Heróis de Boreatia: a Perfídia de Macker

Capítulo V: Apuros em Tileade - Parte I


Capítulo V

“Apuros em Tileade”

A manhã ensolarada, aliada ao agradável ambiente do porto amigo, compunham juntos uma aconchegante recepção aos ocupantes da nau élfica Briss, que há pouco ancorara no cais do forte de Tileade. Gaivotas davam rasantes sobre as simples construções, ao mesmo tempo em que funcionários do porto vinham auxiliar o descarregamento de mercadorias que, a bordo do recém-chegado navio, seriam agora comercializadas no interior do continente. De pé sobre o tablado, aqueles que acabavam de deixar a embarcação através de uma rampa de madeira podiam observar, no sentido norte e à direita, a convidativa taverna “Gaivota Azul”, o nome gravado numa tábua acima da porta junto com uma gravura um tanto tosca. Atrás do estabelecimento, perto do portão do forte, um templo dedicado ao deus Serinius possuía as portas abertas, junto às quais alguns moradores depositavam naquele momento oferendas de peixes e jarros d’água, rogando pelas bênçãos da divindade sobre as atividades que diariamente exerciam. No centro do pátio que se estendia por quase todo o interior da fortificação, três pequenos armazéns recebiam a carga dos navios que ali chegavam. Mais ao fundo, à esquerda, o quartel da guarda repleto de sentinelas deixava claro o quão bem-vigiado era o local. Ao lado dessa construção fora erigido bonito chafariz, onde algumas mulheres então buscavam água, e logo depois se iniciava uma fileira de modestas casas em que residiam os trabalhadores do forte. Lugar em suma que, excetuando a movimentação causada pelo porto, costumava ser calmo e pacífico.

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O entreposto encantava e muito Killyk Eleniak. Pisar pela primeira vez numa terra desconhecida, repleta de pessoas com costumes diferentes e locais nunca antes vistos, era algo fascinante para o elfo. Sentia que o reino de Behatar lhe seria fonte de incrível inspiração ao longo de sua estada, principalmente quando presenciasse a coroação do novo rei na capital. Jamais participara de qualquer cerimônia parecida, e o mero pensamento de estar presente nas festividades – andando pelas ruas ricamente decoradas, lotadas de fiéis súditos e estrangeiros entusiastas da celebração, ouvindo o toque de trombetas e testemunhando batalhões militares inteiros se curvando com seus escudos e armas para honrar o monarca – deixava-o a mal conseguir se conter diante de todas as palavras que, unindo-se em versos, despontavam em sua fértil mente para descrever tamanha maravilha. Procurava não ceder à ansiedade, porém. Isso acabaria por atrapalhar a jornada até Borenar, e tecer expectativas demais previamente por certo prejudicaria sua erudição quando chegasse o momento de revelar seu presente. Tentava, desse modo, controlar-se e focar-se somente no instante presente. E este, pintado em tons de azul e cinza numa paisagem marítima que vinha de encontro a um encantador forte costeiro, era-lhe igual fonte de incrível inspiração.

O feliz bardo já ia pôr-se a cantarolar – saltitando para longe das docas – a beleza daquele porto, quando seus olhos miraram a personagem mais intrigante de toda a tripulação do Briss. Lisah, de costas e aparentemente alheia ao rapaz, encontrava-se a alguns metros de distância na companhia de sua loba Kiche, examinando o interior do forte com um rosto sereno enquanto parecia se decidir para onde seguiria. Sempre encantado pela figura da elfa que, além de muito bela, aparentava guardar consigo mais segredos cada vez que era fitada, Killyk adiantou-se para caminhar na direção dela, na esperança de iniciar uma conversa... quando a moça, como se houvesse lido seus pensamentos, passou também a se mover, dirigindo-se com a loba até uma taverna perto dali, a singela “Gaivota Azul”. Um veloz pensamento galopou pela mente do poeta, incutindo-lhe que o quase sempre sujo e ébrio ambiente de uma taverna não combinava em nada com a figura de Lisah. Em seguida reprovou-se, achando já estar conjeturando demais em cima de uma elfa sobre a qual quase nada sabia. Mas sim... ele queria descobrir mais.

