioneiro, junto com os mancebos que me apressei a salvar, até a chegada de vocês.

A insistência de Rimiryn em chamar seu cajado torto de aço era a eles claro indício de senilidade, portanto procuravam ignorar boa parte do que o velho dizia. Caleb, no entanto, atentava para suas palavras e via nelas algo sincero demais para um lunático. Levava em consideração o que o povo de Garuny antes alegara, a respeito de ele provavelmente ter sido um guerreiro no passado... E o modo como falava era muito formal, remetendo a uma pessoa de boa educação e trato em lidar com pessoas. Um antigo cavaleiro, talvez?

- Orcs mal-cheirosos, cães do Helmus! – e o suposto louco seguia proferindo xingamentos contra os salteadores vencidos. – Agora conviverão apenas com os vermes das entranhas da terra, miseráveis sem lugar no mundo!

Na verdade, três dos orcs derrotados – a dupla adormecida por Killyk e a vítima da pedra de Caleb – não haviam sido mortos durante o combate, sendo executados somente na saída do grupo da caverna devido ao temor de que houvesse represálias contra a população do vilarejo. Após os monstros terem suas gargantas cortadas – tarefa da qual se encarregou Hachiko, de longe a mais revoltada do grupo em relação às ações dos inimigos – Rimiryn pusera-se a dar uma surra em seus cadáveres com o bordão, e teria ficado lá a noite inteira se não fosse puxado por Lisah e Kirinak. Agora, pelo visto, descontava os golpes que não efetuara contra os bandidos na forma de palavras. E seu repertório de insultos parecia não ter fim, ainda que fossem os mais polidos possíveis...

O grupo logo viu, com inegável alívio, que as luzes da vila e os agora sutis traços de fumaça das chaminés aproximavam-se a mais alguns minutos de caminhada. As crianças saltavam felizes, apesar da fraqueza, diante do iminente reencontro com seus pais. A árdua jornada daquele dia chegava ao fim.

O abraço dos pequenos com seus pais, por toda Garuny, foi uma cena que nunca mais deixaria a memória dos responsáveis pelo resgate. Lágrimas de felicidade rolaram e gritos de alegria permearam a noite. Os moradores tornaram a sair de seus lares, mas agora felizes e confiantes, sem medo. As modestas casas eram as mesmas... o clima, porém, tornava-se outro. Era a vida que, com aquelas crianças, retornava ao lugarejo.

Logo a atenção dos pais se voltou para os heróis. O reconforto pelo retorno das crianças era enorme, por certo, mas eles não podiam se esquecer dos responsáveis por elas estarem novamente ali. Foi assim que até mesmo alguns dos aventureiros viram-se abraçados pelos camponeses – não sem certa relutância, como da parte de Kirinak – numa clara demonstração de gratidão da vila. E os viajantes se surpreenderam quando um dos lavradores, eufórico por ver de novo seus filhos gêmeos, anunciou que aquela seria uma noite de festa. Apesar de o cansaço não combinar muito com música ou dança, aquilo significava comida e pouso para a madrugada. Os heróis, desse modo, não reclamaram.

Em poucas horas, Garuny retornou à sua alegria habitual, abalada pelas repetidas incursões dos orcs. Agora a ameaça fora eliminada em definitivo, e com ela todo o peso do temor que causava. Apesar da carestia até então predominante no povoado, foi conseguido um boi para abate. Ainda que um tanto magro, era capaz de render boa quantidade de carne – seus pedaços logo rodando em espetos sobre uma fogueira acendida com ajuda das crianças no centro da vila. As melhores porções do animal foram destinadas aos salvadores do dia, enquanto alguns dos moradores improvisavam melodias da região em instrumentos rústicos que possuíam. Killyk juntou-se a eles, tocando sua harpa e impressionando a todos. Até mesmo conhecia algumas das músicas típicas dali, fruto do extenso repertório que lhe fora transmitido pelo pai. Desejava que ele estivesse ali, desfrutando daquela descontração que tanto apreciara em vida. Uma felicidade, no caso, em parte gerada graças ao filho. Ele ficaria orgulhoso.

