Capítulo IX

“Na calada da noite”

Caleb ficara sem reação por alguns instantes diante da cena. Com o apagar do rápido clarão, o santuário foi inserido em trevas novamente, o rompante som do trovão ecoando ainda em seus ouvidos e confundindo ainda mais sua cabeça. Será que o que vira era mesmo verdade, ou apenas uma brincadeira de sua percepção durante a noite? Estaria dormindo ou acordado? Logo um outro raio, mais distante, tornou a iluminar o ambiente... e a presença de Kirinak ainda prostrada diante do altar, como uma estátua penitente, o fez crer estar bem desperto.

O druida pôde, desta vez, ater-se a certo detalhe: pendia do pescoço da jovem um pingente que, ainda que não pudesse ter seu material identificado, possuía claramente o formato de uma espada cuja lâmina se encontrava voltada para o solo. Não havia dúvida: a impetuosa garota era devota do deus caído Swordanimus.

O silencioso observador não sabia bem como reagir. Talvez devesse se retirar despercebido e guardar aquele segredo para si, revelando-o depois ao resto do grupo ou confrontando Kirinak quando fosse oportuno. Porém, não sabia se algo que poderia botar a vida de si e os demais em risco deveria ser assimilado sem serem tomadas providências imediatas. Não era todo dia que se viajava em companhia de uma adoradora do Senhor da Espada, afinal, que tanta desgraça trouxera ao mundo.

Ainda incerto sobre como proceder, Rosengard permaneceu de pé junto à entrada, encarando o vazio... quando sentiu algo resvalar em suas pernas. Pêlos. Novo clarão, e viu Anuk adentrando a sala, já a alguns passos à sua frente. Desobedecera seu comando e agora avançava devagar na direção da clériga, pé ante pé, como se estivesse acuado.

Caleb viu-se aturdido. Tentou concentrar-se para chamar o amigo animal de volta até si sem o uso de palavras, porém era tarde: visivelmente atordoado diante do altar e da suplicante, o lobo emitiu angustiante uivo, fazendo Kirinak saltar de susto e cair sentada sobre o chão. Um outro raio tornou a clarear o recinto, permitindo à moça visualizar o druida e a fera. Não se levantou do solo. Permaneceu com as mãos nele apoiadas fitando uma parede, corpo aparentemente trêmulo.

Vendo que não havia mais como esconder, Rosengard fez-se ouvir:

- Então era isso que tentava ocultar de nós?

- E-eu...

A garota via-se claramente com dificuldades em se expressar. Apesar da constrangedora situação para ambos os lados, Caleb tentou ser de auxílio:

- Não se preocupe em falar, seu ato já me fez entender.

- Você vai contar aos outros? – e o druida agradeceu aos deuses pela penumbra não permitir que enxergasse o semblante de desespero da jovem.

- Não. Ao menos não agora. Essa sua crença não nos causou ainda nenhum tipo de mal. Mas, caso venha a causar, terei de revelar tudo.

- E por que minha fé causaria mal? – a voz de Kirinak possuía inesperado tom de desafio.

Rosengard bufou. Ou aquela moça era muito ingênua – fosse por sua adoração cega ao deus, fosse por julgamento próprio – ou era bem dissimulada. Talvez um misto dos dois, ponderou, dado o pouco que sabiam a respeito dela. Ele não desejava conflito, mas então sua mente tornou a perturbá-lo com lembranças do sonho premonitório meses antes. A aura vermelha que provinha supostamente daquela mesma garota. Algo vil, maligno. Sim, pelo visto ela ainda lhes faria mal, estando de algum modo envolvida com a tragédia a se abater sobre a Floresta Negra. Macker, uma fiel de Swordanimus... aos poucos as fragmentadas peças do enigma começavam a fazer sentido juntas. Estremeceu. E, tentando ocultar seu temor, Caleb resolveu ser mais duro:

- Não vejo como a crença no deus caído poderia ser fonte de bem.

- Swordanimus é injustiçado! – ela explodiu, ainda oculta pela escuridão. – Todos o vêem como fonte de destruição e mal, mas ele foi o único que se colocou do lado de nós mortais quando os deuses quiseram nos punir! Permaneceu amparando seus seguidores enquanto Northar e os outros enviavam fogo do céu! Cresci num santuário sendo obrigada a adorar Wella e seguir um monte de preceitos que só me fizeram sofrer! Obrigaram-me a viver uma vida que não era minha! Apenas Swordanimus me compreendia em minhas orações. Assim como ele, minha existência também foi sempre injustiçada. Só eu o entendo, e só ele me entende!

- Acha que os seguidores de Swordanimus terem perseguido e matado tantas pessoas que recusaram a se converter a ele torna esse deus injustiçado? Ou seria ele, na verdade, o grande causador de injustiça?

Kirinak abriu a boca para rebater, mas foi interrompida por uma estranha sucessão de sons. Em meio à chuva que ainda caía com força do lado de fora, somaram-se o relinchar de cavalos e uma confusa gritaria. Além dos berros, distinguia-se em alguns momentos gargalhadas carregadas de zombaria. Sob a luz de mais um raio, a clériga e o druida se entreolharam: torciam para que não se tratasse de soldados enviados de Tileade à procura deles.

No quarto escadas acima, os demais também despertaram com a agitação. A barulheira parecia provir de frente do palácio, tendo se aproximado pela ponte pouco antes e agora ali se mantendo já há alguns minutos. Lisah mandou que sua loba permanecesse quieta enquanto, munida de suas espadas, mantinha-se em posição cautelosa junto a um dos batentes da porta que levava à sacada. A plataforma encontrava-se logo acima da entrada da construção abandonada e, se conseguisse espionar o exterior sem ser percebida, poderia facilmente averiguar o que acontecia.

Hachiko, armando-se com seu arco, procurava ignorar a dor ainda causada pelos ferimentos acumulados durante o dia e também se instalava numa posição defensiva próxima à varanda. Trocou um olhar com a outra elfa, os ouvidos de ambas se esforçando para compreender o que era dito pelos recém-chegados por entre a sinfonia contínua da tempestade. O que mais puderam escutar, porém, foram risadas.

Súbito, a porta do recinto que conduzia aos corredores do palácio foi aberta. A arqueira apontou instintivamente a arma para quem quer que estivesse chegando... constatando serem Caleb e Kirinak. Tomando cuidado com o fio da armadilha de Lisah, eles se reuniram aos companheiros causando o mínimo possível de ruído. Apoiaram-se de costas para a parede que os separava da sacada. O druida inquiriu:

- Quem são eles?

- Não sabemos ainda... – a elfa morena respondeu sussurrando. – Mas, apesar de rirem, não os julgo muito amistosos.

Nenhum deles, na verdade, os julgava assim.

Extremamente cautelosa, Lisah encostou-se a uma das seções da porta da sacada, empurrando-a lentamente com as costas. Abrindo assim uma pequena fresta para o exterior, sentiu a umidade da chuva contra sua pele, numa súbita e cortante pontada de frio. O som das risadas tornou-se mais alto, assim como o trotar dos animais. Beneficiando-se do fato de poder ver no escuro, a elfa passou a examinar os inesperados visitantes...