Foi com esse objetivo que se colocou igualmente a caminhar na direção do estabelecimento, ainda sem ser percebido pela jovem. Sondá-la, porém, não era seu único intento. Não conhecia praticamente nada de Behatar, e conseguir os serviços de um guia ou ao menos a compra de um mapa local para orientar-se podiam ser consideradas prioridades. Uma típica taverna, que, de acordo com seus há muito tempo obtidos conhecimentos de bardo, costumava reunir indivíduos das mais variadas procedências e ocupações, por certo constituía lugar favorável ao cumprimento de uma dessas metas. Killyk sorriu. As coisas estavam ficando cada vez mais curiosas... e inspiradoras.

Perto dali, fora da vista do elfo, uma outra ocupante da recém-chegada embarcação descia rumo ao píer, sempre o mais discreta possível. Trajando a mesma túnica-vestido branca de antes, as pulseiras douradas ausentes de seus pulsos talvez devido ao temor em relação à aparição de algum gatuno, trazia algo diferente às costas: um volume de tamanho médio oculto sob uma manta marrom, deixando à mostra, mesmo assim, dimensões aparentemente cilíndricas. Tratava-se na verdade de uma aljava de flechas e um observador mais atento também conseguiria identificar, escondido com cuidado junto à cintura da garota, um bem-cuidado arco...

A última coisa que Hachiko desejava era chamar atenção, e por isso evitar locais muito movimentados seria uma ótima estratégia. Afinal, não sabia se os antigos inimigos de seu tio possuíam contatos ou até mesmo espiões naquele continente, e mesmo pessoas locais poderiam acabar sendo fonte de problemas caso de algum modo descobrissem a respeito do que buscava. Sendo assim, afastar-se o quanto antes daquele porto era uma ótima opção.

A elfa memorizara a direção para a qual deveria rumar: norte. Sempre norte. Teria de percorrer toda aquela península, o que levaria alguns dias, até atingir as terras centrais de Behatar. Passaria em seguida pela capital Borenar e, continuando no mesmo percurso, atravessaria a região de Krisman até o sopé da Cordilheira Boreal, onde o tesouro que Kaynan lhe deixara a aguardava. Bastaria então fazer uso do mapa específico que possuía para encontrar a localização exata da fortuna, longe de quaisquer olhos intrometidos. A viagem toda de ida levaria de duas a três semanas. Agindo conforme planejara, Hachiko esperava não encontrar contratempos... Nunca se sabe, porém, o que a Roda da Fortuna reserva aos mortais, e ela tinha consciência disso...

Antes de seguir adiante, cruzando o portão rumo à estrada, seria prudente descansar ao menos por algumas horas e alimentar-se. Tinha naquele momento, principalmente, sede. Andando pelo pátio interno de Tileade, lançou os olhos sobre a taverna por um momento: um tanto agitada e cheia de pessoas, um lugar que não favorecia em nada seu anonimato. Opção descartada. Virou então a cabeça, observando a porção norte do forte. Suas pupilas brilharam ao descobrirem, ao lado do quartel da guarda, um chafariz ricamente esculpido em pedra clara, contendo representações de fadas e outros seres mágicos. A elfa de Kartan já ouvira falar dessas primeiras, supostamente habitando algumas das mais densas florestas de Astar; mas nunca as vira. O encanto de que suas versões reais supostamente eram dotadas, no entanto, aparentava ter se projetado sobre o líquido oriundo da fonte, pois de tão limpo era até cristalino. Perfeito. Hachiko saciaria nela sua sede de forma bem mais proveitosa do que pagando por um copo ou dois de água barrenta na taverna. Decidida, rumou até o chafariz.

Tanto Killyk quanto Lisah, e também Hachiko, não faziam idéia de estarem sendo observados com atenção por um intrigante sujeito...