Kirinak, mais tranqüila, sentou-se também junto ao fogo e até mesmo aceitou a fatia que lhe fora oferecida por uma das aldeãs. Após um dia tão exaustivo e perigoso, gostaria de agradecer ao Senhor da Espada por estar viva... no entanto teria de fazê-lo somente depois, na hora de dormir, bem longe das vistas dos companheiros. Era assim, com o máximo de discrição, que vinha rezando para seu deus desde que fugira de Tyrnan. Não lograra manter seu segredo totalmente oculto, já que Caleb o conhecia e só mesmo Swordanimus sabia quando ele poderia resolver contá-lo aos outros, mas isso estava longe de intimidar a garota. Manteria sua fé na única divindade que a entendia, no filho de Northar injustiçado por todos os demais deuses e até mesmo os mortais.

Perdida em seus aflitos pensamentos, a fugitiva não notou a aproximação do velho encontrado na caverna dos orcs, vestindo ainda a túnica surrada. Como era mesmo o nome dele? “Rimiryn”? De qualquer modo, passou diante da jovem com um olhar longínquo, sua pele enrugada clareada pelo brilho da fogueira... quando voltou de súbito a face emburrada para ela e exclamou, com inconfundível desdém:

- Bah! Uma clériga que não cura!

Tomada por repentina raiva diante da crítica, Kirinak pensou em retrucar... porém o idoso se afastou andando torto, apoiado em seu cajado, e seu ar deu a entender que ignoraria completamente qualquer coisa que a moça lhe dissesse. Esta acabou por dar de ombros e, apanhando um graveto do chão, esticou um dos braços para brincar com as chamas.

Perto dali, um rechonchudo lavrador atirava gordos pedaços de carne a Anuk e Kiche, os lobos recebendo assim também sua recompensa pelo esforço realizado no salvamento das crianças. Lisah, sentada numa pedra a uma curta distância das feras, encarava o fogo com olhos distantes, um leve sorriso gravado em seu rosto límpido e com a tatuagem de lua na fronte mais nítida que o habitual, banhada pela luz amarela. O druida aproximou-se dela, pousando uma mão em seu ombro. Ela por sua vez ergueu o semblante, encarando-o.

- Pensativa? – ele queria confirmar o óbvio.

- Apenas lembranças distantes, que se unem às novas vividas hoje, naquele covil – a elfa de cabelos negros respondeu poeticamente. – E você?

- Intrigado... – murmurou Rosengard, coçando a barba enquanto fitava Rimiryn passar perto dali, sem dar-lhes a menor atenção. – Bastante intrigado com aquele velho...

E, após assim falar, pôs-se a seguir o idoso calmamente, como se não se importasse nem um pouco em ser descoberto. Desapareceu atrás dele na noite, deixando Lisah mais uma vez só.

A fogueira crepitou, a festa prosseguiu. Hachiko passou a dançar com um grupo de crianças, cantando e saltando feliz, numa incomum demonstração de entusiasmo – já que a arqueira, normalmente, era bastante fria. Parecia querer dar alegria suficiente àqueles pequenos, para compensar o sofrimento vivido em mãos orcs. Dentre todos, a elfa de Kartan fora a que mais se perturbara com o cativeiro pelo qual haviam passado. Conseguia sucesso em sua tarefa, ao menos.

