Heróis de Boreatia: a Perfídia de Macker

Capítulo VIII: As clérigas de Tyrnan


Capítulo VIII

“As clérigas de Tyrnan"

Mulheres. Muitas mulheres.

Era difícil detalhar seus corpos, suas formas ou o que vestiam. Eram apenas silhuetas nebulosas geradas pela memória e, devido ao caráter cada vez mais falho desta com o decorrer do tempo, perdiam nitidez sempre que tornavam a ser visitadas. Havia tamanha profusão delas no recinto que seu pequeno ser, ainda que não mais o fosse em realidade, sentia-se aflito e apertado. Naquele instante em questão, porém, seu apuro não se dava propriamente devido à lotação da casa. A multidão o incomodava – mais do que pela falta de espaço, por dificultar sua busca.

Ele procurava algo ou alguém em meio àquele aglomerado de jovens sem rosto, e não conseguia encontrar. O mais intrigante era que o impulso movendo-o dentro daquela visão sabia bem do que se tratava. Sua mente, porém, não conseguia determinar o que era. E se achava logo ainda mais desesperado, inserido numa preocupante ambigüidade em que se sentia consternado tanto por não reaver o que buscava, quanto por não possuir a mais vaga idéia do que viria a ser.

Para piorar, logo todo o enevoado ambiente passou a tremer, como se atingido por um tremor ou abalo similar proveniente da natureza. Quando, sem saber a quem recorrer, ia abrir a boca para gritar, tudo se tornou luz... o indesejado clarão cegando-o...

Ao abrir os olhos, Beli Eddas sentiu sua vista doer, finalmente compreendendo a expressão lingüística que tanto já ouvira em hospedarias e tavernas continente a fora, sem imaginar como se manifestaria de forma física. Nunca desejou tanto que Northar se irritasse com os mortais e, voltando aos soturnos dias do Crepúsculo dos Deuses, removesse o astro dourado dos céus. O primeiro impulso de sua mente, quase por reflexo, foi tentar erguer os braços para tampar o rosto com as mãos, privando-o assim da repentina claridade. No entanto, assim que fez o primeiro esforço para mover as juntas, percebeu – para seu infortúnio – que doíam como se estivessem atravessadas por punhais. Gemeu, e até mesmo sua garganta latejou por conta do pequeno grunhido. Pelo pouco que podia observar de sua pele, erguendo ligeiramente o pescoço, estava pálido como cera. Suor escorria-lhe pelos poros como se ele fosse uma esponja, e a improvisada cama na qual fora deitado, do mesmo modo que suas roupas, encontrava-se ensopada. Uma maca, carregada por ambas as extremidades. Isso explicava o sacolejar que se refletira até mesmo em seu sonho.

- Bom dia, princesa do norte!

Com a cabeça inclinada sobre si num ângulo de cabeça para baixo em sua visão, Beli Eddas visualizou a última pessoa que desejava encarar no estado em que se encontrava, ainda mais sorrindo para si de maneira zombeteira. Seus olhos não estavam tão bons para identificarem os exatos contornos daquele rosto, mas as longas orelhas pontiagudas não deixavam enganar.

- Elfo maldito... – o jovem mago murmurou num tom de desgosto que, unido à fraqueza causada pela enfermidade, mal pôde ser ouvido.

- Poupe suas palavras amistosas, companheiro – Trent Dante não perdia o senso de humor, ainda que suas feições demonstrariam certa tensão se pudessem ser observadas pelo humano com mais detalhes. – Temos de chegar até Tyrnan antes do anoitecer, ou você vai perder um bocado de peso e introduzir carne crua ao seu cardápio assim que Rimya estiver no meio do céu!

Segundo os cálculos do grupo, eles tinham menos de doze horas até o momento fatal, já que há pouco Northar estivera pairando no centro do firmamento. O crescente calor da primavera e a marcha acelerada os fustigavam, mas ainda assim não diminuíam o passo. Para todos Beli Eddas era pouco mais que um desconhecido – ranzinza e fechado, ainda por cima – porém sentiam-se no dever de salvá-lo daquela praga. Tyrnan não estava tão longe, e além do mais havia o fato de que, quanto mais rápido vencessem aquela estrada, menos estariam expostos aos perigos que ela oferecia. Afinal, não queriam encontrar mais um bando de goblins ou um corvo macabro como aquele que, felizmente, aparentava não mais espreitá-los.

Dentre todos, o mais esforçado era claramente Fëanor. Apesar da pouca experiência fora da hospedaria – ainda mais viajando – e do cansaço que o abalara depois de uma noite mal-dormida em Feritia e um batismo de lâmina na ponte, o rapaz, movido fosse por determinação pessoal ou um grande desejo de bem servir ao próximo, auxiliava o trato do doente como se ele lhe tivesse parentesco. Carregava a maca pela frente há horas sem reclamar de coisa alguma; ao contrário de Dante, que já pedira para a caminhada parar duas ou três vezes com o intuito de descansar as mãos, além de fazer Freya e Kal Sul prometerem assumir o lugar dele e do outro jovem assim que percorressem mais alguma distância.

- Quanto tempo ainda até Tyrnan, se mantermos este ritmo? – o embaixador de Glacis, machado de batalha agora sempre à mão, inquiriu à mercenária.

- Cinco ou seis horas – Freya replicou sem nem precisar pensar, tão bem habituada estava àqueles caminhos. – O sol do poente nos acolherá na cidade.

- Espero mesmo, minha cara.

Kal Sul era sincero, principalmente pelo motivo de não imaginar o que fariam se a meia-noite os encontrasse ainda na estrada...

Assim avançavam. Discreta, à esquerda, uma floresta de pinheiros acenava para os aventureiros de leve, sua folhagem sacudindo ao sabor do vento. Ao longe se desenhavam montanhas, vales, planícies... um universo intrigante e desconhecido aos que nunca haviam pisado Behatar, mas promessa de um caminho exaustivo até a capital àqueles que já o haviam desbravado. Trazendo o pólen das flores que desabrochavam e uma ou outra folha desgarrada de árvores errantes, a brisa vespertina carregava, acima de tudo, uma carga de incertezas tão grandes quanto a que aqueles mortais sentiam – principalmente o semi-acordado mago na maca.

Uma dessas mesmas incertezas logo se materializou diante do quinteto: o caminho atingiu uma bifurcação, com um dos trajetos seguindo adiante na mesma direção enquanto um desvio à direita, rodeado de arbustos e árvores antigas, oferecia uma alternativa incógnita aos mais curiosos, não havendo qualquer placa informando onde dava.

- Devemos continuar em frente – explicou Freya antes que qualquer outro do grupo pudesse manifestar dúvida. – Essa outra estrada leva apenas a um altar dedicado a Northar no meio da floresta, meia hora para ir e meia hora para voltar.

- Northar, você disse? – Fëanor quis confirmar.

- O Senhor dos Deuses – Kal Sul anuiu sorrindo.

Quando deram por si estavam parados, o jovem de Feritia tendo subitamente colocado a ponta da maca que carregava no chão. Trent Dante também foi obrigado, com isso, a pousar o leito sobre a poeira do trajeto. Beli Eddas gemeu de dor, mas eles imaginaram se não seria de protesto. Fëanor, em seguida, fitou cada um dos semblantes confusos de seus companheiros, detendo-se mais nos olhos de Freya, que aparentavam querer destroçá-lo. Ela devia querer fazer isso com todo mundo, pensou ele.

- Esperem aqui – falou por fim. – Irei até o altar orar. Volto o mais breve possível.

- Enlouqueceu? – a mercenária, como ele já suspeitava, reagiu. – O sujeito está morrendo! Se não chegarmos logo a Tyrnan seremos obrigados a nós mesmos matá-lo, e isso tornará todo o seu esforço para ajudá-lo inútil! Já não é do meu feitio ajudar assim um desconhecido, e ainda quer atrapalhar tudo?

- Mulher sem fé! – Fëanor, num gesto pretensamente ameaçador, ergueu uma das mãos e apontou o dedo indicador desta para a guerreira. – Não sabe que o poder das clérigas que procuramos é o mesmo daquele em que confio? Certa vez na hospedaria, viajantes discutiam sobre quem seria pior: os seguidores de Swordanimus ou aqueles que não seguem a divindade alguma. Digo-lhe: os que idolatram o Senhor da Espada conseguem ainda ser melhores, porque ao menos em algo acreditam. A crença no que é meramente mortal só leva a desespero e desesperança!

- Poupe-me do concílio religioso e vá logo rezar então! – Freya resmungou cruzando os braços. – E cuidado para não se perder na mata. Não tenho tanta certeza se Northar enviará dos céus uma bússola para você se situar...