De pé junto à entrada do templo de Serinius, o lobo Anuk sempre ao seu lado e bordão firme em sua mão direita, o druida Caleb Rosengard assistira, de longe, ao desembarque de todos os ocupantes do Briss. De início acompanhara os passos dos primeiros elfos e halflings sem muito interesse, apesar da forte intuição que se recusava a abandoná-lo. Foi então que ele avistou os três indivíduos em particular, separados, deixando o convés da embarcação... e sentiu arrepios. Primeiro perguntou-se se o sol não estaria prejudicando seus sentidos e seu raciocínio, mas chegou mais perto, e a aproximação dos estranhos no sentido contrário também contribuiu para que pudesse examiná-los com mais clareza. Sim, ele não estava mesmo tendo alucinações, lapsos de visão ou qualquer coisa parecida... Aqueles três, todos elfos, sendo um rapaz e duas moças... Eram os exatos vistos em seu sonho premonitório.

Não havia como confundi-los. Até os detalhes mais precisos, como contornos faciais e trejeitos de movimento, pareciam os mesmos. Uma elfa de cabelos compridos e negros, a outra de fios também longos, mas prateados; o rapaz de cabeleira arrepiada... Até os equipamentos que traziam, àquela distância, aparentavam ser os mesmos, ainda que incompletos. Apenas a moça humana, que em sua visão parecia ter sido possuída por alguma entidade maligna poderosa, encontrava-se ausente – ainda. Todos os outros três, porém, ao que tudo indicava haviam desembarcado ali, de uma vez. Valera a pena, realmente, dar ouvidos à sua intuição, como o sábio Rabesdin recomendara. Sabia que Wella também zelava por seus passos e pela prevenção da tragédia cuja sinistra sombra ainda pairava sobre os pensamentos de Caleb. Tinha de ser evitada. E para isso o druida precisava saber mais sobre aquelas misteriosas pessoas, expondo tudo a elas caso fosse necessário.

Estreitou os olhos. A elfa de cabelos pretos e o elfo de mechas desordenadas e vestes coloridas dirigiam-se, separados entre si por certa distância, até a taverna Gaivota Azul. Dentre todos os espaços freqüentados pelo povo das cidades, as tavernas eram os que menos agradavam o druida, e por isso nelas se sentia muito pouco à vontade. Sua missão, todavia, dependia de sua rapidez em seguir aqueles dois personagens local adentro, não podendo hesitar. Respirando fundo, Rosengard pôs-se a andar, fazendo um sinal para que Anuk o seguisse. A outra elfa, de cabelos prateados, caminhava até a fonte junto à muralha norte, porém o vidente julgou ser mais seguro ter com dois dos indivíduos de uma só vez, deixando-a para depois. Já ia também pensando, de antemão, na maneira como abordaria aqueles estranhos provavelmente alheios ao papel futuro que possuíam...

Seria difícil convencê-los.

Hachiko só confirmou de perto o que já a encantara de longe: as águas do chafariz eram mesmo muito límpidas e refrescantes. Imergindo as mãos no líquido, reergueu-as molhando a face e matando a sede com o que sorvia pela boca. Como era bom poder se saciar com uma substância tão pura, ainda mais de acesso tão fácil, sem que fosse preciso pagar por ela! Em Kartan apenas as residências dos mais ricos e estabelecimentos mais privilegiados podiam oferecer água daquele tipo. Behatar, proporcionando isso numa fonte pública, já conquistava a simpatia da elfa.

Mas, ao que parecia, a própria estrangeira já havia conquistado, também, a simpatia local para si. Ao menos era isso que se podia dizer levando em conta os três membros da guarda, vestindo armadura e trajes nas cores azuladas características do Exército de Behatar, portando espadas às cinturas e arcos às costas, que admiravam Hachiko fixamente desde que ela se aproximara do chafariz. Trocavam comentários maliciosos em voz baixa entre si, a elfa só os percebendo após mais alguns goles d’água. Arregalou os olhos, um sentimento que unia vergonha e irritação a tomando de início, evitando assim fitar os humanos. Um dos soldados deu uma risadinha, enquanto o colega ao seu lado lhe dava uma leve cotovelada num ombro, como que o instigando a falar com a forasteira. Esta fingiu não ter visto o trio, continuando a beber e lavar-se; porém os vigias estavam determinados a tentar a sorte. Foi justamente o guarda que rira o primeiro a dar um passo à frente, perguntando, braços apoiados na beirada oposta do chafariz:

- Então as pérolas agora estão se revoltando, abrindo caminho para fora das ostras e vindo distribuir seu brilho pelas praias?