A comemoração estendeu-se até as primeiras horas da madrugada, quando os camponeses, motivados principalmente pela exaustão de seus filhos, começaram a se recolher. O fogo foi apagado, e pouco a pouco as luzes dos casebres também se extinguiram, entre bocejos e murmúrios de boa noite. Felizmente não houve problemas com ébrios, já que a carne fora regada apenas a água, sem vinhos ou licores – Killyk Eleniak, em particular, agradecendo por isso. Aos aventureiros, ofereceu-se pouso em diversas casas, principalmente naquelas em que residiam crianças que haviam salvo, os pais das mesmas desejando assim demonstrar agradecimento. Dividir-se-iam então para dormir... embora, no momento em que Lisah preparava-se para seguir com Kiche até uma das moradas, tenha sido abordada pelo bardo:

- Com licença... – ele falou, um tanto acanhado.

- Oh, Killyk – a elfa sorriu, não ocultando, todavia, seu cansaço. – Quer algo comigo?

- Na verdade sim... – respondeu, cabisbaixo, num claro estado de vergonha. – Mas não gostaria que os outros ouvissem. Poderia me seguir até o quarto que me foi oferecido, ao menos por alguns instantes?

Entre outras raças, um pedido como aquele seria enxergado como uma proposta indecente, já que provinha de um homem. No entanto, entre os elfos de Astar, sempre regidos por relações de extremo respeito, o convite não possuía nada de errado. Abuso ou violação eram palavras que os estrangeiros haviam trazido a seu continente, e ainda assim pouquíssimos de seu povo deixaram-se contaminar por elas. A jovem acompanhou-o.

A morada era, assim como todas as demais ali, singela. Seus proprietários ainda estavam do lado de fora, guardando instrumentos utilizados durante a celebração. Portanto, Lisah e Killyk não seriam ouvidos. Ele conduziu-a até um dos pequenos cômodos da casa, onde havia um monte de feno espalhado pelo chão – improvisada cama. Pediu para que a elfa se sentasse sobre o precário estofamento, enquanto acomodava-se também sentado diante dela, com as pernas entrelaçadas. Estava um pouco trêmulo, e Lisah notou isso. Ele apenas fitou-a calado por algum tempo, mexendo em suas próprias vestes de forma ansiosa, antes de finalmente dizer:

- Eu gostaria que ouvisse algo que eu compus.

A moça piscou e sorriu perspicaz:

- Ah, seu novo poema para a coroação do rei? Você estava tão triste por ter perdido o outro! Fico muito feliz por ter conseguido escrever um novo. E sinto-me lisonjeada por querer me apresentá-lo em primeiro lugar.

O bardo engoliu seco e replicou, erguendo a cabeça a muito custo:

- B-bem... N-não é bem um poema para o rei. É outra composição...

Droga! Por que ele tinha de gaguejar daquela maneira? Aquela, afinal, era sua missão de vida. Não havia motivo para vergonha. Talvez fosse tudo que julgava saber sobre aquela elfa, o que o deixava constrangido? De todo modo, seu pai não ficaria orgulhoso caso se acovardasse. Procurou vencer o receio... e prosseguiu.

Com as mãos muito trêmulas, apanhou de um bolso um pergaminho enrolado. Abriu-o diante de uma confusa Lisah e, centrando-se, manteve-o estendido diante de si até que o nervosismo amainasse, ou não conseguiria ler o que criara. Logo conseguiu, uma verdadeira vitória para si, e iniciou a leitura que, mesmo sem estar acompanhada de melodia, era tão bem-feita que possuía musicalidade própria, residente nas rimas e organização dos versos:

Muito famosa ela era

Lamtahl, a ladra mais bela

Seus feitos passavam pela boca de cada bardo

Muitos até ficavam em seu aguardo

Seu nome era conhecido por todo canto

Mas poucos realmente chegaram a ver seu encanto

Tão forte e esperta era, que aceitava qualquer missão

Até invadiu um forte de ogros, e saiu sem um arranhão

De fato não foi provado, mas digo que Lamtahl era boa

A coragem ela inspirava, e isso não lhe digo à toa

Fico grato por ter escutado, estou feliz como no paraíso

Pois finalmente de todo seu pesar, consegui arrancar um sorriso!