Tratava-se de três cavaleiros encapuzados, suas silhuetas negras delineadas pelos pingos da tempestade e os clarões dos raios. Ainda gargalhando e soltando berros desconexos, deixavam claro seu estado de embriaguez. Mesmo com as condições físicas tão adversas e a instabilidade gerada pela bebida, conseguiam manter firmes as mãos nas rédeas de suas montarias, que relinchavam encharcadas enquanto eram obrigadas a galopar em círculo diante da entrada do palácio. O estranho comportamento daqueles indivíduos poderia ser explicado como uma tentativa de se exibirem ou demarcar território; mas, a julgar pelo modo como estavam e o faziam, dava-se por completo a esmo. A situação pareceu ainda mais estranha quando Lisah pôde identificar parte de seus trajes, sob as capas que usavam: uniformes da guarda de Tileade.

Olhou mais. Ignorando a sutil observadora, o trio de ébrios cavaleiros continuava em sua rota fixa. Notou um detalhe a mais: um deles carregava logo atrás de si, sobre o cavalo, um saco de estopa surrado. Talvez aquilo pudesse ter passado despercebido, como uma trouxa de roupas, mantimentos ou coisa similar... se o invólucro não houvesse de súbito saltado sobre o lombo do animal e por pouco não caído de cima do mesmo. Tinha tamanho razoável, podendo conter um porco, um cachorro... ou talvez até um humanóide.

Súbito, o cavaleiro trazendo o saco, num berro, atirou-o de forma brusca para o centro da roda, o trio continuando a galopar em torno dele... enquanto seus componentes apanhavam finas e compridas varas de madeira que traziam até então presas às costas e, brandindo-as, metiam pancadas no que quer que estivesse dentro do recipiente. A coisa se debatia, pulava pelo solo encharcado, tentando em vão se libertar; e os cavaleiros, em sua inconseqüente crueldade, continuavam golpeando-a por todos os lados, como se dessem uma surra num gato ou algum outro animal indefeso.

Lisah franziu o cenho. Já vivera o bastante para ter certeza, mas aquela cena só comprovava, mais uma vez, que o preconceito dos elfos de Astar para com os humanos possuía muitas vezes sólido fundamento. Só esperava que, ao invés de um bicho, não estivesse no interior daquele saco uma criança...

Dentro do quarto, Kiche gania baixinho, como se percebesse o ato condenável ocorrendo do lado de fora. Já Anuk corria inquieto pelo recinto, contido como podia pelo druida para que não revelasse aos estranhos sua presença. Caleb temia não poder segurar seu companheiro por mais muito tempo, já que a ligação entre os dois permitia ao lobo sentir o inconformismo do rapaz com a situação... Mas, felizmente, os homens retornaram pela ponte pouco depois, ainda gargalhando sem parar e não aparentando se importar nem um pouco com a chuva. Haviam deixado para trás, em meio a uma poça de lama na frente da entrada do palácio, o saco de estopa, agora inerte. Talvez já houvesse ocorrido o pior, mas eles tinham de saber. Kirinak, ainda assustada por ter sido pega de surpresa na capela, era agora tomada por estranho pressentimento. Hachiko avançou até a varanda, assumindo posição defensiva com o arco e varrendo os arredores com sua visão élfica. Não havia mais sinal de ameaça, e daquela altura ela poderia sem problemas cravar uma flecha no peito de alguém que representasse qualquer perigo a uma boa distância.

Lisah movimentou-se, compreendendo o recado. Era, por certo, a mais preocupada com o que estaria dentro do saco. Chamando sua loba com um gesto, avisou, enquanto deixava o dormitório:

- Vou lá checar. Volto logo.

A tempestade ainda caía sem trégua. A elfa de cabelos negros desceu pelas escadas e transpôs os vários corredores e salas até a porta principal do palácio de modo mais rápido do que imaginara. Ao atingir o vestíbulo, ordenou que Kiche a aguardasse. Sempre obediente, a loba sentou-se e observou a dona abrir lentamente uma das seções de madeira da entrada, o som da chuva tornando-se mais intenso. Foi sem medo de se molhar que a elfa ganhou o exterior, prosseguindo abaixada na direção da poça de lama com as mãos prontas para sacar suas duas espadas, se necessário.

Da sacada, Hachiko assistiu às ações de Lisah. Esta se deteve junto ao saco de estopa e, antes de mais nada, tateou-o demoradamente com os dedos. A única umidade do invólucro parecia ser causada pela água, não havendo assim, felizmente, indícios de sangue. A boca do recipiente fora costurada repetidas vezes, precisando a elfa, desse modo, forçar uma abertura com o corte de um de seus sabres. Assim rasgou-o e, logo que o conteúdo foi exposto ao esparso brilho da noite, um raio iluminou-o com mais clareza: o rosto do bardo Killyk Eleniak, tão inchado e vermelho quanto uma manga de Kartan. Encontrava-se inconsciente e, por ironia, com um sorriso fixo nos lábios. Lisah tateou-lhe agora o corpo: apesar das roupas rasgadas e encharcadas cobrindo manchas escuras de pancadas, inexistiam ossos quebrados ou fraturas graves. Ainda que desastrado, aquele elfo era um indivíduo de sorte. Mas, mordendo os lábios por um momento, ela perguntou-se se ele retornar ao grupo não seria na verdade sinal de azar...

Tomou-o nos braços ainda semi-envolto pelo saco – este aparentando, àquele momento, algo similar a um cobertor miserável – e conduziu-o sem pressa ao interior do palácio. Hachiko ainda permaneceu alerta na varanda por alguns instantes, temendo algum ataque traiçoeiro, e por fim também se recolheu.

Se soubesse que, ao despertar, seria acometido de tantas dores, Killyk teria optado por permanecer para sempre adormecido. O sono eterno dos ébrios e dos mortos, os quais entre si não possuíam muita diferença, podendo ser prolongados em infinitas torrentes de prazer ou sofrimento – como dizia Kirnit. Mas, agora acordado, sentia cada polegada de seu corpo latejar como carvão num braseiro. Se não bastasse a dor das pancadas e dos solavancos no lombo do cavalo, havia a ressaca. Alguns poderiam pensar que, devido à sua resistência às doenças, os elfos pouco sentissem os efeitos da bebida, porém a realidade era contrária: quanto mais puro e incólume o organismo em que penetrasse o álcool, pior era o efeito. E o licor sorvido por Eleniak em Tileade estava longe de se parecer com os vinhos de mel ou cervejas de orvalho tão populares em Astar, e prazerosas a seu povo: tendo o sangue cheio daquela forte mistura conhecida como “Tritão Azul”, era como se houvesse sido contaminado com algo pior que veneno. Os lábios secos, juntas enfraquecidas e sede imensa só vinham piorar-lhe o sofrimento. Jurara a si mesmo, a partir de então, jamais provar algo que não viesse de adegas élficas.