- Ora, que ostra que nada! – zombou um dos amigos do primeiro a investir. – Não vê que ela é uma fada, parente destas talhadas nesta fonte, e que em honra a elas veio beber da água que nos fornecem?

Divertindo-se com os rapazes, Hachiko viu sua irritação passar, dando lugar a uma sensação de apreciável brincadeira. Tomou mais um pouco do líquido límpido, esfregou nele os olhos e respondeu, erguendo a cabeça num sorriso astuto:

- Nem ostra, nem fada. Sou uma elfa oriunda das Ilhas Kartan. Extremamente hábil com um arco, devo mencionar. E adoro testar minha pontaria com atrevidos que mereçam minhas flechas.

Os sorrisos e expressões de gracejo nos semblantes dos guardas desapareceram imediatamente. Poderiam ter se aproveitado de sua posição e reagido de forma hostil a Hachiko devido a ela tê-los ameaçado, mas demonstraram respeito diante da dama – e temor perante seu arco – não dizendo mais nada e retornando disfarçadamente aos seus postos. A elfa riu-se de forma discreta, aproveitando a fonte por mais alguns instantes antes de finalmente voltar a caminhar. Não se dirigiu ao portão, entretanto. Visualizando os pequenos armazéns no centro do pátio, lembrou-se de que precisaria comprar alguns suprimentos para seguir viagem. Muitos deles poderiam ser obtidos com facilidade da própria natureza, como víveres, mas o plano da estrangeira era parar o mínimo possível pelo caminho até o norte, e isso incluía pausas para caçar ou coletar. Retirou do traje um saco de moedas enquanto adentrava uma das construções. Na melhor das hipóteses, deixaria aquele forte no princípio da tarde.

O interior da Gaivota Azul era mesmo o de uma típica taverna, o que a diferenciava das demais sendo apenas o fato de estar situada numa localidade litorânea. Isso acabava por gerar alguns detalhes no ambiente característicos dessa condição, como quadros nas paredes retratando paisagens oceânicas, pequenas réplicas em madeira de âncoras também penduradas nas paredes e diversos suportes contendo garrafas de vidro com navios em miniatura dentro, desde embarcações militares da Marinha de Behatar, passando por lendárias naus piratas de Kartan e Barbety, até os esguios e pontudos navios dos elfos. Boa parte da freguesia do lugar, como era de se esperar, era composta por marinheiros, em sua maioria estrangeiros de passagem pelo porto. Com suas animadas conversas regadas a cerveja, hidromel, licores e principalmente rum, os beberrões matavam tempo enquanto seus barcos permaneciam estacionados nas docas ou simplesmente enrolavam devido à preguiça em iniciar alguma tarefa que envolvesse deslocamento para o interior do continente. Junto ao balcão, um atendente magro, barbado e de pele bronzeada limpava-o esfregando sobre a superfície um pedaço de trapo. Com a cabeça baixa, permanecia atento a todas as falas oriundas das mesas, guardando para si as palavras que julgasse a si úteis dentre a ladainha constante. Não era dono do estabelecimento, porém acabava responsável pelo mesmo durante quase todo tempo, já que o proprietário, ocupante de cargo de alta patente na Marinha Boreal, sempre se encontrava fora. Ao menos era bem pago para não aceitar fiado, nem permitir que aqueles boêmios destruíssem a taverna em meio a alguma briga...

Apesar de ser manhã, o local estava quase lotado. Enquanto um ou outro freguês bebia sem parar desde o raiar do sol, aqueles que passavam pelo estabelecimento apenas para uma caneca rápida ou se refrescavam com água compunham maioria. A porta se abriu sem chamar a atenção de ninguém que ali se encontrava e, sempre sutil, a elfa Lisah, trajando branco, adentrou o recinto junto com Kiche. Após alguns segundos, o moreno ao balcão ergueu ligeiramente os olhos e, num tom de enfado, disse, apontando para a loba:

- Não vou impedi-la de entrar aqui com o bichinho, moça... Mas se ele atacar alguém, saiba que a responsabilidade será toda sua!