Bufando, Fëanor tomou seu rumo pelo desvio. Os demais apenas o observaram sumir calados, imaginando se futuras desavenças como aquela não acabariam por colocar todo o grupo em cheque.

A caminhada realmente durara, pelos cálculos do aspirante a paladino, mais ou menos meia hora. A floresta parecia hesitar dos dois lados da estreita estrada, ora avançando sobre ela quase a ponto de engoli-la, obrigando Fëanor a abrir caminho entre a vegetação a cortes da espada paterna, ora recuando vários metros, gerando verdadeiras clareiras, para mais à frente vir novamente assediar a trilha.

Chegou, finalmente, a uma abertura mais ampla em meio ao arvoredo, que ainda assim obstruía certos pontos da área e até mesmo bloqueava os raios solares com suas copas. Apesar da imperfeição gerada pelo crescimento desordenado da vegetação, uma área em aparente formato de círculo abrigava em seu centro o dito altar ao deus Northar. Ali, coberta por galhos, musgo e trepadeiras, uma estrutura de pedra milenar portava o símbolo da espada com a lâmina voltada para o céu, brandida por uma mão de traços fortes que emergia do topo de um pinheiro em tamanho quase natural, também esculpido na rocha. O trabalho fora feito com tanto esmero, provavelmente na longínqua época do Império Boreal, que mesmo depois de muito tempo a força da natureza de Wella não conseguira legá-lo completamente ao esquecimento.

Fëanor aproximou-se lentamente, fincou a espada no solo e, nela apoiado, prostrou-se em reverência. De olhos fechados, pediu mais uma vez ao maior dos deuses orientação e luz em sua jornada. Apesar dos percalços, mantivera-se vivo e são até aquele momento – devendo isso, em sua visão, às graças do benevolente senhor divino. Além de meditar a respeito do que vivera naqueles últimos dois dias e o que ainda estaria por vir, pediu paciência para lidar com seus tão diferentes companheiros de viagem. Principalmente Freya, que às vezes se mostrava tão petulante.

Ali permaneceu por mais alguns minutos, ciente de que realmente não deveria se demorar devido à preocupante condição de Beli Eddas. Fazendo um último gesto para o altar em devoção, pôs-se a retornar pelo acidentado trajeto até a estrada principal.

Nela, os outros quatro aventureiros o aguardavam sob a sombra de uma sequóia. Beli Eddas tornara a adormecer, enquanto Kal Sul e Trent Dante conversavam, descontraidamente, sobre livros de poesia satírica. Freya era a única que fazia questão de demonstrar claramente estar entediada, limpando as unhas com sua adaga ao mesmo tempo em que caminhava para lá e para cá numa rota pré-determinada de inquietude.

Uma hora depois de sua partida, Fëanor ressurgiu no desvio, como previsto. Parecia bem mais aliviado do que antes, além de tomado de ainda maior disposição. Dirigiu-se até a maca no solo, ignorando o olhar aborrecido da mercenária, e apanhou-a novamente. O elfo acompanhou-o no gesto, prometendo terminar a conversa com o anão mais tarde. Antes de voltarem a andar, Freya indagou:

- Pronto?

Mantendo uma expressão firme, porém tranqüila, o filho de Göther assentiu.

Prosseguiram.

A marcha continuou acelerada. Algumas centenas de metros adiante, por conta das constantes reclamações de Trent, Kal Sul assumiu seu lugar carregando a parte de trás da maca. Fëanor, no entanto, insistiu para permanecer no posto. Seu senso de altruísmo aparentava ter sido realmente fortalecido pela visita ao santuário de Northar. Ao menos nesse aspecto, Freya via-se obrigada a agradecer ao deus. Inclusive, ela era a única que até então não despendera qualquer esforço para transportar o doente. Seu argumento constituía defender o grupo em caso de ataque. Algo que não convencia, porém, e os demais não podiam negar nutrir por ela crescente antipatia.

A estrada avançava junto com a tarde, rodeada por grama baixa sob um céu de agradável tom anil. Logo avistaram, ao longe, um vulto alto e cinzento, de contornos semelhantes aos humanos. Freya e Trent Dante esclareceram se tratar da grande estátua erguida em homenagem a Wella junto à muralha de Tyrnan, o que indicava não faltar muito para atingirem a cidade. Antes do monumento, porém, era possível visualizar, mais próxima e junto a uma pequena área florestal, uma nítida fortificação de muros altos e argutas torres de vigilância, identificada como o forte Guikdon. Ainda no caminho, mais perto que o forte e a cidade, existia uma espécie de cercado com chão de pedra e edificações baixas. Tiveram de vencer mais alguma distância para identificá-lo como um cemitério.

Era costume em Behatar, desde os tempos do Império Boreal e sua valorizada tradição militar, estabelecer cemitérios de guerreiros próximos de fortes ou posições do exército. Além de se valorizar a memória dos falecidos, quase todos tendo perecido valentemente em combate ou morrido por causas naturais após uma brilhante carreira de comando, acreditava-se que tal prática fazia com que os soldados mais jovens tivessem maior contato com seus melhores predecessores e pudessem, assim, neles se espelhar em seu serviço ao rei. Apesar do caráter um tanto mórbido, a tradição gerava seus frutos e por isso mesmo era perpetuada no continente há tanto tempo, com cemitérios como aquele sendo sempre muito bem cuidados pelos destacamentos presentes em cada forte por eles responsável; além de constituírem, com raras exceções, motivo de reverência e respeito da parte dos viajantes.

Foi assim que, depois de mais meia hora de caminhada, o grupo atingiu o singelo portal metálico, no entanto mantido em perfeito estado, que dava acesso ao interior da necrópole. Ao contrário do que possa se pensar, a estrada seguia cemitério adentro, cruzando-o de um lado a outro – revelando a intenção dos militares em obrigar quem passasse a prestar sua homenagem aos combatentes mortos, ou ao menos gerar uma fagulha de reflexão a respeito de quem de tão importante poderia estar enterrado em cada uma daquelas covas. O fato de carregarem um companheiro de viagem moribundo numa maca para dentro de um lugar que remetia à morte fez os integrantes do grupo se questionarem sobre se seria bom ou não para Beli Eddas atravessar tal ambiente; mas quando deram por si, já passavam por baixo da estrutura de ferro cujo topo ostentava, na antiga língua dos boreais, a denominação do local:

CEMITÉRIO DOS BRAVOS

Adentraram então um amplo complexo de túmulos e pequenos mausoléus, embora a estrada seguisse adiante sem nenhum obstáculo até a saída logo em frente, depois de alguns minutos de trajeto. Todos, exceto Freya e o inconsciente Beli Eddas, passaram a examinar as sepulturas conforme andavam. A variedade delas era algo de se admirar, refletindo o fato de, apesar de todos ali terem pertencido ao exército do continente em diferentes períodos, haverem morrido de distintas maneiras e pertencido a diferentes patentes e regimentos. Algo comum era notável, todavia: a quase inexistência de representantes das forças da antiga Liga do Norte. Ainda que muitos militares desse período figurassem entre os maiores soldados e estrategistas já vistos em Boreatia, a nova Behatar pretendia expurgar os erros e injustiças do passado – e essa postura não incluía prestar culto a guerreiros que, mesmo habilidosos, haviam ceifado milhares de vidas inocentes. Os poucos mortos de tal época que ali descansavam se encontravam, porém, nos mais adornados e amplos túmulos do cemitério. Parece contraditório, mas essa característica se dava devido a tais sepulturas serem dedicadas a mártires do exército da Liga que acabaram sendo eliminados por permanecerem fiéis aos deuses durante as perseguições feitas pelos fiéis de Swordanimus. Aqueles falecidos sim representavam os valores que o novo Reino Boreal pretendia difundir.

Além desses mausoléus de maior requinte, alguns até se assemelhando a pequenos templos e portando esculturas com representações aproximadas da aparência que seus moradores teriam tido em vida, espalhavam-se pela necrópole lápides de variados tamanhos e formatos, embora seguissem padrões: as pertencentes a antigos soldados do Império Boreal, por exemplo, possuíam estrutura em retângulo com ponta triangular, havendo nesta a gravação em alto relevo de uma coroa de louros. Letras em caligrafia antiga e imponente registravam o nome do morto, seu posto e razão do óbito. Embora fosse considerada germe do desprezível sentimento de supremacia da Liga do Norte, a guerra de independência contra Etressia tinha ali também seus representantes, ainda que mais discretos, em covas marcadas por lápides quadradas e baixas, enfeitadas com pequenas armas esculpidas em pedra. Fëanor, maravilhado, descobriu uma ou outra sepultura com os emblemas do pinheiro e a espada voltada para os céus, concluindo claramente que Cavaleiros da Luz também repousavam ali. Sem deixar de carregar a maca, abaixava a cabeça em breve prece cada vez que avistava um daqueles túmulos. Esperava poder também servir bem à causa de Northar e os deuses, e assim, quem sabe, um dia igualmente encontrar descanso em meio aos companheiros que haviam lutado pelo mesmo objetivo antes que nascesse.