Se não bastasse o flagelo interno, havia o externo: frio, muito frio. Sabia que não ficaria doente devido àquilo, porém seu frágil estado contribuía para que sentisse as intempéries da natureza com dobrada intensidade, como se ela quisesse puni-lo por sua insensatez. Wella podia mostrar-se muito pouco afável, às vezes. Sentado numa velha cadeira dentro do quarto que pertencera a um rei amaldiçoado, Killyk, após ser informado pelos anteriores companheiros a respeito de tudo que haviam vivido em sua ausência, tinha os pés agora metidos numa bacia de água quente enquanto dois ou três cobertores esfarrapados envolviam-lhe as coloridas vestes em pior estado. Precisava, urgentemente, de roupas novas. E tudo aquilo por certo não serviria de inspiração para uma canção das mais felizes.

- Você não se lembra do que aconteceu, Killyk? – Lisah perguntou assim que sua condição apresentou certa melhora, mas fazendo-o pesaroso por constatar atrapalhar o sono dos amigos.

- Em partes... – era certo que o álcool bagunçara, não pouco, suas memórias. – Lembro-me de que me deixaram para trás, não sem razão... E que vocês realmente não retornaram da busca pela procurada. À noitinha creio que me jogaram numa cela... mas, ao descobrirem serem eu um artista, resolveram me libertar momentaneamente para algum tipo de festa que os soldados faziam...

- Festa? – Caleb estranhou.

As recordações aos poucos se tornavam mais nítidas, ao preço de uma incômoda dor de cabeça:

- Para comemorar o aniversário do chefe da guarda. Uma feliz coincidência para mim. Acontece que, devido a ainda me encontrar trôpego sob os efeitos da bebida... acabei compondo versos que não agradaram muito ao comandante. E ele me entregou aos cuidados de um trio de guardas bêbados, ordenando que me ensinassem uma lição...

- Acho que o resto nós já sabemos... – sorriu ironicamente Hachiko.

A verdade era que nem mesmo Killyk sabia ao certo. Aqueles fatos podiam ter mesmo acontecido, ou sua mente apenas o enganava com memórias falsas que sua rica imaginação havia produzido. Se fossem mesmo reais, daria tudo para poder se recordar da canção que fizera ao aniversariante. Seria ótimo material para um poema satírico, gênero em que não costumava ser muito bom quando sóbrio.

- É o mínimo que mereceu por ter me delatado! – afirmou Kirinak, bastante incomodada com a presença do elfo. – Onde estava com a cabeça quando disse aquilo ao taverneiro?

- Ele estava com a cabeça cheia de licor, minha cara... – suspirou Lisah, revirando os olhos.

- Não me importa! Não concordo com esse sujeito andando de novo conosco! Pode nos trazer mais problemas!

Mas, sob um olhar severo de Rosengard, a clériga se calou. Ela já tinha, na verdade, mais problemas do que pensara. E estes ainda aumentariam quando o druida resolvesse contar aos demais o que vira enquanto dormiam...

Súbito, como se as rudes palavras da fugitiva houvessem despertado algo em si, Killyk estremeceu. Apalpou rapidamente o corpo do pescoço aos pés, agitado. Por fim, fazendo uma careta, levou uma das mãos às costas e retirou algo até então comprimido entre elas e sua roupa: a harpa que o pai lhe deixara... agora uma mera sombra do que um dia fora. O dourado dos contornos fora substituído pelo escuro marrom da lama, as jóias antes brilhantes agora totalmente opacas sob camadas e camadas de imundície. As cordas do instrumento, com exceção de uma ou duas, encontravam-se todas arrebentadas. Algo digno de pena, que encheu os olhos do bardo de lágrimas... Mas, quando ele colocou a peça no chão e continuou tateando-se preocupado em busca de algo, os outros deduziram que não era só aquilo que ele temia haver perdido...

A busca terminou quando a mão direita de Eleniak revelou, entre os dedos trêmulos, um resto de papel totalmente molhado e rasgado, a matéria úmida ainda ostentando alguns resquícios de letras agora ilegíveis. Logo os destroços do que parecia outrora uma carta foram molhados ainda mais, agora pela água que despencava pelo rosto amargurado do artista. Ele aparentava se recusar a aceitar a realidade, embora a mesma se encontrasse ali, palpável.

- Arruinado... – murmurou baixinho, olhos arregalados e tronco aos soluços. – Está arruinado!

- O quê? – inquiriu Lisah, compadecendo-se do rapaz. – O que era esse papel?

- O poema! – ele replicou, inconsolável. – O poema que eu havia redigido para o novo rei de Behatar, e que pretendia declamar em sua coroação! O primeiro grande passo em minha jornada para trazer alegria a este mundo devastado! Eu perdi o poema, o presente ao rei, perdi! Foi para isso que vim até este continente. Falhei na missão que foi dada por meu pai. Fracassei com ele e com todos! Fracassei...

Killyk cobriu a face com as mãos e pôs-se a chorar com mais intensidade. Até mesmo a emburrada Kirinak demonstrou, por um momento, estar afetada pelo infortúnio do bardo. Aquilo significava tanto para si que até a relíquia paterna arruinada, a seus pés, parecia não importar muito. Madrugada adentro, o pranto do elfo fez-se tão alto que quase abafou o contínuo barulho da chuva.

Horas foram necessárias para que o consolo dos demais tranqüilizasse Eleniak, possibilitando que repousasse. Quando conseguiram, todos estavam exaustos – até mesmo as elfas, que pouco dormiam. Acomodaram-se como puderam no quarto mofado, retornando aos seus leitos originais enquanto Killyk se alojara num nicho próximo à varanda, não se importando com o chão duro. Após horas se chocando contra o lombo de um cavalo, aquela superfície fixa lhe parecia melhor que a mais macia das camas.

Rosengard encontrava novamente, porém, dificuldades para dormir. O flagrante na capela e a associação com seu sonho não lhe permitiam que a mente se acalmasse. Afinal de contas, qual era o segredo de Kirinak? Teria alguma relação direta com o tal Macker, por certo o mesmo citado no relato do rei morto? E por que o incêndio na Floresta Negra era culpa dele? Algum ardil de Swordanimus? Quando o druida achava já estar chegando à solução do mistério, se via ainda perdido entre peças e mais peças desconexas. E como aquilo o incomodava!

Tinha certeza, apenas, que o atual estado das coisas conduzia ao pleno cumprimento de sua visão, já que Killyk, o elfo nela visto, voltara para junto do grupo. Algumas vezes chegava a ser até um pouco assustador, para Caleb, como os deuses teciam o destino dos mortais...

Respirando pesadamente, julgava-se aos poucos relaxando os nervos para logo adormecer, quando um estranho som rompeu pelo quarto, sendo ouvido, aparentemente, apenas por si:

CROA, CROA!