- Estou ciente disso... – a jovem replicou quase num murmúrio. – E é “ela”. Venha, Kiche.

Arfando, a mascote acompanhou a dona até uma mesa mais isolada junto a uma das paredes do lugar, Lisah se acomodando numa das quatro cadeiras vazias ao seu redor. A loba, por sua vez, foi para debaixo do móvel, onde se deitou aproveitando o clima mais fresco. Em seguida a elfa permaneceu fitando algo indistinto diante de seus olhos, sem piscar, como se estivesse pensando em algo a ser feito... e a porta da taverna se abriu novamente.

Ela voltou a cabeça para a entrada, deparando-se com o mesmo elfo de trajes coloridos e dotes poéticos que conhecera a bordo do Briss. Trazia consigo a bela e valiosa harpa, que podia ser visualizada em meio às suas coisas, e, de pé junto a uma mesa logo após ganhar o recinto, lançou os olhos em volta como se procurasse algo ou alguém. A moça desejou, do fundo de sua alma, que não se tratasse de si. O que menos queria era companhia e, a julgar pela anterior cortesia do rapaz, não seria de se surpreender se ele a houvesse seguido até ali e agora desejasse estar de novo em sua presença. Claro que tudo podia não passar de uma coincidência e o bardo ali se encontrar somente para beber algo ou obter informações, mas, ao longo de sua vida – e reforçado pelas atividades que exercia – Lisah aprendera a desconfiar de tudo e todos em primeira instância. Era uma postura que garantia, além de segurança, sua própria sobrevivência.

A jovem, temerosa, apenas abaixou a cabeça de forma natural, uma discreta maneira de ocultar seu semblante dos olhos do indesejado recém-chegado... Mas então se lembrou de Kiche, que podia ser avistada com facilidade embaixo da mesa, e concluiu que sua estratégia de nada adiantaria. Logo ouviu passos sobre o assoalho vindo em sua direção e, levantando a face enquanto demonstrava falsa surpresa, a elfa deparou-se com a figura alegre de Killyk Eleniak.

- Olá! – ele saudou-a.

- Olá... – Lisah respondeu um pouco desconcertada, seus lábios se abrindo num sorrisinho. – Veio se aliviar um pouco do calor? Aqui é bem mais quente que em Astar, por certo.

- Sim, a idéia de beber algo para me refrescar é agradável... Mas também vim até aqui para falar com você, se não for incômodo, é claro...

- Não é – ela esclareceu ainda sorrindo. – Nunca estive aqui antes, talvez seja interessante ter alguém com quem conversar e dividir impressões.

Apenas a parte de nunca ter antes pisado no Reino Boreal era verdadeira. Enquanto o bardo puxava uma cadeira para se sentar, a moça lançou um rápido olhar para as mesas próximas. Numa delas, onde existia pequena aglomeração, o velho capitão de um navio mercante contava sobre quando arrebentara a mandíbula de um tubarão com as mãos nuas, quando a fera tentou abocanhá-lo durante um naufrágio... As crianças que compunham parte da platéia aparentavam acreditar. Em outra mesa, ao lado dessa, uma figura solitária, tronco e cabeça cobertos por um manto marrom, bebia a curtos goles um copo d’água, olhar fixo nas tábuas do chão, como se temesse erguer o rosto... Intrigante, ao menos. Depois Lisah visualizou uma parede, na qual haviam sido afixados diversos anúncios e avisos. Enquanto um documento com o carimbo do Exército informava ter sido extinguido o toque de recolher, cartas comerciais anunciavam mercadorias diversas e havia, também, um clássico pôster de “procura-se”. Apesar do desenho ser fosco e malfeito, a observadora pôde nele identificar uma jovem de cabelos lisos que lhe caíam até a altura do pescoço, os dizeres no pergaminho sendo no mínimo instigantes:

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Procura-se:

Por assassinato de homem em Tyrnan, durante último Festival de Outono. Atende por “Kirinak”. Recompensa-se bem.