De fato, um grande sorriso agora brotara na face de Lisah. Lisah Lamtahl.

Não estava só feliz pela homenagem. Killyk sabia guardar segredo. Mesmo sem poder cantar algo tão belo a uma grande audiência, fizera questão de redigir aquele poema para que apenas ela ouvisse sua declamação. No início achara aquele jovem muito incômodo e inconveniente, mas agora sua imagem mudava sobre ele. E não pouco.

Após ter contido sua insegurança para apresentar a obra de arte, o bardo agora tornava a tremer – ainda que menos. Demonstrava, realmente, saber o que se contava sobre a pessoa que atendia pelo nome “Lamtahl”. Seus olhos brilhavam diante da perspectiva da elfa lhe revelar algo mais sobre si, diante da possível confirmação de estar mesmo na presença de uma lenda viva. Ela por fim falou, o coração de Eleniak acelerando a cada sílaba:

- É um lindo poema. Um dos melhores que já ouvi, embora ache que não seja merecedora de...

- Apenas me confirme! – Killyk cortou-a, incapaz de controlar-se por mais tempo. – Você é Lamtahl? A mesma das canções, das lendas?

Era difícil a fama de um elfo espalhar-se para fora de Astar. Mihnire e Briss, devido às suas histórias trágicas, constituíam raras exceções. Mas os feitos de Lamtahl também haviam logrado a façanha de se fazerem conhecidos para lá do oceano. As primeiras melodias sobre ela datavam de mais ou menos cento e cinqüenta anos antes, e o pai do bardo inclusive lhe ensinara muitas delas. Dizia-se que a elfa era uma das maiores ladras que já existira, a serviço da Sociedade dos Colibris. Alguns diziam que ela na verdade trabalhava para a Ordem da Lebre, porém a versão envolvendo os Colibris era mais aceita – ainda que, por se tratar de uma ladra, dissimulação de informações fosse sua especialidade. Não se sabia tampouco se “Lamtahl” era seu verdadeiro nome, mas assim era chamada no submundo. A ela eram atribuídos roubos dos mais mirabolantes praticados em todos os continentes de Boreatia, como o desaparecimento das jóias da coroa de Etressia ou o furto do colar de pérolas da odalisca favorita de um poderoso sultão de Barbety. Apesar de criminosa, Lamtahl também era reverenciada por sua honra. Só matava em caso de extrema necessidade e não poucas vezes distribuíra o que roubara entre pessoas pobres. Lisah talvez fosse um pouco nova demais para ser a mesma Lamtahl das odes, pois, levando em consideração o início da circulação dos relatos, a ladra deveria ter entre duzentos e cinqüenta e trezentos anos de idade – e a elfa sentada em frente a si aparentava bem menos. Porém, talvez fosse um truque para despistar seus inimigos e as autoridades, quem sabe até um disfarce criado por intermédio de magia. E, pela destreza e carisma demonstrados até então por Lisah, apesar de seu ar triste, era de se especular que ela fosse sim a mesma Lamtahl dos mitos, e não apenas uma ladina traiçoeira que adotara um nome famoso para bem próprio. De qualquer maneira, Killyk tinha de saber. Mesmo se ela mentisse, só poderia dormir aquela noite com uma resposta, fosse qual fosse.

Foi quando, apesar de manter o sorriso, uma lágrima escorreu pelo semblante da elfa. Comoção tardia devido ao poema do bardo, ou fruto de algum outro sentimento incógnito a ele – como tudo mais parecia ser na personalidade daquela mulher. E, num tom de extrema gentileza, respondeu:

- Posso ser a verdadeira Lamtahl ou não. Isso você saberá depois, não chegou ainda o momento. Já teve a oportunidade de descobrir meu sobrenome, e parece digno de minha confiança. Mas tudo ao seu tempo... Tenha paciência. Saiba que, desde nosso primeiro encontro naquele navio, tem melhorado em minha impressão. Por ora, agradeço-lhe pelo belo poema. Do fundo do meu coração.