Ergueu a cabeça, coração por algum motivo batendo rápido. Viera da sacada. Através da porta que a ela conduzia, tendo permanecido aberta, ele viu, empoleirada no beiral, uma ave negra como a noite. Sua silhueta era perfeitamente nítida em contraponto ao tom azulado da cortina de chuva que ainda se precipitava, as penas arrepiadas e o bico parecendo tão afiado quanto um gume de adaga. Um corvo, grasnando para o nada. Não. Grasnando para Caleb.

Os olhos escuros do pássaro se voltaram para o druida e, por uma partícula de instante, ele julgou terem assumido tom vermelho como sangue. Encarar aquela criatura causou-lhe espasmos no estômago, quase ânsia. Tremeu. Aquele animal não podia ser obra da natureza. Era algo diferente. Algo perverso.

Ainda grasnando, o corvo de repente ergueu vôo e desapareceu na madrugada, como se no instante seguinte desse a Rosengard a impressão de jamais ter estado ali, não passando de delírio de sua mente. Mas ele estivera. E servira como aviso.

Para desvendar o enigma de seu sonho, Caleb fitaria o próprio mal nos olhos.

A manhã raiou e a tempestade se desfez, mas o astro de Northar deslocou-se uma boa distância pelo céu antes de os aventureiros, fustigados pelos acontecimentos da noite, acordarem. Quando o fizeram, foram quase todos ao mesmo tempo. E passava do meio-dia.

Bocejos se abriram, membros se espreguiçaram e estômagos roncaram – principalmente o de Killyk, há muito vazio e maltratado pela bebida. O grupo fez uso das provisões que lhes restavam para saborear simples, porém suficiente, café da manhã. Terminando, fizeram questão de explorar o castelo uma última vez, antes de seguirem viagem. Talvez houvesse ainda algo útil que não haviam encontrado. Quanto a continuar até a capital, Eleniak foi convencido a tentar elaborar novo poema ao rei pelo caminho, ainda que discordasse ser possível. Segundo ele, sua inspiração para o texto fora única e nenhum outro conseguiria se equiparar ao mesmo. Coisa de artista, pensou a maioria. Frescura, pensou Kirinak. Começava a achar terem sido os soldados de Tileade muito bondosos com o bardo: deviam ter atirado o saco ao rio, ao invés de uma poça de lama...

Averiguando o segundo andar, constataram que o bordão de Caleb e as cordas de Lisah haviam sido mantidas intactas durante a noite, selando a porta da sala onde presumivelmente havia bom número de goblinóides. Nenhum ruído provinha do outro lado, e os viajantes, dotados agora de maior confiança e menor cansaço, resolveram averiguar o que havia ali. Encontraram uma sala de reuniões similar à antes explorada no subsolo, porém mais simples, ainda que também dotada de uma grande mesa. Não viram nenhum goblin... mas, assim que a porta se abriu, sombras esguias de felinos puderam ser avistadas correndo para detrás dos móveis e através das janelas. Uma extensa ninhada de gatos – verdadeiro motivo do rosnar dos lobos no dia anterior. Seus donos riram. E continuaram a checar os cômodos junto com os outros.

Antes de retornarem ao piso inferior, se depararam com a porta de ferro que haviam sido incapazes de abrir. Cederam espaço para Eleniak, o qual disse ser capaz de transpô-la. Deteve-se por alguns instantes diante da tranca com o emblema de alaúde e, antes que alguém pudesse colocá-lo em dúvida, liberou o caminho como se fosse uma das coisas mais simples que já fizera. Todos se perguntaram sobre a razão de o elfo sair-se tão bem na tarefa; mas, assim que adentraram o recinto, entenderam.

A sala em forma de “U”, abraçando o final do corredor, assemelhava-se a um depósito – no entanto nada convencional. Praticamente intactas, várias prateleiras enfileiradas continham objetos que tornariam qualquer criança a mais feliz daquele mundo: bonecos de pano com vestes rendadas, marionetes de madeira lindamente esculpidas, instrumentos musicais dos mais variados tipos – entre os quais violas, alaúdes, pandeiros, harpas, flautas e tambores, máscaras monocromáticas de teatro e coloridas de baile, fantasias de festa, instrumentos de mágica como baralhos e caixas, partituras de melodias famosas...

- A antiga sala do bobo da corte – explicou Killyk. – Presente nos palácios ou castelos de qualquer soberano que possua um mínimo de bom humor ou apreço pela arte. As trancas geralmente têm duas ou três combinações mais conhecidas para serem abertas. Segredo de bardo.

Todos se puseram a observar o rico conteúdo do lugar, ainda que apenas o elfo e Kirinak estivessem realmente interessados em levar algo dali – o primeiro por seu ofício, a segunda pelos cacarecos. Eleniak, que já havia limpado sua harpa, logo encontrou cordas sobressalentes e trocou as partidas, deixando o instrumento quase novo. Obteve nova vestimenta também, trajando-se com as roupas menos espalhafatosas que encontrou – e ainda assim bem chamativas. A clériga fugida, por sua vez, ocupou-se em forrar os bolsos com uma série de pequenos saquinhos onde antes devia ser guardado pó de mico ou pó brilhante, com objetivos que passaram obscuros aos demais. Até mesmo Caleb, por um momento, rendeu-se aos encantos joviais do ambiente e apanhou algo de uma das prateleiras, num retinir metálico...

- Guizos? – surpreendeu-se Hachiko, notando do que o druida se munia. – Para que usará isso?

- Nunca se sabe – ele respondeu, guardando os pequenos artefatos barulhentos em suas coisas. – Mas acredito estar aprendendo com Kirinak.

Pegou também uma marionete representando um rei de coroa dourada, barba branca e túnica vermelha – desmontando-a junto com as cordas para que pudesse carregá-la. Não sabia mais dizer se os deuses sussurravam em seus ouvidos para levar aquilo, ou se simplesmente começava a enlouquecer.

Terminada a visita ao acervo do bobo da corte, a exploração do palácio prosseguiu, excetuando-se o subsolo – que o grupo ainda considerava perigoso. Nada mais foi encontrado de útil e, sob o sol vespertino que afastava as nuvens nubladas, eles seguiram viagem.

O quinteto deixou o palácio num cenário de céu azul e águas do rio tranqüilas. Contornando a decrépita construção, seus integrantes se depararam com o que existia atrás dela, do outro lado da ilha fluvial: duas outras pontes de pedra e alvenaria, ligando o pedaço de terra à margem norte. Ambas eram um pouco mais curtas que a travessia conduzindo ao sul, porém igualmente requeriam alguns minutos para serem transpostas. Poderiam fazê-lo, entretanto, somente através de uma delas: a primeira, da esquerda, encontrava-se praticamente incólume, oferecendo trajeto seguro sobre a torrente. Já a segunda, da direita, possuía apenas os primeiros metros de percurso de cada lado, a extensão central do caminho agora inexistindo, provavelmente levada pela fúria das mesmas águas que alagaram o palácio durante o Crepúsculo dos Deuses.