Freya, por sua vez, tinha os olhos fixos nos mausoléus. Fitava suas estruturas e detalhes com intensa curiosidade, apesar de já ter passado por aquele cemitério antes. Sabia que, assim como era costume em Behatar soldados serem enterrados perto de fortes em lugares como aquele, parte das riquezas que possuíam em vida também era geralmente alojada com os mortos, em câmaras e criptas específicas dentro de cada uma daquelas sepulturas mais sofisticadas. Imaginou o que poderia encontrar de valioso se explorasse alguma delas...

- É melhor nos apressarmos... – murmurou Trent em dado momento, olhando ao redor com perceptível receio. – Não quero correr o risco de encarar mais carniçais.

- Tem toda razão, orelhudo! – exclamou Kal Sul que, apesar de sua conhecida valentia, demonstrava já sinais de cansaço.

Ouvindo essas palavras, a mercenária tirou os olhos dos mausoléus e examinou por um instante o aspecto pálido e fraco de Beli Eddas na maca. Havia corpos e mais corpos em decomposição embaixo da terra daquele cemitério, ótima fonte de alimento para mortos-vivos como os que haviam enfrentado antes na ponte... É, o elfo estava mesmo certo. Melhor era esquecer os sonhos exagerados de riqueza e se focar mais em sua própria segurança, pensou Freya. Principalmente com o misterioso “M” à espreita. Quando deu por si, ela mesma andava mais rápido que os outros, querendo sair logo daquele local.

Assim o fizeram depois de alguns minutos. A tarde findava. Pela frente, antes de Tyrnan, havia ainda o forte.

A fortaleza de Guikdon seguia o padrão das fortificações militares de Behatar, que se espelhavam por sua vez em suas ancestrais do Império Boreal. Aquela em específico se situava junto a uma curva da estrada, que assim contornava parte das muralhas para seguir seu caminho. Nelas havia cinco torres de guarda: uma em cada canto do quadrado que formavam e uma quinta, ligeiramente maior, no muro oposto àquele em que se encontrava o portão de entrada. Essa última possuía em todos os entrepostos a alcunha de “Torre Forte”, devido a constituir a estrutura de paredes mais grossas da fortaleza e abrigar um pequeno abrigo no subsolo projetado para constituir definitivo foco de resistência dos soldados, caso fossem encurralados. Dentro das muralhas, além do forte em si, de estrutura similar a um pequeno castelo de pedra, havia quatro outras dependências que o circundavam: um armazém de víveres, a casa de armas e dois alojamentos para os soldados. Os oficiais, como era de praxe, tinham seus aposentos, melhores que os de seus comandados, dentro da estrutura central. Exército constituía sinônimo de hierarquia, e hierarquia levava a privilégios. Tal característica não era exclusiva das forças boreais.

Os viajantes aproximaram-se do forte e viram alguns sentinelas, com suas armaduras possuindo detalhes em azul, de prontidão no topo dos muros e junto às torres. Estes aparentaram ignorá-los, ainda que transportassem um ferido. Os membros da comitiva contornaram o lugar e já se distanciavam pela estrada, quando um dos militares, avistando Kal Sul, acenou-lhe e exclamou num sorriso:

- Que os deuses o protejam, nobre anão! Difícil ver um dos seus nestas terras!

- Ó nobre homem! – o embaixador bradou feliz em resposta, diminuindo um pouco o passo e gerando uma careta por parte de Freya, que subitamente se cobrira mais uma vez com seu capuz. – Rogo para que Bragondir mantenha afiadas as lâminas de ti e seus colegas!

- Vejo que transportam um ferido. Precisam de ajuda?

- Não, fique tranqüilo – a mercenária tomou a palavra, tentando não soar tão ríspida. – Estamos a caminho de Tyrnan, e com sorte lá chegaremos ao anoitecer. As clérigas cuidarão de nosso amigo. Nada como um pequeno auxílio dos bondosos deuses, não é mesmo?

Fëanor conteve-se para não insultar a companheira de viagem diante de sua falsa devoção às divindades, porém conteve-se. Teria de se acostumar com aquele temperamento se quisessem chegar sem mais problemas à capital.

- Sim, de fato – o soldado, bem jovem, não notou a dissimulação da guerreira. – Que os bons ventos os levem em segurança ao seu destino!

Eles acenaram e prosseguiram.

Freya sentia nojo de ver um combatente se dirigindo de maneira tão ingênua e otimista a qualquer um que passasse. Logo se via se tratar de um recruta recém-saído das asas da mãe e que ainda mal sabia como brandir uma espada. Se já houvesse ao menos cortado ao meio um inimigo no calor frenético da batalha, sentido o sangue de outro jorrar sobre sua armadura anunciando que ele viveria mais um dia para guerrear, provavelmente não assumiria aquela postura tão tola. Sua alma ainda não fora forjada no inferno da conflagração, e até lá continuaria a pensar que a vida no exército era um sonho de cavalaria. Quando realmente fosse atirado em frente a um batalhão inimigo, descobriria que deuses ou bons ventos não bastariam para que saísse vivo. Era devido a essa crescente ingenuidade que tantas nações perdiam guerras...

A mercenária acabou tirada de suas reflexões bélicas com uma série de gemidos emitidos por Beli Eddas sobre a maca. Não se podia afirmar se estava acordado ou não, mas era certo que delirava. Trent Dante colocou um pano umedecido sobre a testa do aspirante a mago, ao mesmo tempo em que o firmamento se convertia numa imensidão tom de ferrugem. Logo Rimya e as estrelas surgiriam. E tinham de chegar ao santuário antes que a escuridão atingisse a metade de suas horas.

A estrada avançava por entre algumas cada vez mais densas paisagens de árvores, anunciando a proximidade da Floresta Negra. Behatar era famosa por ela, e os aventureiros notaram em Kal Sul certa impressão conforme admirava a mata. Fëanor permanecia, no entanto, impassível: ainda que também nunca houvesse percorrido aquela região, estava mais preocupado em carregar a maca. A julgar pelo tempo que já gastara realizando a tarefa, não seria de se surpreender se ele ficasse dias sem poder utilizar os braços quando finalmente colocassem o doente no chão.

Aproximaram-se da grande estátua dedicada a Wella quando o céu já passava de laranja a azul escuro. O imenso monumento, com os braços abertos, parecia acolher os viajantes com entusiasmo, gerando o efeito de se sentirem aliviados e bem-vindos. Freya sabia, porém, que a realidade da pequena povoação era bem diferente. Teria de tomar cuidado redobrado, aliás, devido à sua prévia passagem por ali: sendo assim, nem pensou em retirar o capuz. Esperava que ninguém da guarda houvesse observado seu rosto, ou teria sérios problemas...

- Mal posso esperar para passar a noite numa boa cama de hospedaria! – suspirou o elfo, constatando que dormir duas vezes ao relento já era mais que suficiente para si dentro de no mínimo alguns meses.

- Eu não contaria tanto com a hospitalidade de Tyrnan... – murmurou a guerreira, enquanto a estrada começava a acompanhar o contorno da muralha cercando a cidade. – O atual procurador odeia forasteiros e quase expulsa a pontapés visitantes que ousem cruzar o portão sem serem autorizados pela guarda. Um lunático traumatizado pelo Crepúsculo dos Deuses. Eu espero que tenhamos sorte em pelo menos chegar ao santuário...

- Tudo dará certo – Fëanor afirmou determinado. – Northar guia nossos passos.

Quero ver a desculpa que ele inventará para os vigias... – Freya pensou consigo.

Continuaram acompanhando a muralha, até o portão da cidade surgir logo à frente, situado numa dobra dos muros. Duas rígidas torres de guarda – similares a todas as demais distribuídas ao redor da povoação – vigiavam o entrar e sair de pessoas, diminuído àquele final de tarde. Antes que o grupo se preocupasse com os sentinelas, no entanto, sua atenção se voltou para um ponto à esquerda da estrada, junto à crescente floresta que prometia engolir Tyrnan dentro de mais alguns anos. Havia nele uma pequena tenda listrada, enfeitada com flâmulas e bandeirolas. O letreiro nela colocado, com os dizeres “Latife, O Duelista”, já dava a entender do que o local se tratava, mas a movimentação nele existente confirmou as primeiras impressões: uma pequena aglomeração de pessoas, em sua maioria crianças, cercava um rapaz em seus vinte e poucos anos, vestindo armadura desgastada por cima de um traje em clores claras que seria motivo de piada a um guerreiro sério. O corpo era esguio, os cabelos loiros e os músculos pouco desenvolvidos; porém o jovem espadachim revelava certa rapidez em seus golpes de sabre contra o vento, embora toda aquela demonstração de agilidade circense pouco pudesse ser de valia num combate real – aspecto que Freya e Kal Sul imaginaram de imediato, em diferentes graus de arrogância.