Sem deixar de sorrir, levantou-se, passou uma das mãos de modo carinhoso pelos cabelos arrepiados de Eleniak, e saiu, deixando o recinto em completo silêncio. O bardo fitou então, através de uma janela, a lua minguante prateada no céu noturno... e, associando-a com a tatuagem de Lisah, refletiu sobre como tanto o astro quanto a elfa sorriam diante de suas incontáveis dúvidas, criando mais mistérios a cada nova pergunta.

Caleb continuou seguindo Rimiryn – que descrevia uma curiosa trajetória errante em torno do vilarejo – aguardando que o velho se recolhesse em sua cabana, a qual fora mostrada previamente ao druida por um dos camponeses. Ignorou o fim das festividades e, vendo que o idoso ainda não parara de andar sem rumo, persistiu em acompanhá-lo; ao que parecia, sem ter sido percebido até o momento. O andar trôpego do ancião, apoiado no cajado, era acompanhado de murmúrios pronunciados ao nada, o que serviria igualmente de indício para atestar o estado de loucura do velho. No entanto, Rosengard não acreditava muito nessa hipótese. Talvez a personalidade senil fosse apenas um disfarce montado com esmero pelo idoso para que não desconfiassem de sua real esperteza. Existia algo de intrigante em Rimiryn, e o druida não passaria a noite sem desvendar tal enigma.

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Após quase uma hora de caminhada aleatória, finalmente, o ex-guerreiro dirigiu-se até sua morada. Caleb, agora com Anuk em sua companhia, ocultou-se nas sombras das casas vizinhas, não tirando os olhos do velho um segundo sequer. Ele destrancou a porta selada por cadeado com uma pequena chave e, liberando um alto rangido da estrutura de madeira ao empurrá-la, entrou resmungando e batendo-a em seguida com força. O druida manteve-se na penumbra ainda por alguns instantes, ouvindo o falatório baixo dos últimos aldeões que se recolhiam, e então se aproximou da choupana, pé ante pé, o lobo aguardando-o onde estava, imóvel, a uma ordem sua.

Aproximou-se do parapeito de uma das janelas. Através do vidro fosco, era possível visualizar parcialmente o interior da casa. Havia apenas um problema: nenhuma luz fora acesa, apesar de Rimiryn já se encontrar dentro dela. Ou conseguia guiar-se muito bem no escuro, ou sabia que estava sendo seguido, pregando agora uma peça no druida intrometido. Este, entretanto, não se fez vencer: erguendo a cabeça, observou o irregular telhado de palha da cabana, possuindo algumas falhas – ou melhor, buracos – que ligavam o interior ao sereno da noite. Coçou o queixo por um breve momento e então recuou alguns passos. Gesticulando com as mãos, pronunciou num murmúrio as palavras necessárias:

- Ceadaigh dom an léim, Wella, níos airde ná an t-éan ar an spéir!

Um ligeiro brilho tomou suas pernas... e, ao impeli-las num salto, subiu tão alto que pousou com facilidade sobre uma das vigas que sustentavam a cobertura da choupana, tendo de tomar cuidado para não se desequilibrar e cair – mas logrando com rapidez manter-se de pé. Lá embaixo, Anuk fitava o companheiro humano com perceptível ansiedade. Caleb examinou o telhado: havia uma brecha entre a palha próxima de seus pés, pela qual poderia descer sem causar muitos estragos à superfície circundante. Tentou fazê-lo da maneira mais segura possível, sentando-se sobre a viga e inserindo as pernas pela abertura, para depois lançar o resto de seu corpo... mas acabou escorregando e, de forma bem desajeitada, caiu através da palha quase deitado, a mesma servindo para amortecer sua queda – mas uma boa seção do telhado de Rimiryn não mais existia.