Desprovidos de outra opção que não fosse recuar pela primeira ponte e atravessar o rio em outro ponto – algo sugerido por Kirinak e sumariamente recusado – os cinco avançaram pela travessia disponível, seus ouvidos se distraindo com o correr do curso sob seus pés e, mais tarde, pelo cantar dos passarinhos nas árvores da margem logo adiante. Verdadeira fonte de relaxamento após uma noite tão tensa.

Cerca de meia hora após terem deixado a ilha, já caminhavam em solo contínuo novamente. A estrada de calçamento de pedra, dividida entre as duas pontes sobre o rio, unira-se novamente e avançava por uma ravina com crescentes formações florestais de ambos os lados. Até que, após alguma distância e com o sol começando a anunciar o entardecer, a mata praticamente engoliu o trajeto – os troncos, galhos e ramos das árvores projetando-se sobre os viajantes como se quisessem envolvê-los e tragá-los para o meio das plantas. Caleb, todavia, não sentia hostilidade por parte da natureza ali. A vegetação só recobrava seu espaço de direito tomado pela antiga estrada dos imperadores, e a vida animal que os circundava também não parecia querer prejudicá-los.

O firmamento enferrujou-se mais e mais, como a espada de um guerreiro morto esquecida no campo de batalha, e nada de a floresta se abrir. Teriam, pelo visto, de passar a noite acampando em pleno caminho, mantendo os olhos abertos para possíveis salteadores ou outras ameaças.

Detiveram-se algum tempo depois do sol ter se escondido por completo. Em meio à estrada rodeada por árvores antigas e frondosas e ao piar das primeiras corujas, sentaram-se à beira do caminho, amparados pelas moitas. Bocejos de sono e estalos de juntas predominaram, enquanto cada um dos aventureiros, esfomeados, verificava suas provisões... Os sacos e trouxas vazios deixaram clara a incômoda realidade:

- A comida acabou! – Rosengard decretou sério.

Todos se entreolharam, com semblantes que transitavam entre o entusiasmo e a preocupação: teriam, para se alimentar, de empreender uma das atividades mais antigas dos mortais: a caça.

Uma das que aparentaram se empolgar com a idéia foi Hachiko. Com seus cabelos prateados brilhando sob o brilho do luar e das estrelas, começou a preparar algumas flechas de sua aljava. Lisah trouxe à pouca luz suas espadas e limpou-as mais uma vez, removendo um pouco do sangue goblin que ainda manchava as lâminas élficas. Não parecia propriamente animada com a idéia de caçar, porém sua face tampouco demonstrava incômodo, a tatuagem da lua minguante em sua testa denotando determinação – e sua loba com certeza seria de bela ajuda. Killyk entrou para o time dos deslocados: sentando-se numa pedra, observou os companheiros se prepararem sem saber ao certo como agir. Kirinak possuía armas e apetrechos, mas igualmente não manifestou intenção de se embrenhar na mata, cruzando os braços e encostando-se ao tronco de um pinheiro. Já Caleb, tranqüilo, fazia desenhos com a ponta inferior do bordão no solo de terra logo ao lado da estrada, murmurando com a cabeça baixa:

- Abatam apenas um animal, o necessário para matarmos a fome. Não se deve tirar demais da natureza.

Já munidas, Hachiko e Lisah adentraram a floresta, movendo-se sorrateiramente para que seus passos sobre a relva e entre os arbustos causassem o mínimo possível de som. Kiche caminhava logo atrás da dona, entendendo o recado. Suas silhuetas já desapareciam na paisagem noturna quando o druida as seguiu, batendo contra o chão com o cajado como se pudesse brotar dele comida, Anuk acompanhando-o. Deixados para trás, Killyk e Kirinak se entreolharam de soslaio por alguns instantes, de modo que um tentava ocultar do outro o fato de se observarem... até que, subitamente, a clériga sacou uma faca Kukri – que já trazia antes consigo ou havia sido então obtida de algum modo de um dos goblinóides ou aposentos no palácio – e avançou na mesma direção tomada pelos demais. Um desconcertado Eleniak, por sua vez, apanhou dos trajes pertencentes ao antigo bobo da corte um punhal de lâmina fina e curta. Olhando-o com desalento, também penetrou na floresta.

As folhas e grama no chão farfalhavam conforme andavam, nenhum dos dois estando habituado àquele tipo de terreno. Apesar de o bardo ter vivido na Astar de extensas matas e Kirinak ter se deslocado por grande distância em sua fuga, encontravam-se mais habituados a estradas de terra ou pedra. Tentar ser discreto num lugar como aquele era, para eles, o mesmo que tentar esconder um javali dentro de uma bainha de adaga.

A clériga, sendo humana, tinha sérias dificuldades em ver no escuro. Deixou logo que Killyk se pusesse à sua frente e guiasse seus passos rumo aos outros. O fato de estes serem melhores em se ocultar prejudicava a busca. Se ao menos houvessem partido no mesmo momento que eles...

De repente, o rosnar de um lobo cortou o silêncio. Anuk ou Kiche. Teriam já encontrado caça?

A dupla de retardatários deixou de se mover para ouvir melhor. Ao som da fera seguiu-se algo como um assovio. Grilos também eram escutados de forma constante ao redor. Se pudessem parar ao menos por um instante...

- Já esteve no coração de uma floresta antes? – Killyk perguntou subitamente à garota em voz baixa, quase num sussurro.

- Não, não que eu me lembre... – ela respondeu um tanto temerosa, olhando em volta.

A jovem encarou as grandes raízes das árvores mais antigas e suas vastas copas eclipsando o céu, as espessas moitas de galhos repletos de espinhos – alguns mais afiados que lanças, a relva que em algum ponto chegava até os joelhos... e sentiu-se apreensiva como poucas vezes em sua existência. De súbito lhe pareceu que aquela floresta toda compunha uma imensa armadilha, destinada a apanhar e até causar a morte de indivíduos pouco preparados, como ela e o bardo que tinha a língua bem maior que a coragem. Engoliu seco, enquanto ouvia vozes abafadas ao longe.

- Serão eles? – Eleniak indagou ao vazio.

Veio um outro som. Estranho. Aparentava ser algo como uma mistura de rosnado canino e... risada. Com certeza não provinha dos lobos do grupo. A origem daquele era outra.

Seus corações palpitavam velozes. Os olhos vistoriaram ao redor, aflitos. Apesar de ainda não terem identificado o que era, deduziram ser algo perigoso. A mata ao redor se agitou, os arbustos tremendo e o barulho de grama sendo pisada se misturando ao crescente coro de estranhas gargalhadas. Então viram.