Os meninos da cidade, sem terem conhecimento das efetivas artes da guerra, admiravam os movimentos do tal Latife com os olhos brilhando e bracinhos vibrando a cada estocada deste contra um monstro imaginário, desejando serem como ele quando crescessem. Os recém-chegados de Feritia, talvez para aplacarem um pouco sua tensão diante da entrada de Tyrnan, detiveram-se por alguns instantes junto aos espectadores do artista, enquanto este exclamava, conforme brandia sua espada de lâmina fina numa coreografia bem-montada:

- Venham desafiar o grande Latife para um duelo! O prêmio para quem conseguir me levar ao solo, claro, sem ferimentos mortais, está acumulado em cento e quarenta peças de ouro! Quem se acha capaz de realizar essa façanha?

Todos no grupo de viajantes, exceto o adoentado Beli Eddas, trocaram olhares desconfiados. Kal Sul pensou que seria interessante mostrar àquelas crianças boreais como um anão de Glacis lutava com seu machado, mas seria pouco educado para com o duelista, provavelmente nativo daquele continente. Trent Dante imaginava se conseguiria vencê-lo pela magia, congelando a espada assim como fizera anteriormente com a arma de Freya, mas magia era geralmente proibida naquele tipo de competição, os conjuradores arcanos tendo seus próprios tipos de desafios em que se digladiavam. Fëanor passou a mão direita pelo cabo do sabre paterno, mas preferiu mantê-lo guardado – tinham de cuidar do mago na maca e aquele não era o melhor momento para uma demonstração egoísta de força. Já Freya, certa de que poderia fazer aquele lutador magrelo comer poeira do chão, lançou um olhar para a tenda que possuía, em seguida na direção dos muros da cidade... e então se manifestou:

- Desejo sim desafiá-lo, caro Latife, mas não agora. A noite se aproxima, prejudicando meus sentidos e fazendo pesar o cansaço em meu corpo. Irei sim lutar contigo, mas amanhã, pela manhã. Até lá, gostaria apenas de saber se poderia partilhar comigo sua barraca, para que eu não durma ao relento. E por favor, exclua disso quaisquer segundas intenções.

Alguns ali puderam suspeitar da jogada de Freya: ela não queria passar a noite dentro dos muros de Tyrnan. Só não sabiam que tanta precaução era devida ao fato de a mercenária ter assassinado um nobre da cidade meses antes, temendo ainda ser reconhecida por algum guarda ou morador. Os colegas de viagem que tratassem de seus negócios lá dentro, e quando o sol raiasse ela os reencontraria ali fora de bom grado. Não valia a pena se arriscar.

Latife embainhou a espada, coçou o queixo por um momento com os olhos fixos na guerreira, e respondeu:

- Pois bem. Pode sim dividir comigo minha tenda esta noite, viajante. Mas saiba que possuo olhos às costas, caso tente me roubar.

Duvido muito disso... – a mente de Freya continuava tão afiada quanto sua arma.

Ela encaminhou-se para o improvisado teto do duelista, enquanto este encerrava suas atividades e também se preparava para o recolhimento noturno. As crianças, comentando entre si se a tal guerreira era ou não melhor que Latife, retornaram até o portão, onde alguns de seus pais as aguardavam irritados pela demora. Devido ao toque de recolher, dentro de mais algumas horas a entrada seria fechada e ninguém mais poderia adentrar ou deixar Tyrnan. Chegara o momento dos aventureiros tentarem ganhar acesso ao interior do povoado. E foi assim que, carregando a maca com Beli Eddas, dirigiram-se ao portal ladeado por pedra e ferro.

A poucos passos de cruzarem-no, foram abordados por um dos soldados no topo da muralha, usando armadura nas cores de Behatar, mas com detalhes em verde e o emblema de um pinheiro, sem outras insígnias, gravado no peitoral. Kal Sul, como diplomata estrangeiro, não estava certo se uma mera cidade no território do reino poderia fazer tais alterações no traje da guarda, mas guardou a observação para si. As ríspidas palavras do vigia logo foram bradadas de modo a fazer boa parte dos outros sentinelas ouvirem:

- Alto lá! Quem são vocês e o que querem?

- Boa tarde, nobre homem – começou o embaixador, lançando de leve o olhar para o céu e constatando que poderia ainda saudar o guarda daquela maneira. – Desejamos permissão para adentrar Tyrnan.

- Conversa fiada, anão! – o soldado rebateu grosseiramente. – Vejo que trazem um doente. O que tem ele? Acham mesmo que arriscaria deixá-los entrar e contaminar toda a cidade com alguma praga?

Kal Sul calou-se para manter-se paciente. Rebaixar-se ao nível de ignorância daquele homem não facilitaria as coisas. Trent Dante e Fëanor, por sua vez, encontravam maior dificuldade em se conter. Enquanto o elfo desejava já ter um melhor conhecimento de magia para lançar um relâmpago sobre aquele ser, o aspirante a Cavaleiro da Luz tinha vontade de sacar a espada e escalar o muro no encalço daquele pérfido. Todos ali sabiam, todavia, que no fundo a melhor solução era o diálogo.

- Perdoe-me... – o diplomata continuou, os punhos fechados refletindo sua força de vontade. – Sou um convidado oficial do novo rei de Behatar, Jetro I, para sua coroação. Dirijo-me à capital Borenar, e eu e meus companheiros necessitamos de pouso para a noite. Um dos nossos caiu sim doente, mas nada de que as clérigas do santuário dentro dos muros não possam cuidar. Será que poderia, por favor, nos deixar entrar, em face dessas circunstâncias?

- Como posso confiar num forasteiro anão? – insistiu o vigia, enquanto seus colegas se aproximavam pela muralha.

- Por Northar, este homem está morrendo! – interveio Fëanor, apontando para a maca. – Vai mesmo deixar que sua desconfiança ceife a vida dele por falta de cuidados que poderiam ser facilmente cedidos dentro da cidade?

- Posso mostrar-lhe minhas insígnias se quiser – completou Kal Sul. – Sou um diplomata a serviço do rei de Glacis.

As duas últimas alegações pareceram abalar a teimosia do soldado. Este mordeu os lábios, trocando olhares de dúvida com os demais vigias. Os viajantes, olhos atentos ao muro, notaram que alguns moveram de forma afirmativa a cabeça, ainda que um tanto relutantes. A resposta final do guarda logo veio:

- Está bem, podem entrar. Mas irão direto para o santuário de Wella. Não quero vê-los em qualquer outra parte da cidade, principalmente lugares em que a praga desse jovem poderia se espalhar. E, pela manhã, devem se retirar o quanto antes. Caso eu não os veja cruzando este portão nas primeiras horas após o nascer do sol, ordenarei que revistem tudo em busca de vocês! Terão, então, de se entender com o procurador Chänter.

- De acordo – anuiu Kal Sul. – Obrigado por vencer os monstros dentro de você, soldado. A vida deste rapaz agradece.

Nenhum sentinela respondeu. Os aventureiros, acompanhados por olhares desconfiados tanto da guarda quanto dos pais que voltavam para casa com suas crianças, avançaram pelo portão e ganharam as cada vez mais quietas ruas de Tyrnan, a noite já tendo plenamente se instalado.

O santuário dedicado à deusa Wella estava situado ao final de uma longa via, bem ao lado de um dos segmentos da muralha. O local era cercado por muros altos, embora não tanto quanto os que rodeavam a cidade, tendo sido provavelmente erguidos para resguardar as clérigas em seu interior. Um portão metálico com entalhes de folhas e flores separava as dependências das sacerdotisas da rua, sendo possível visualizar através dele o jardim abundante e bem-cuidado que dominava boa parte do espaço do santuário. Não era à toa ser aquele território pertencente àquelas que cultuavam a Senhora da Natureza.

Observados por uns poucos curiosos, os viajantes carregaram Beli Eddas até a entrada. Fëanor e Trent Dante espionaram o interior: não havia qualquer sinal das clérigas no jardim, embora algumas janelas da construção ostentassem velas acesas. Teriam de chamar por alguém.

- Hei, aqui! – o paladino se incumbiu da tarefa sem que houvessem precisado lhe pedir. – Alguém pode nos ajudar?