Uma luz se acendeu subitamente, os confusos olhos do druida observando de relance uma vela. E, em meio ao fraco brilho que se propagou pelo interior da casa, Rosengard viu-se sentado no chão com a lâmina de uma espada apontada a poucos centímetros de sua garganta. O fio de corte mortífero terminava num admirável cabo dourado que possuía o entalhe de uma esmeralda em forma de pinheiro; e o cabo, por sua vez, terminava no braço esquerdo raquítico de Rimiryn, ainda vestindo seus trapos.

- Curioso, hem? – resmungou o idoso, com semblante de poucos amigos.

- Desculpe-me, nobre homem – apesar da situação adversa, Caleb mantinha um tom tranqüilo e educado. – Mas sua figura despertou-me sim incrível curiosidade. Não pude evitar segui-lo até sua casa.

- Bem, então poderá consertar o telhado para mim pela manhã...

- Não se preocupe quanto a isso.

Estalando os dedos e erguendo os olhos para cima, o druida fez com que finos galhos, grandes em número, crescessem a partir das vigas no telhado. Eles aos poucos se entrelaçaram, das uniões surgindo ramificações menores que por sua vez também se enroscavam... e, em poucos instantes, não havia mais buraco no teto de Rimiryn.

- És realmente um druida – constatou este.

- Poderia deixar que eu me levantasse?

- Como quiser.

Enquanto se erguia, Rosengard imaginou que o velho guardaria a espada que pensara até então jamais possuir numa bainha ou compartimento do tipo; porém esta, para seu espanto, começou a... se transformar. Alongou-se nas extremidades ao mesmo tempo em que se afunilava, torcia-se, a textura escurecendo e perdendo o brilho... até que converteu-se por completo no bordão de madeira visto anteriormente, que todos julgaram tão inútil contra os orcs.

- Ótimo truque – Caleb viu-se quase na obrigação de elogiá-lo.

- Não é magia minha. Trata-se de uma arma encantada que recebi como presente há bastante tempo.

- Você foi um Cavaleiro da Luz? – o druida deduziu, baseando-se também no singelo altar a Northar presente numa das paredes da morada, iluminado parcialmente pela vela.

- Exato. Mas meus dias de combate já há muito ficaram para trás. Sobrevivi ao expurgo da Ilha de Rentis e, sem me juntar a meus antigos companheiros, tornei-me protetor desta vila.

Ele demonstrava incrível lucidez em sua fala. De fato, a tal loucura era mesmo só um pretexto para que ninguém suspeitasse de seu passado. Os Cavaleiros da Luz ainda possuíam impiedosos inimigos – Caleb bem sabia.

- Você poderia ter vencido aqueles orcs sozinhos, mas não o fez... – afirmou Rosengard. – Por quê?

- Eu os estava esperando. E também foi uma forma de testá-los.

- Como sabia da nossa vinda?

- Um velho amigo me avisou...

Rabesdin? Seria o velho Rabesdin? Poderia mesmo ele saber tanto sobre quais seriam os passos do druida em sua tentativa de evitar a catástrofe com que sonhara? Afinal de contas, o que ele realmente sabia e não lhe contara?

- Se nos aguardava, é porque queria nos comunicar algo – concluiu Caleb.

- Exato, novamente.

- O quê?

Bastante sério, porém mantendo um certo ar de ironia, Rimiryn inquiriu:

- Desconfia a verdadeira razão de aqueles orcs terem seqüestrado as crianças desta vila?

- Bem, se eles não queriam comê-las, então desejavam vendê-las como escravas em algum porto... ou submetê-las a trabalhos forçados para o bando. Já ouvi histórias sobre seres de outras raças que cresceram em meio a tribos de orcs, tendo inicialmente sido raptados por elas... Estou certo?

- Não está, meu caro, porém não o culpo. Este rapto em particular possui circunstâncias raras neste continente... e perigosas.