Surgiram um por um, de todos os lados, até somarem quatro. Seres de porte humanóide, corcundas, não ultrapassando um metro e meio em altura. Os corpos eram cobertos por peças de armaduras contrastantes entre si, deixando claro terem sido fruto de pilhagem. O estado de conservação era péssimo, com evidentes sinais de ferrugem e avarias diversas. Mas seu aspecto físico, porém, era por certo neles o mais inusitado: bípedes, com a pele salpicada de pintas negras coberta por pêlos de tom marrom e cinzento. Braços e mãos humanos de cinco dedos, patas caninas com garras ao invés de pernas... e a cabeça tendo orelhas largas, pontudas e com pedaços faltando, focinhos descascados e bocas repletas de dentes afiados, babando em profusão. Pareciam cabeças de lobo, porém os dois viajantes encurralados sabiam especificamente a que animal pertenciam... hienas. Homens-hiena, portando machados de cabo de madeira com lâminas toscas e maças metálicas amassadas e disformes. A raça de saqueadores conhecida como “gnolls”, olhos ferinos brilhando num amarelo ameaçador.

Com seu riso-rosnado gelando as espinhas da dupla, investiram contra ela.

O bandido mais próximo tentou atingir Kirinak no peito com sua maça, correndo desajeitado. A clériga fugida aproveitou-se da postura deficiente do inimigo para abaixar-se, conseguindo se esquivar do ataque... e agarrando o cabo da Kukri firmemente com ambas as mãos na esperança de revidar. Killyk também foi fustigado por um dos salteadores, que tentou cortá-lo num dos braços com o machado precário... apenas para a lâmina do mesmo se desprender da haste e ir voar para trás de um arbusto, a criatura permanecendo apenas com o cabo na mão sem entender de imediato o que ocorrera. Movido pelo medo, o bardo tentou contra-atacar empunhando a adaga contra o peitoral do oponente, mas o fez de mal-jeito, e o gume da arma apenas resvalou na armadura, tilintando enquanto seu portador tropeçava e caía de cara na grama.

A clériga viu de relance o que aconteceu ao colega, porém tinha de se desvencilhar dos outros três adversários. Girou a Kukri num semicírculo pelo ar, olhos fechados – na esperança de romper metal, carne, pêlo ou o que fosse. Os gnolls, de inteligência tarda, recuaram num salto, já se reorganizando para novo assédio. Killyk, por sua vez, continuava tentando apunhalar o ladrão restante, errando, enquanto este procurava revidar lutando somente com a haste do machado, usando-o como porrete. O bastão era pequeno e fraco, mas seu dono logo resolveu usá-lo como lança, dando uma estocada contra uma das axilas desprotegidas do elfo. O golpe teria causado mais estrago se o instrumento possuísse ponta, todavia a dor foi suficiente para fazer o artista soltar a adaga. A faca veio ao solo num estalido, enquanto o homem-hiena preparava mais um ataque.

Kirinak, sem nem saber ao certo como, logrou abrir um talho no ombro esquerdo do gnoll que primeiro investira contra si, embora não conseguisse tirar a maça de suas mãos. Ele reagiu, fazendo a bola de espinhos singrar o ar uma, duas vezes... a jovem escapando ao recuar de costas... apenas para dar de encontro com outro dos bandidos, pronto para decapitar-lhe com um rasante do machado. Tão rápido quanto seus sentidos permitiam e seus membros cooperavam, a clériga se jogou ao chão, passando por baixo das pequenas pernas do agressor que ainda concluía o golpe acima de si, cortando nada agora além de vento. Pondo-se de pé atrás dele, a clériga chutou-lhe o traseiro, fazendo-o saltar uivando enquanto dirigia a Kukri contra outro inimigo próximo.

O bardo via-se em apuros com seu oponente. Outra estocada, agora na barriga, arrancou-lhe sangue, que tingiu ligeiramente a túnica colorida. Investiu de novo com o punhal, ofegante... afundando-o no nada. Apesar de burro, o gnoll era veloz. O peso da harpa junto às suas coisas prejudicava-lhe mais os movimentos do que a dor dos ferimentos da noite anterior, e só então o artista se deu conta. Apanhou o instrumento musical, envolvido num saco, e atirou-o ao solo. Além de torná-lo mais leve, a ação distraiu o saqueador. Enquanto olhava para baixo, Killyk esfaqueou-o na barriga. O adversário ganiu num som que parecia um riso triste, sangue escuro tingindo as mãos do elfo. Retirou a arma e impeliu-a novamente. Mais líquido jorrou, e o gnoll caiu agonizante. Eleniak voltou-se para o trio que ainda combatia Kirinak, incerto se poderia repetir com eles o feito. De qualquer modo, aproximou-se, esperando por uma brecha.

O mesmo gnoll antes chutado nos fundilhos avançou ferozmente sobre a clériga. Tentou abocanhar-lhe o braço direito com os dentes... e, quando ela o moveu para desviar-se, acabou por soltar a Kukri, que caiu com a ponta fincada no chão. Desarmada, a garota rolou para escapar dos outros dois, enquanto levava as mãos desesperada ao monte de quinquilharias que carregava consigo. Súbito, seus dedos tatearam o cabo do que torceu para ser uma arma que ali colocara e já esquecera... mas eles não puxaram uma faca nem muito menos uma espada. Cercada pelo trio de homens-hiena, Kirinak viu-se somente com uma frigideira, retirada da cozinha do santuário de Wella antes de fugir, para se defender. Recuou até os pés de uma árvore com a panela erguida a lhe proteger o peito, terminando acuada entre o tronco e os gnolls. Já preparava uma manobra desesperada para fugir... quando um dos atacantes tombou de repente, uma flecha rompendo-lhe pela testa a partir da nuca.

Ela olhou por cima dos ombros dos outros dois: a alguma distância, Hachiko apontava o arco como uma verdadeira deusa da caça. A atenção da dupla remanescente de criaturas se voltou para ela, tendo partido correndo em sua direção para que não tornasse a disparar. Grave erro: de uma moita ao lado dos bandidos saltou uma figura trajando negro, ágil e leve como a brisa noturna, e tão mortífera quanto o próprio toque da morte. Lisah, que, manejando suas duas espadas, degolou rapidamente outro dos gnolls. Aquele que restava, vendo-se vencido, atirou o machado longe e partiu correndo na direção da mata, ansiando por salvar-se. De outro ponto do local, porém, surgiu Caleb, braços erguidos ao céu como num momento de prece... e enquanto o fugitivo se esgueirava por entre dois arbustos, as plantas começaram a se mexer como se houvessem criado consciência, seus ramos estendendo-se como cipós... enrolando-se em torno dos braços e patas do salteador de modo similar a serpentes. Tentando em vão se libertar, o homem-hiena acabou vindo ao chão, puxado pela força dos ramos mais espessos que cordas. O druida pronunciou palavras em voz baixa numa língua estranha, de forma parecida a quando conjurara a névoa em Tileade... e mais amarras naturais saltaram dos ciprestes, envolvendo todo o tórax do inimigo e parte de seu pescoço. Fixaram-no numa posição sentada, impedindo-lhe praticamente qualquer movimento. Debateu-se por vários instantes para se livrar, rosnando, porém por fim desistiu e abaixou a cabeça.

- Pela manhã o aperto dos cipós terá diminuído e ele conseguirá se libertar – afirmou Rosengard, batendo o bordão no solo com autoridade. – Poderá então fugir, tendo aprendido a lição.