Passaram-se alguns instantes. Kal Sul, cansado, sentou-se junto ao muro pelo lado de fora, sua armadura tilintando. Jurou ouvir o grasnar de um corvo ao longe, porém desconfiou que seus sentidos exaustos lhe pregavam uma peça; e, ainda que fosse mesmo um corvo, poderia muito bem não ser o mesmo da noite anterior, que devido à longa marcha do dia já parecia tão distante. Fëanor clamou por auxílio novamente. Desta vez, pouco depois, o som de uma porta sendo aberta e passos sobre as pedras do pátio foram escutados. Alguém vinha atendê-los.

A figura surgiu vestindo túnica branca do pescoço aos pés, os cabelos grisalhos presos num coque atrás do rosto em que se desenhavam proeminentes rugas. A expressão facial não era das melhores. Foi com certo incômodo na voz que a idosa humana perguntou aos desconhecidos:

- O que querem para perturbar o sono das filhas de Wella?

- Boa noite – Kal Sul, como de hábito, assumiu o diálogo. – Somos viajantes vindos de Feritia. Nos dirigimos à capital, e não temos onde dormir. Pior: nosso amigo aqui contraiu uma infecção e precisa ser tratado. Poderíamos contar com a boa vontade da senhora e suas semelhantes?

Respondendo num resmungo incompreensível, a sacerdotisa-mor Meroah Jent destrancou o portão e abriu passagem para entrarem.

O jardim do santuário era ainda mais admirável quando visto de perto. Ou melhor, visto e sentido. Provinha dos canteiros ali plantados um misto de aroma e frescor únicos, como se a própria deusa ali descesse com freqüência para tudo encantar com seu toque. As flores alternavam-se em incontáveis matizes e formatos, alguns raros, todas de sublime exuberância. Além das plantas para preenchimento do jardim, abundavam as mais diversas hortaliças e tubérculos para uso culinário ou medicinal, os canteiros bem demarcados e portando pequenas placas de madeira com o nome do que era em cada um cultivado, além das principais utilidades do referido vegetal. Ao término do espaço aberto, a estrutura de pedra e alvenaria do santuário em si não era menos agradável, com corredores arejados e salas projetadas de modo a aproveitarem totalmente as brisas matinais e noturnas. Fëanor imaginou que, só de passarem por aqueles ambientes, o estado de saúde de Beli Eddas já melhoraria. Precisavam, no entanto, fazer algo mais efetivo pelo novo amigo.

- O que ele tem? – inquiriu Meroah um tanto impaciente, de costas para o grupo, enquanto o conduzia pelos caminhos do santuário.

- Febre do carniçal – revelou Dante. – Tivemos de lutar com alguns na estrada.

- Pedirei que uma de minhas melhores sacerdotisas cuide dele. Creio que estará bem de novo pela manhã. Peço apenas, senhores, que tenham em mente que os deixei entrarem neste lugar somente devido à urgência que a condição desse jovem exige. Homens são terminantemente proibidos dentro destes muros em circunstâncias normais. A presença de vocês aqui vai contra nossos votos.

Trent teve vontade de falar que poderia ficar tranqüila, já que ele ao menos estaria longe de se interessar por alguma clériga dali se todas tivessem a mesma cara de fruta seca que ela, porém provavelmente seria enxotado antes mesmo que terminasse, e o mago viraria morto-vivo.

Continuaram avançando, até que julgaram ouvir algo no ar como uma... canção. De início acreditaram se tratar do efeito tranqüilizador que aquele ambiente lhes causava, porém logo notaram que alguém realmente entoava uma melodia. A sacerdotisa-mor levou-os até os fundos do local, e eles viram. Sentada junto a uma bonita fonte esculpida em pedra, uma clériga de vestimenta similar à de sua superiora cantava de forma sonhadora, cabeça erguida com os olhos voltados para as estrelas. As águas límpidas do chafariz refletiam sua magnífica imagem sob o brilho da lua. Cabelos ruivos de vermelho intenso, corpo de formas quase perfeitas, maravilhosamente disposto sob a túnica que, apesar de larga, aparentava delinear ainda melhor seus contornos. Orelhas longas e pontudas, face de formas suaves e atraentes, num encantador meio-termo entre juventude e maturidade. A música que saía de seus lábios era composta por palavras numa língua estranha a todos ali, mas ainda assim não perdia seu fascínio. Era uma das coisas mais belas que qualquer um deles já ouvira.

- Elya! – Jent chamou-a, aproximando-se junto com os visitantes.

Uma elfa, a única ali. Os quatro homens viam-se sem ação diante de tamanha dádiva, mas Trent Dante muito mais que seus companheiros. Era a primeira fêmea de sua raça que via em vida, além de sua mãe. Crescer longe de Astar mantivera-o longe de criaturas tão sublimes que, naquele continente de Behatar, estavam longe de compor visão corriqueira. Nos livros que lera até então, conhecera gravuras e histórias sobre Mihnire, sobre Briss. Estar diante de uma elfa como as das lendas, no entanto, era bem diferente.

Ela interrompeu a canção, para desagrado dos ouvintes, e questionou:

- Sim, Meroah?

- Estes forasteiros precisam de sua ajuda – a superiora foi curta e grossa. – O amigo deles contraiu a febre do carniçal. Dentro de poucas horas se tornará um deles, se não for tratado.

Elya assentiu com a cabeça. Levantou-se da fonte com calma, dirigindo-se até a maca. Trent e Fëanor abriram caminho para que ela se aproximasse, ainda perplexos diante de sua figura. Foi quando, ao lançar os olhos sobre o paladino, a elfa aparentou se esquecer completamente do que ia fazer. Deteve-se, examinando com atenção o rosto do garoto por alguns instantes, sem que ele compreendesse o porquê. Em seguida, arregalando os olhos como se consciente de seu lapso, a clériga focou-se novamente no adoentado.

Ela ergueu-o sozinha em seus braços e, caminhando devagar, deitou-o junto a uma das beiradas do chafariz. Retirou do interior da túnica uma pequena cuia feita de madeira e imergiu-a nas águas do reservatório, despejando um pouco do líquido sobre as feições do pálido e ainda inconsciente mago. Observando junto com os demais, Dante não pôde mais se manter calado. Aquela elfa parecia ter saído diretamente de seus mais profundos sonhos. Tinha de falar-lhe algo, por mais inútil que fosse àquele momento:

- Aquela música que você cantava... qual é? Nunca a ouvi antes.

- Muito me surpreende um elfo não conhecer a Canção do Poente – Elya respondeu sorrindo, sem descuidar de Beli Eddas. – Uma das mais conhecidas melodias do povo de Astar.

É, Trent não a conhecia. Crescera em Behatar, afinal de contas. A resposta da clériga viera de forma natural e até um tanto suave, porém mesmo assim sentira como se ela houvesse lhe ordenado que calasse a boca. Não conhecer as milenares tradições élficas constituía obstáculo para aproximar-se dela, pelo visto. Deixou que cuidasse do doente sem dizer mais nada.

Elya continuou despejando água da fonte sobre o rosto, tronco e membros do mago. Conforme fazia isso, pronunciava palavras baixinho, no mesmo idioma da música que há pouco entoava. Élfico. Apenas o nome “Wella” era plenamente identificável em meio às orações. Num dado momento, retirou outro artefato de sua vestimenta: um pequeno frasco contendo um composto de ervas, similar a uma pasta esverdeada. Untou com ele boa parte do corpo de Beli, principalmente o lugar que o carniçal mordera. Mais preces e água. Minutos depois, ela por fim se levantou, mantendo o paciente deitado junto ao chafariz. Voltou-se para os demais.

- Ele estará bom pela manhã. Só precisa descansar agora. Ainda bem que o trouxeram a tempo, ou eu pouco poderia fazer para salvá-lo.

- Nem sabemos como agradecê-la – afirmou Kal Sul, abaixando a cabeça em reverência.

- Agradeça a Wella em suas orações. Fui um mero instrumento de seu infinito poder.

Em seguida, a clériga tornou a se aproximar de Fëanor. Por alguma razão, o jovem aparentava abalá-la. Ela o contemplou por mais instantes, sem que qualquer outro dos presentes, até mesmo a carrancuda sacerdotisa-mor, ousasse tomar palavra. E foi com estranho brilho nos olhos que Elya acabou indagando ao rapaz:

- Diga-me, qual seu nome?

- Fëanor – ele replicou, também achando a situação toda bem confusa e até um tanto incômoda. – Fëanor Bladinor.

Não havia mais como ocultar o que a elfa sentia: ela estremeceu diante da resposta, principalmente quando o filho de Göther pronunciou seu sobrenome. Todos pensaram que a clériga perderia o equilíbrio sobre as pernas e cairia sentada na direção da fonte; mas manteve-se firme, ainda que não conseguisse disfarçar uma leve falta de ar. Fëanor, por sua vez, teve a curiosidade despertada. Por que aquela reação dela diante de seu nome? O que ela poderia saber sobre seu passado, ou sobre seus falecidos pais? Tentando conter o furor da dúvida que poderia botar tudo aquilo a perder, controlou-se e perguntou calmamente:

- Por que quis saber meu nome?