Assim falando, retirou de um bolso uma folha rasgada de pergaminho. Estendeu-a ao druida e, enquanto este a lia tentando decifrar sua difícil caligrafia, Rimiryn expressava verbalmente o que nela havia:

- Encontrei essa nota no covil. Ela dá instruções claras ao bando de orcs, que foi contratado para o serviço: as crianças deveriam ser levadas até a capital, onde seriam entregues a um tal “Macker”, para serem sacrificadas num ritual de magia negra.

CROA!

Mal Caleb teve tempo de assimilar o terrível nome mencionado pelo ex-cavaleiro, um soturno grasnar foi ouvido dentro da casa. Olhando através de uma das janelas fechadas, os dois homens viram um corvo de penas eriçadas empoleirado no parapeito, passando a bicar o vidro como se batesse à porta para entrar. Tomado por intensa fúria, Rimiryn saiu gritando na direção da ave, batendo na janela com tanta força com seu cajado que por pouco não a quebrou. O pássaro, provocador, permaneceu ali ainda por alguns instantes até finalmente erguer vôo, quando o idoso já desistira de espantá-lo por seus esforços.

- Maldição! – bradou, e Rosengard estava certo de que alguns lavradores haviam sido arrancados de seu sono. – Há espiões por toda parte...

- Esse nome, “Macker”... – oscilou o druida, assustado.

- Estava na sua visão, certo? Eu sei. Escute: continue com esses seus companheiros até a capital. É preciso que cheguem lá o quanto antes. O reino, ou talvez até todo o mundo, corre sério perigo.

- Mas quem é esse Macker?

- Eu não sei. Sou sincero. É um assunto pendente dos Cavaleiros da Luz após o Crepúsculo dos Deuses, e eu me desvinculei deles antes disso. Rabesdin só requisitou minha ajuda sem maiores detalhes. Sei o que você sonhou e que se dirigiu para o sul para investigar, tendo encontrado essas outras pessoas no caminho... Mas quanto ao resto, sou tão ignorante, e temeroso, quanto você.

Assunto pendente dos Cavaleiros da Luz? Como assim? Caleb já se sentia um tanto impotente diante dos fatos que se desenrolavam. Agora se achava ainda mais incapaz.

- O quanto disso tudo eu posso revelar aos outros? – o druida quis saber.

- Não revele – Rimiryn foi incisivo. – Não agora. Isso poderia influir desastrosamente nos fatos por vir.

- M-mas... até que ponto eu devo mantê-los como estão, e até que ponto devo alterá-los?

- Deixe tudo como está. Siga apenas até a capital. E não questione o plano dos deuses.

Rosengard abriu a boca para mais uma pergunta, quando o velho simplesmente ordenou:

- Vá dormir! Devem sair bem cedo amanhã. Já se empanturraram por esta noite, não deixe que a indolência os domine em sua jornada. As Terras Altas vêm a seguir. Possuem uma arriscada travessia rumo ao norte.

Caleb, que ali entrara em busca de respostas, sairia bem mais atordoado e com o dobro de indagações a lhe incomodarem, porém obedeceu. Com uma mão nos cabelos, dirigiu-se até a porta e a cruzou. Ouviu, no lado de dentro, Rimiryn trancá-la com o cadeado e ir se deitar entre resmungos desconexos, assumindo novamente a máscara de ancião louco.

Antes de ir repousar numa mata próxima à vila com Anuk, o druida deixou-se atingir pela brisa da madrugada e fitou os montes rochosos à frente na estrada, os quais provavelmente já alcançariam no dia seguinte. Mesmo com tantas incertezas, tinham de continuar. Pelo bem da natureza. Pelo bem de Boreatia.

“Seja de forma clara ou por meio de enigma,

não pode haver conselho mais valioso

que as palavras de um idoso”

- Volskor II, aprox. 3540 ACD.