Todos estavam impressionados diante do poder do druida, mas não se pronunciaram a respeito. Tomados pelo cansaço enquanto o furor da batalha pouco a pouco se esvaía, permaneceram imóveis e calados por alguns instantes, olhos se alternando entre os cadáveres dos gnolls... quando duas outras figuras caninas surgiram perto de um carvalho. Mas eram, felizmente, Anuk e Kiche. Tinham as mandíbulas banhadas em sangue, e aparentavam aguardar que os demais ali os acompanhassem.

Assim o fizeram, descobrindo logo em seguida, perto dali, o corpo inerte de um cervo, derrubado pelos dois lobos.

A fogueira crepitava viva na noite, lançando um brilho amarelo sobre as árvores e as lajotas da estrada. A carne do cervo assava sobre ela, cortada e presa a espetos. Killyk e Caleb haviam tido sorte em encontrar bastante lenha própria para o fogo, cortando-a por intermédio dos machados tortos que os gnolls haviam deixado. Acenderam-no ao lado do caminho, estando assim bastante visíveis a outros viajantes e talvez mais salteadores – mas não se importavam. O grupo que os atacara era parte das tribos errantes de goblinóides, orcs e outras criaturas que costumavam pilhar a região em torno das Terras Altas, prova viva de que há muito as estradas do reino não eram mais seguras. Nada, porém, com que não pudessem lidar e, depois da derrota que os primeiros meliantes haviam sofrido, por certo dariam trégua ao menos até o amanhecer.

Nos corpos abatidos, pouco haviam encontrado de útil. Algumas peças de ouro – que haviam sido divididas igualmente entre si, exceto Rosengard, que não via necessidade em carregar dinheiro – e víveres; mas as armas e trajes, comparados aos que possuíam, eram totalmente imprestáveis. Apenas Kirinak, em sua insaciável gana por coisas aparentemente inúteis, desmontara a couraça enferrujada de um dos gnolls mortos, carregando seus pedaços para lá e para cá sob a luz da fogueira. Esta dava às peças um aspecto dourado, remetendo a um imaginário revestimento de ouro – conferindo-lhes, assim, fugaz dignidade.

Haviam se acomodado sentando-se sobre pedras ou pedaços de troncos há muito partidos em torno do fogo. O druida, com o olhar perdido nas chamas, mantinha o cajado erguido numa mão enquanto com a outra afagava a cabeça de Anuk ao seu lado. O bardo também parecia um tanto aéreo, olhos fixos no céu ao mesmo tempo em que tamborilava os dedos sob o queixo. Lisah, com Kiche aos seus pés, limpava mais uma vez as espadas; e Hachiko, próxima, realizava procedimento similar ao verificar o estado de suas flechas. Apenas a clériga fugida permanecia inquieta, andando conforme organizava num canto uma pilha com o que encontrara de interessante nos cadáveres. Quase vencidos pela exaustão, todos ali, principalmente Caleb, começavam a se questionar sobre ter sido mesmo uma boa decisão ajudar a esconder a jovem das autoridades...

- Acho que já podemos comer... – afirmou a elfa de Kartan, guardando suas setas na aljava.

Os demais assentiram. Usando um punhal que trazia oculto em suas vestes, Lisah passou a cortar fatias da carne e distribuí-las aos companheiros. Os olhos de Killyk se detiveram, por um momento, na beleza da arma: o cabo talhado em prata possuía belas representações de símbolos élficos, a extremidade inferior terminando numa pequena esmeralda. Perguntou-se onde a elfa de cabelos negros o teria conseguido, e como.

A carne sem tempero desceu suculenta pelas gargantas dos esfomeados aventureiros. Para beber havia a água obtida de dois cantis trazidos pelos gnolls. Um tanto amarga, mas serviu. Alguns degustaram amoras e morangos encontrados nas proximidades como sobremesa, os demais a tendo dispensado por já estarem cheios. Sonolentos, deitaram em cima da relva, aguardando aquele que primeiro se ofereceria para fazer a guarda noturna. Só Kirinak permanecia inquieta. Depois de comer, continuou andando ao redor como se quisesse fazer algo e não conseguisse. Até que finalmente somou coragem e, pisando firme, rumou até onde Lisah descansava com sua loba.

- Eu ia pedir uma coisa... – oscilou a clériga, olhos no chão. – Mas não sei se será possível...

- Diga – assentiu a elfa, olhar sereno e calmo.

- Esses caminhos andam perigosos, estou sendo procurada... E acredito que este capuz não seja mais suficiente para me manter oculta, ainda mais depois do que aconteceu em Tileade... – e lançou um breve olhar rancoroso para Eleniak ao assim falar, sem que ele percebesse. – Será que você poderia... cortar os meus cabelos?

Lisah sorriu. Era uma medida inteligente para melhorar o disfarce da moça, e poderia fazê-lo facilmente com sua adaga, já que tinha certa experiência com aquilo. Respondeu, movendo a cabeça de forma afirmativa:

- Posso sim. Sente-se.

E deixou a pedra em que se acomodava até então, cedendo o lugar a Kirinak. Esta rapidamente instruiu a outra sobre como deveria aparar-lhe os fios: queria deixá-los bem curtos, de modo que não pudesse ser diferenciada de um garoto e conseguisse assim se passar, sem dificuldade, por um jovem escudeiro ou aprendiz de comerciante. Com as mãos hábeis e suaves de um branco intenso, a elfa de Astar passou a cumprir o que lhe foi pedido. Pouco a pouco, porções de cabelo castanho começaram a se precipitar sobre a pedra, grama e roupas da fugitiva, conforme o punhal deslizava – todos os demais, fartos e lentos, ignorando a mudança no aspecto da clériga.

Até que esta foi concluída – e eles, vendo, surpreenderam-se.

Não se podia dizer que Kirinak parecia-se propriamente com um homem. Os traços do rosto e alguns do corpo denotavam bem ser alguém do sexo feminino. Ficava mais difícil distinguir à distância, porém, e para a procurada isso já era lucro. Movendo-se rapidamente e sem expor muito sua figura, seria tomada facilmente por um cavalariço. Os cabelos curtos, no entanto, não lhe aparentaram suficientes para o disfarce: resoluta, avançou até os pedaços de armadura gnoll que coletara... e colocou-os com a ajuda de Lisah. A couraça não se adaptou bem ao seu corpo: o peitoral, menor do que deveria, apertava-lhe o tronco, e as seções dos braços lhe causavam comichão. Teimou, no entanto, e deitou-se para dormir sem tirá-la, alegando que desde então já deveria se acostumar. Hachiko e Killyk soltavam risinhos de escárnio, porém Caleb mantinha-se calado observando, seu assombro crescendo...