Ela respondeu de forma quase imediata:

- Seu nome remete a um grande guerreiro da fé, que deu a vida lutando pelos deuses e por seus ideais. Göther Bladinor. Tem algum parentesco para com ele?

- Ele era meu pai.

Elya, que já demonstrara tanto espanto há pouco, agora conseguia melhor se conter. A nova afirmação, entretanto, também pareceu mexer com seus nervos – como revelavam as linhas surpresas de sua face. Sorrindo, falou de modo tranqüilo:

- Não sabia que ele tivera filhos. Nesse caso, é muito bom tê-lo entre nós. Da mesma forma que um grande destino foi conhecido por seu pai, acredito que os deuses reservam algo de suma importância para você.

Bem, ela conhecera seu pai, como Fëanor pôde evidentemente concluir. Mas será que aquela reação se dera apenas por conta disso? Saberia ela mais, e estava escondendo?

O garoto estava certo de que ao menos naquele momento não conseguiria fazer mais perguntas. Meroah fez um gesto para que todos a acompanhassem, inclusive Elya. A sacerdotisa-mor os conduziria até o local em que passariam a noite. Beli Eddas, com a cor voltando à pele e um aspecto de sono imaculado, foi deitado mais uma vez na maca e carregado por Kal Sul e Fëanor pelos corredores, conforme as instruções da superiora. Logo foram apresentados, perto da cozinha do santuário, ao recinto em que dormiriam: uma despensa que não vinha sendo usada, embora conservasse algumas sacas de grãos e armários de mantimentos junto às paredes descascadas e ao chão de lajotas partidas. Foram cedidos alguns travesseiros e mantas para que melhor se acomodassem, o mago repousando perto do paladino e do diplomata anão, enquanto o feiticeiro elfo encontrava descanso num canto mais afastado, inserido numa pilha de sacos de feijão. Não queria duvidar de Elya ou do poder de Wella, mas ainda temia que a cura não houvesse dado certo e que Beli retornasse como um carniçal no meio da noite, o que não seria muito agradável. Nesse caso, optara por se manter um pouco longe. Além do que... achava que a clériga o havia tratado mal, e isso incutira em si certa desconfiança.

As duas sacerdotisas se despediram e, envolvidos pela escuridão, os hóspedes do santuário elevaram suas mentes para o limbo de Nayx, preparando-se para a continuidade do árduo trajeto pela estrada na manhã seguinte.

Freya achou que encontraria sossego fora das muralhas de Tyrnan... mas viu que estava enganada.

O ambiente da tenda do duelista Latife era tranqüilo e aparentemente seguro; não consistia nisso o problema. Ele também não se mostrara um engraçadinho que tentaria se aproveitar do fato de ter uma mulher em sua barraca para se divertir – ou por certo já teria perdido os colhões. O maior obstáculo para que a guerreira pegasse no sono, coisa que vinha tentando há horas, era sua própria consciência. Toda vez que ousava pensar na sucessão de problemas em que acreditava ter se metido, o cansaço era ignorado e sua mente se recusava a parar de trabalhar. O pitoresco contrato selado com “M” preocupava-a mais a cada noite, por mais que tentasse esconder. Àquele momento, rolando para lá e para cá sobre as almofadas dispostas sobre a grama, tinha sua penúria embalada pela sinfonia irritante dos grilos, o que dificultava ainda mais o já custoso objetivo de tentar dormir.

Latife, por sua vez, repousava como um bebê em berço real. Por sorte não roncava, ou a situação da mercenária estaria ainda mais complicada. Ela tentou distrair-se com outras coisas em sua cabeça ansiando conseguir ignorar os receios ao menos por tempo suficiente para adormecer. A estratégia surtiu efeito pois, após alguns instantes imaginando armas e mercadorias que gostaria de tomar para si, Freya fechou os olhos e mergulhou no mundo dos sonhos...

Até, ao menos, despertar agitada com sons dentro da tenda.

Por reflexo, levou a mão para baixo do travesseiro e apanhou sua adaga, a qual mantinha sempre próxima durante o sono. Assim munida, sentou-se no chão e estreitou os olhos para tentar distinguir algo em meio à penumbra no interior da barraca. Captou movimentos, embora não conseguisse distinguir muito bem quem os realizava ou como. Teria o duelista imbecil sido surpreendido por um invasor, tentando agora resistir a ele? Freya já ia levantar para intervir... quando entendeu tudo.

A agitação era causada pelo próprio Latife. Este, de pé, saltava para frente e para trás em posição de luta, espada brandida. Cortava com ela o ar em diferentes poses, como se ora partisse um orc em dois, ora perfurasse o peito de um ogro. Com os olhos arregalados e semblante suado, mantinha expressão característica de um louco, chegando a assustar Freya quando seu rosto era palidamente iluminado pelo brilho dos astros do lado de fora. Aparentando ignorar por completo a presença – e inconformismo – de sua hóspede, bradava conforme lutava contra o invisível:

- Tome, bugbear horrendo... Engula esta, seu morto-vivo miserável! Conseguirei sua cabeça, aberração de nove braços! Pensa que pode vencer o destemido Latife?

A guerreira compreendeu rapidamente que o duelista ainda dormia. Era sonâmbulo, portador da famosa doença que fazia pessoas falarem e agirem durante o sono, podendo ser até fatal despertá-las daquele estado. A maioria alegava se tratar de uma praga enviada pelos deuses pouco antes do Crepúsculo, para garantir que os mortais continuassem se afligindo com suas provações até mesmo quando se recolhessem à noite. Outros, porém, afirmavam ser a moléstia bem mais antiga, tendo vitimado alguns imperadores boreais. De qualquer modo, nada havia que Freya pudesse fazer a respeito. Poderia, ao menos, estudar os movimentos do oponente para o duelo da manhã seguinte. Ele, involuntariamente, contribuía para as chances dela. Assim a mercenária o fez, analisando o pobre coitado durante algum tempo, até se chatear e voltar a deitar-se, virada para o outro lado. Pouco depois, o corpo de Latife não agüentou e também desabou, inserindo-o mais uma vez num sono calmo e sereno.

Existiam, por certo, muitos loucos naquele mundo...

A aurora veio com seus primeiros raios, banhando o santuário em dourado.

Kal Sul foi o primeiro a despertar. Um anão não costumava dormir tanto, mas o cansaço acumulado acabara por vencê-lo. Espreguiçou-se sonoramente, o demorado bocejo bastando para também acordar Trent Dante e Fëanor. A atenção dos três, assim que se lembraram de onde estavam e em quais circunstâncias, foi direcionada imediatamente para o local em que Beli Eddas dormia: o corpo do mago estava em condição normal e, com a cabeça semi-envolta pelo manto, balbuciou algumas palavras enquanto também abria os olhos.

- É, deu certo... – o elfo murmurou sem ocultar seu alívio.

- O que aconteceu? – o último a despertar indagou, confuso como já era de se esperar. – Onde estamos?

- Santuário de Wella em Tyrnan – o embaixador de Glacis respondeu, vestindo novamente as poucas peças da armadura que tirara durante a noite. – Está curado da febre do carniçal graças às clérigas. O bom é que não perdemos tempo de viagem, devido em grande parte à persistência de nosso colega Fëanor em carregar sua maca.

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O rosto do mago se voltou para o garoto, que verificava, distraído, se todo o seu equipamento estava em ordem. Ele permaneceu olhando-o por alguns instantes, o anão e o elfo imaginando que logo pronunciaria um “muito obrigado”, mas a frase do carrancudo conjurador foi outra:

- Estou com fome.

- Acho que em breve as sacerdotisas nos servirão o café – respondeu Kal Sul, imaginando que ao menos uma ínfima parcela da alma daquele sujeito deveria estar agradecida.

Beli sentou-se com os braços cruzados sobre uma saca de milho para esperar, enquanto os demais terminavam de se vestir, munindo-se mais uma vez com seus pertences.

Minutos depois Elya surgiu, abrindo num rangido a porta da despensa. Era incrível como a elfa e sua cabeleira rubra pareciam ainda mais deslumbrantes sob a luz do sol, assemelhando-se a uma figura que houvesse saído diretamente dos sonhos dos cansados hóspedes durante aquela noite. O mago, no entanto, aparentou não demonstrar muito fascínio diante da clériga. Gratidão muito menos, mesmo depois de saber que ela em específico o havia curado.

- O café está servido. Espero que tenham dormido bem. Queiram me acompanhar.

Eles moveram a cabeça em assentimento e a seguiram. Logo nos primeiros corredores, se depararam com a evidência de que o santuário agora jubilava em vida: jovens clérigas em túnicas alvas e de aparência graciosa observavam os visitantes com curiosidade, algumas trocando risadinhas entre si. Muitas delas eram bem meninas, mais novas até que Fëanor. Os aventureiros as ignoraram, tanto por desinteresse quanto por saberem dos votos que haviam abraçado. Dante, no entanto, era exceção. À retaguarda do cortejo, detinha-se aqui e ali junto a alguma das donzelas, lançando piscadelas e fazendo pequenos truques de prestidigitação com as mãos, como criar fogo usando a ponta de um dedo. O burburinho aumentou. E Meroah Jent, com as mãos na cintura e semblante de cão raivoso, os aguardava logo à frente, bloqueando o caminho.

Irritada, pediu que Elya se aproximasse num gesto, deixando os hóspedes para atrás. Ela cochichou algo junto ao ouvido da ruiva, apontando para as sacerdotisas maravilhadas com Trent e depois para o próprio elfo. Em seguida a superiora afastou-se pisando duro, enquanto uma envergonhada Elya voltava para junto do grupo e pedia:

- Perdoem-me, mas se incomodariam em retornar ao aposento?

Aqueles homens não poderiam tomar o café da manhã na companhia das virgens que ali habitavam, e a elfa fora ingênua em pensar o contrário. Pão, bolo e leite foram servidos pouco depois na despensa, os visitantes comendo em meio aos sacos e armários. Volta e meia, Fëanor lançava um olhar de reprovação para o feiticeiro. Não por querer fazer a refeição à mesa, mas pelo mero pensamento de que Dante pudera ter desejado se aproveitar de uma daquelas religiosas...

Ao terminarem de comer, os quatro viram que era hora de se despedir. Além de não desejarem criar mais problemas dentro do santuário, havia o prazo estabelecido pela guarda para deixarem a cidade e não queriam novos atritos com aqueles soldados tão arrogantes. Beli Eddas estava bem e mais nada havia para fazerem ali. Elya até lhes oferecera algumas poções de cura e ungüentos cicatrizantes como reforço para o resto da viagem, ela e as demais clérigas negando a oferta de Kal Sul em pagar pelo que haviam feito. Eram conduzidos naquele momento de volta ao portão pela elfa e Meroah, atravessando o jardim que, assim como a primeira, ganhava aspecto ainda mais radiante e mágico sob a luz do dia. Algo, no entanto, perturbava Fëanor, que caminhava cabisbaixo. Elya demonstrara na noite anterior saber mais sobre ele do que alegara. E a idéia de ir embora sem descobrir o que era despertava sua impaciência.

- Foi bom tê-los aqui, ainda que por pouco tempo – a clériga de cabelos avermelhados afirmou sorrindo, sua voz tão encantadora quanto quando cantara anteriormente acalmando até mesmo o ávido coração do paladino. – Rogarei aos deuses para que os protejam na distância restante até a capital.

- Nem sei como agradecer pela estadia e pelo que fez por nosso companheiro – Trent tentou, mais uma vez, agradar a elfa, ainda que desajeitado.

- Não agradeça a mim, e sim a Fëanor, cuja persistência em carregar a maca possibilitou que trouxessem Beli Eddas até aqui antes que se convertesse numa criatura monstruosa.

Fëanor! De novo Fëanor! Qual era o problema daquela mulher, afinal?

Aproximavam-se do portão. Elya pareceu aproveitar a deixa para deter seus passos, voltando-se para o futuro Cavaleiro da Luz. Seus olhos brilharam do exato modo como quando ela o encarara na noite anterior. Num tom terno, quase maternal, ela disse ao jovem, uma das mãos em seu ombro esquerdo:

- Sua fé em Northar e nos deuses é grande e inabalável. Persista sempre nela, para que eles possam agir por intermédio de você, de seus atos. A vontade das sábias divindades é manifestada no mundo dos mortais através daqueles que nelas crêem.

- Persistirei – ele retribuiu com respeito, curvando-se em breve reverência. – Espero em minha jornada saber mais sobre meu passado e meus pais, assunto que se encontra ainda oculto na neblina do mistério.

- Paciência, Fëanor. No momento certo, tudo ficará claro. E espero estar presente quando isso acontecer.

As palavras da clériga, ainda que enigmáticas, bastaram para tranqüilizar o garoto. Respirou fundo discretamente, lançando um último olhar para os canteiros repletos de passarinhos e avançando em seguida rumo ao portão. Não havia mesmo nada mais para fazer ali. Não naquela ocasião.

Os outros três já iam acompanhá-lo, quando Meroah os deteve, como se só então se lembrasse de algo que gostaria de falar:

- Esperem... Será que poderia lhes fazer um pedido, como forma de agradecerem ao que lhes fizemos?

Kal Sul, o mais desejoso em retribuir, replicou de imediato:

- Pois diga.

- Há alguns meses, durante o último Festival de Outono, uma de nossas jovens sacerdotisas fugiu do santuário. Órfã, tinha apenas a nós no mundo. Foi uma ação conturbada, durante a qual a pobrezinha acabou causando a morte de um trabalhador da cidade, que de bom grado exercia o posto de vigia em nossos muros durante as celebrações. Há pessoas a procurando pelos quatro cantos do continente, mas não tivemos sinal dela, e nem sabemos se ela ainda está nele.

A sacerdotisa-mor fez uma pausa, a expressão em seu rosto demonstrando que sentia pela história toda algo entre incômodo e rancor. Continuou:

- Ela há pouco completou dezoito anos de idade. Tem cabelos castanhos, pele bem clara. Saiu com um monte de utensílios aqui do santuário. Se ela não os tiver vendido, será fácil identificá-la.

- Quer que a levemos até aqui, caso a encontremos? – perguntou Fëanor.

- Não seria preciso tanto... A moça, que se chama Kirinak, poderia fugir se abordada e esconder-se ainda melhor. Caso a avistem ou tenham alguma suspeita de onde ela possa estar, enviem para nós um mensageiro. Decidiremos então como agir, pelo bem de nossa mais estimada filha.

Todos assentiram. Trent Dante, olhando de soslaio para Elya, notou que a elfa mantinha um ar preocupado. Também devia possuir grande estima pela tal Kirinak. Mas, tinha de convir, retornar àquele local para viver sob as ordens de uma velha com cara de melão chupado não era muito animador. Talvez a garota estivesse mesmo melhor sozinha.

Terminado o pedido, os aventureiros se despediram e ganharam a rua pelo portão.

Atravessaram as vias de Tyrnan de volta à entrada da povoação junto à muralha. Tudo estava agora bem mais movimentado, com comerciantes transitando entre as lojas, faxineiros limpando o calçamento e camponeses preparando suas ferramentas para mais um dia de labuta fora da cidade. A maioria dos habitantes, porém, lançava olhares um tanto hostis para os forasteiros, principalmente Kal Sul e Trent Dante, não-humanos. Paranóia, pelo visto, não era ali característica exclusiva do procurador.

Por falar neste, os quatro viajantes logo passaram diante de uma admirável mansão que logo julgaram se tratar de sua residência. Construção de três andares, erguida em pedra bem polida e madeira nobre, com uma insígnia de pinheiro gravada numa das paredes que davam para a rua. Apressaram o passo, porém, quando próximos da casa. Não queriam desavenças com o mesquinho governante, caso ele os visse.

Atingiram, por fim, o portão. Carroças de feno puxadas por burros magros o cruzavam naquele momento, após seus donos terem vendido boa quantidade para aqueles que possuíam cavalos no interior dos muros. O grupo de aventureiros procurava se manter o mais discreto possível, evitando até erguer os olhos para a muralha com medo de que um olhar mal-interpretado para algum dos vigias terminasse em briga. Kal Sul se sentia um pouco constrangido por ter de fazer isso em sua posição, porém evitar conflitos desnecessários era mais importante que seu orgulho. O diplomata vencia cada vez mais o anão, afinal. Beli Eddas e Trent Dante, em diferentes escalas, tinham vontade de usar magia para se vingar daqueles indivíduos, porém continham-se. Já Fëanor, ainda que procedendo da mesma forma que os colegas, via-se alheio ao que ocorria ao redor. A verdade era que, desde que deixara o santuário e dera os primeiros passos pela rua, fora acometido de terrível mal-estar.