Uma jovem de cabelos castanhos curtos, humana, usando uma armadura que parecia não se adequar bem a seu tamanho ... – mais um elemento da visão se manifestava diante de seus olhos, vivo como aqueles que o cercavam. Restava somente a paisagem florestal familiar. Não era aquela, o que conseguira desde o início notar; ainda que a um leigo todas as matas fossem iguais, muitas das árvores que ali cresciam não pertenciam à paisagem da Floresta Negra, e um druida tinha as plantas quase como irmãs. O momento de a profecia se concretizar em breve chegaria, e Rosengard, trêmulo, concluiu algo aterrador: talvez não possuísse controle algum sobre ela. Mesmo se esforçando para evitar um destino atroz, tudo caminhava para a tragédia com que sonhara – ele talvez não passando de um mero espectador dos fatos, escolhido por Wella e as outras divindades...

Ou então... fizera algo errado? Ou melhor, será que até então nenhum de seus esforços bastara para alterar o curso dos acontecimentos?

O sentimento de impotência abalou-o. Ainda vislumbrando a devota de Swordanimus com seu novo traje – e reprovando-se mais uma vez por manter essa característica oculta dos companheiros – deitou-se na relva para dormir, ansiando para que a natureza lhe concedesse novas forças e maior discernimento através do solo.

Aos poucos, todos foram adormecendo. Fora combinado que dentro de algum tempo Hachiko acordaria para iniciar a vigia. A fogueira continuou a queimar, suas chamas douradas embalando o sono dos cansados viajantes. Apenas Lisah, com Kiche, permanecia acordada, sentada na mesma pedra onde cortara os cabelos de Kirinak. Com um pequeno graveto em mãos, remexia o fogo... sendo espreitada por um espectador incógnito. Killyk encontrava-se deitado como os outros, porém não conseguia dormir. Revirava-se de momento em momento com os ouvidos fixos nos sons da floresta... até que abriu discretamente os olhos. Fitou os colegas já envolvidos pelos braços de Nayx... e então voltou-se para a elfa desperta. Ela não o percebeu, enquanto vistoriava alguns de seus suprimentos e armas. Parecia, aos olhos do bardo, sempre muito zelosa com suas coisas. Foi quando a viu erguer-se do assento... e, ignorando a torrente fria da noite, desatou as pregas que lhe sustentavam o vestido negro junto ao corpo.

O elfo estremeceu. Não é que nunca houvesse visto donzelas nuas antes. Em Astar, costumava escapulir do pai algumas vezes para espionar moças tomando banho nos rios e lagos, movido pelo furor apaixonado da juventude. Mas Lisah era uma das elfas mais belas em que já pousara os olhos, e sentiu-se subitamente invasivo, como se não se achasse digno de vê-la ao natural, ainda mais escondido. Com as pálpebras semi-cerradas, desviou o olhar. A imagem da jovem tornou-se um borrão... e constatou de repente que algo nela brilhava. Como por reflexo, voltou a enxergar com nitidez. Sem o vestido, o corpo da aventureira estava coberto por uma armadura de couro batido dos ombros às coxas, as placas marrons mantendo-lhe os contornos suaves. A peça de vestimenta parecia ter sido costurada pelas mãos da própria elfa, já que se adequava ao seu organismo com quase perfeição, além dos vários suportes e compartimentos que possuía sem aparentemente perder a leveza. Sob cada braço, dos dois lados do busto, existia uma bainha, as duas portando as espadas gêmeas de Lisah, permitindo um saque rápido. À cintura, pouco acima da perna direita, observava-se outra, menor, para o punhal de esmeralda que tanto impressionara Eleniak. Por fim, às costas, um complexo mecanismo de correias e elásticos mantinha comprimido um arco com algumas flechas, parte alguma da arma pendendo para fora da silhueta da viajante e conseguindo assim ser totalmente ocultado embaixo do vestido. O bardo já se sentia embasbacado diante da nova demonstração dos incontáveis segredos que a companheira aparentava carregar, quando viu: cintilando em seu peito, na região dos seios, havia pendurado um broche prateado. Identificou seu formato com a inconfundível representação de um pássaro em vôo...

- Colibri! – berrou subitamente, incapaz de controlar-se.

A elfa virou-se para ele com os olhos arregalados, como se acabasse de ver um fantasma. Kiche rosnou, apoiando-se nas patas traseiras. A dona cobriu-se de novo rapidamente com o vestido, como se estivesse despida por completo, e impediu a loba de abrir a garganta do bisbilhoteiro por meio de um gesto. Mais calma, cruzou os braços e inquiriu a Killyk:

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- Nunca o ensinaram ser pouco educado fingir estar dormindo?

- Sociedade dos Colibris! – o bardo completou o pensamento, ignorando a reprimenda. – Isso explica tudo. Você é uma ladra, não? Uma contrabandista?

Lisah suspirou, tornando a se sentar. Kiche ganiu incômoda, compartilhando a sensação de sua companheira. Ao menos ninguém acordara com a exclamação do artista, o que poderia ter, num piscar de olhos, complicado ainda mais as coisas. Lembrou-se das primeiras conversas com aquele sujeito, a bordo do Briss, e de como ele desde o início manifestara grande curiosidade a seu respeito. Acabara descobrindo mais sobre si da pior forma... mas ao menos não desvendara tudo. Nem perto disso.

- Venha cá – chamou-o, tentando se manter paciente.

Ele veio, sentando-se sobre a grama à sua frente. Tremia um pouco, tanto de nervosismo quanto de frio, os hematomas das pancadas latejando. Os olhos exigiam mais explicações da elfa, ainda que a língua não se atravesse a verbalizá-las.

- Pertenço sim aos Colibris, porém este será nosso segredo, bardo – ela disse com tranqüilidade. – Retribuição por eu tê-lo livrado daquele saco enlameado.

- P-pode ao menos me falar se Lisah é seu verdadeiro nome? – ele criou coragem para indagar.

A ladina aparentou refletir por um instante, para então abrir um sorrisinho e replicar:

- É sim. Lisah Lamtahl é ele completo.

Killyk piscou rápido, seu tremor aumentando enquanto assimilava a informação. A elfa, entretanto, não desejava mais perguntas: deixou-o a pensar enquanto chamava a loba e se afastava, indo deitar na relva um pouco afastada do grupo. O artista não ousou segui-la. Permaneceu imóvel, olhos imersos no céu, ao mesmo tempo em que ordenava mentalmente tudo o que aquele sobrenome lhe trazia...

- Lamtahl... – repetiu em voz baixa, ainda perplexo.

Também se deitou, a palavra continuando a ressoar por seu imaginário, despertando-lhe sentimentos há muito adormecidos, animando-o... inspirando-o. Acabou também sorrindo, notando a chegada do sono. Achava até então desprovida de sentido a continuidade de sua viagem à capital, depois da perda do poema dedicado ao rei. Mas, agora, via um novo sentido nascer em sua jornada...

Cantar os feitos de heróis era uma das maiores funções de um bardo como ele. Assim como fora seu pai...

Lisah Lamtahl era uma heroína.

Embalado por sussurrantes ecos épicos, adormeceu.

“Feliz aquele que encontra a chave

para os mais profundos segredos

dos corações mortais”

Autor desconhecido.