Por um momento perguntou-se se não contraíra a mesma doença que Beli Eddas, porém logo julgou impossível. A cura de Wella, por intermédio da elfa Elya, não parecia passível de falha. A amarga sensação era composta por um intenso revirar de estômago, como se a qualquer instante fosse jogar para fora o que comera no café da manhã. O mais aterrador era que o incômodo crescera conforme se aproximaram do portão, chegando agora a um nível quase insuportável quando estavam prestes a atravessá-lo. Mantendo-se quieto, o paladino apenas seguiu andando com as mãos massageando o abdômen e os olhos tentando se manter atentos mesmo em meio à tontura. Não queria incomodar os outros com aquilo, ao menos não antes de saber do que se tratava.

Então ouviu. E subitamente compreendeu tudo:

CROA! CROA!

Levantou a cabeça na direção da muralha, ignorando a cautela assumida pelos amigos. No alto do portão, empoleirado sobre um beiral no topo da estrutura, viu uma ave negra agitar suas asas num gesto provocador. O mesmo corvo de duas noites antes, estava certo disso.

- Maldito! – murmurou antes de um engasgo, retraindo-se para não vomitar ao sofrer uma fisgada em suas entranhas.

- Fëanor, o que há? – questionou Kal Sul, recuando preocupado até o jovem.

- O corvo! – exclamou abalado, tentando apontar para o pássaro. – O corvo de antes!

Os outros olharam. De fato, havia um corvo grasnando logo acima da passagem. Poderia ser qualquer outro, mas a reação do paladino e o temor em seus corações, que fez seus pêlos se eriçarem, não deixava mentir: era sim a mesma criatura atroz que ressuscitara um carniçal e voltara à vida mesmo depois de partida ao meio por uma pedrada. Continuava seguindo-os, por um motivo obscuro. E até então nada lhes trouxera de bom.

- Que porcaria é essa afinal? – irritou-se Dante.

- Deve ter mesmo um dono – ponderou Beli Eddas, sua voz e feições mais sinistras que o normal sob o capuz. – Uma ave dessas não seria deixada à revelia. Creio que não devemos nos preocupar com ela, e sim com quem a treinou, quando essa pessoa aparecer.

E ela vai aparecer... – complementou Kal Sul em pensamento, passando um dedo pela lâmina do machado que empunhava.

De qualquer modo, não havia muito que pudessem fazer a respeito ali. Caso atirassem pedras contra a muralha tentando derrubar o pássaro, por certo seriam taxados como desordeiros pela guarda e, além de presos, não conseguiriam infligir qualquer dano real ao corvo, ainda que o acertassem. Procurando disfarçar sua preocupação, saíram da cidade. A ave logo ergueu vôo, desaparecendo no céu azul como um elemento que com ele em nada combinava. Fëanor, aos poucos se sentindo melhor, podia afirmar bem isso...

Aquele ser de asas pretas era o próprio mal encarnado.

Os recém-saídos de Tyrnan encontraram Freya sentada do lado de fora da tenda de Latife, o semblante da mercenária compondo sincera representação do tédio. Segurando o queixo, viu os companheiros de viagem se aproximarem, mas não proferiu palavra. Dentro da barraca, o duelista terminava de se vestir para mais um dia de desafios. Algumas crianças e jovens também começavam a chegar ao local, e Freya devia ao espadachim uma luta.

- E então, está confiante? – indagou Fëanor tentando quebrar o gelo.

- O cara é um idiota... – a guerreira soltou num resmungo. – Além de uma verdadeira gazela com um sabre na mão, é sonâmbulo. Levanta-se no meio da noite e acredita estar lutando contra hordas e hordas de monstros.

- Ele parece apenas ter amor pelo que faz – opinou o anão. – Eu teria cuidado...

No instante seguinte Latife deixou seu refúgio, já usando armadura e com o mesmo traje engraçado por baixo da peça. A espada de lâmina fina dançou para lá e para cá em sua mão direita até finalmente fixar-se numa postura imponente, cabo firme entre os ágeis dedos do artista. Acenou para as crianças, que gritaram de empolgação. Voltou-se depois para a desafiante e, sorrindo, disse-lhe com sua voz cheia de confiança:

- Cento e quarenta peças de ouro. Vença-me, e o dinheiro será seu, junto com a glória. Perca, e a recompensa subirá para aquele que tentar superar-lhe.

- Só não garanto não feri-lo mortalmente! – afirmou Freya em tom raivoso.

E, logo em seguida, desembainhou sua espada, partindo para cima do oponente.

Os dois corpos avançaram em rota de colisão, mas o impacto deu-se por meio de suas lâminas. O som de metal em choque repicou pelos arredores, enquanto um guerreiro tentava encontrar uma brecha na guarda do outro. A mercenária atacava com golpes fortes e decididos, lutando como alguém no meio de uma guerra e não participando de um duelo para exibição. Latife, no entanto, aparentava não se assustar diante do furor da adversária. Bloqueava cada investida com movimentos graciosos, como se dançasse ao invés de propriamente batalhar. Se ela atacasse por baixo de seus braços, o sabre do duelista pendia como um raio enviado dos céus para frustrar a tentativa. Se o avanço era alto, a lâmina fina funcionava como um pêndulo suave e infalível, retendo a arma da guerreira de qualquer lado que buscasse penetrar. Enquanto Freya se sentia insultada pela habilidade do espadachim em defender-se e atacava de maneira cada vez mais dura e desajeitada, Latife continuava se protegendo com o máximo de paciência...

Até que o esperado ocorreu: numa de suas investidas contra o rapaz, a mercenária, tentando atingi-lo no peito, abriu demais a guarda. Foi o suficiente para que o duelista contra-atacasse contra a barriga da guerreira, tendo o cuidado de girar a lâmina da espada no ar para que a mesma não cortasse a armadura e, conseqüentemente, o corpo da adversária. A força do golpe, porém, foi bastante para arremessar Freya contra o chão, fazendo-a cair desajeitada sobre a grama. O dano infligido ao equipamento e ao abdômen da mulher fora mínimo, mas isso não mudava o fato de ela encontrar-se tombada no solo. Vencida.

- Foi uma boa luta! – exclamou um risonho Latife, aproximando-se da oponente e oferecendo uma mão para ajudá-la a levantar-se. – Agora o prêmio sobe para cento e cinqüenta peças de ouro!

Freya recusou o auxílio e ergueu-se sozinha sem falar nada. Voltou para junto dos companheiros e, a julgar por sua face, desejava ir embora dali o quanto antes.

- Foi um prazer, meu caro – despediu-se Kal Sul, já se botando a andar.

- Eu talvez os veja ainda por aí! – acenou o duelista, abraçado por meia dúzia de crianças.

Enquanto isso, a guerreira murmurava:

- Como ele conseguiu me derrubar com uma espada fina como aquela? Só pode ter trapaceado de algum jeito. Ele não joga limpo.

- Acho que aquilo se chama “técnica” – provocou Trent Dante, divertindo-se.

Beli Eddas nada disse, mas mantinha uma expressão de ironia no semblante. Já Fëanor, apesar de ainda não entender muito de luta com espadas, julgou que poderia se espelhar naquele ágil combatente em seu futuro treinamento.

Continuaram pela estrada. Logo à frente, a presença de árvores se tornava bem mais densa, quase engolindo totalmente a estrada rumo a Borenar. O verde da mata era tão intenso que até escurecia a paisagem; Kal Sul e Fëanor compreendendo o porquê de chamarem a região de “Floresta Negra”. Prestes a se aventurarem por mais aquele trecho do caminho, os viajantes deixavam as muralhas de Tyrnan para trás... quando, pouco depois, foram interrompidos por inesperado grito:

- Capitão! Capitão!

Pausaram seus passos, virando-se na direção pela qual haviam vindo. Uma figura corpulenta e de baixa estatura aproximava-se pelo trajeto, compondo borrão dourado que aos poucos tomou forma. A maior parte do grupo estranhou o indivíduo, mas Kal Sul, que já achara a voz familiar, começou a confirmar suas suspeitas: era Kraivin, imediato de seu navio, que se dirigia até eles.

Instantes depois, o anão parou diante deles esbaforido. Barba e cabelos desalinhados empapados de suor, vestes sujas e armadura trazendo fragmentos de terra e grama. Claros indícios de uma marcha apressada de Feritia até ali, com noites dormidas ao relento. Para o homem de confiança do embaixador ter rumado até ali daquela maneira, algo grave devia ter acontecido. Diante dos olhares intrigados dos companheiros de seu capitão, Kraivin disse, após tomar ar por alguns instantes:

- Kal Sul... felizmente o alcancei!

- O que aconteceu? – apesar de manter certa paciência, o diplomata era assolado pela preocupação e uma incômoda expectativa. – Você devia estar no barco com a tripulação! O que faz aqui?

Sem ainda ter recuperado plenamente o fôlego, o imediato encarou seu comandante... e preparou-se para responder.

“A desgraça vem sempre como um espectro,

traiçoeiro, quando menos a esperamos”

Gertrun de Etressia, aprox. 143 ACD.