É, aquele continente tinha lá mesmo seus encantos...

- ...isso era o que dizia meu pai destas terras temperadas! – falou o elfo, encerrando uma explicação cujo resto Lisah ignorara totalmente. – E então? Está se dirigindo a algum lugar específico?

- Você está, de novo, querendo saber demais... – riu a elfa, pousando seus olhos sobre o rapaz por um momento, mas ainda atenta aos outros estímulos visuais no interior do estabelecimento.

- Ora, apenas desejo oferecer meus préstimos. Ouvi dizer que as estradas deste reino são perigosas, pois muitos dos monstros oriundos do Crepúsculo dos Deuses ainda vagam espreitando os viajantes. Deslocar-se em grupo parece melhor do que sozinha, não acha?

- Você é hábil com as palavras, mas não com seus motivos...

Após fazer tal afirmação, a jovem, bem habituada a prestar atenção em várias coisas simultaneamente, manteve os ouvidos agora de prontidão à conversa do bardo, enquanto seus olhos se moviam discretamente na direção da porta de entrada, mais uma vez aberta. Um sujeito humano de barba e cabelo curto, vestindo túnica cinza e tendo na mão direita um bordão, fora quem impelira a maçaneta, acompanhado – vejam só – de um lobo de tamanho pouco maior que o de Kiche. O estranho, de modo similar a Killyk pouco antes, também passou a examinar todo o interior da taverna buscando alguma coisa. Lisah só torceu para que sua fama não houvesse se propagado tão rápido a ponto de até uma pessoa local desconhecida vir procurá-la...

- ...falam coisas terríveis desses goblinóides! – devido ao excesso de elementos dentro do local, a elfa acabou perdendo de novo boa parte da fala do bardo. – Por isso viajar com alguém, de preferência uma pessoa que saiba usar armas, é algo quase imprescindível aqui em Behatar!

- E o que leva você a achar que sei usar armas? – indagou Lisah, começando a demonstrar aborrecimento em sua voz.

- Eu não falei nada de você, e sim de algum indivíduo local que poderíamos contratar e que soubesse manejar uma espada! – exclamou Eleniak, arregalando os olhos e logo depois abrindo um sorriso. – Te peguei!

A moça bufou. É, não deveria subestimar aquele proseador. Teria de focar nele suas atenções daquele momento em diante, ou acabaria cedendo mais informações sobre si que não deveriam, por nada, serem veiculadas. O elfo falava pelos cotovelos... Nunca desejou tanto que uma pessoa fosse tímida e comedida!

Foi quando ambos tomaram um susto. A figura do homem de túnica cinzenta que há pouco adentrara o lugar apareceu subitamente junto à mesa dos dois estrangeiros, nela apoiando suas mãos e se curvando para frente. Só então Killyk o percebeu, estremecendo. Até mesmo Lisah parecia atônita. O lobo do estranho foi cheirar Kiche embaixo da mesa e, ao mesmo tempo, seu dono disse numa voz séria e grave, alternando sua visão entre as duas cabeças de orelhas pontudas:

- Eu preciso falar com vocês.

Hachiko estava satisfeita. Conseguira alguns mantimentos para a expedição continente adentro por um preço bastante amigável num dos armazéns. As economias que lhe haviam sobrado após o financiamento da viagem do Briss mostravam-se bastante úteis, para não dizer salvadoras. Além disso, estava certa de que conseguiria mais dinheiro durante o trajeto até o norte, por meio de pequenos trabalhos ou favores que não demandassem tempo. Tomara para si, por exemplo, um pôster em pergaminho encontrado perto do quartel que oferecia uma boa recompensa a quem encontrasse uma tal “Kirinak”. Caso topasse, pela estrada, com alguém cuja descrição física batesse com a da criminosa, não pensaria duas vezes antes de detê-la e entregá-la às autoridades. Tanto a elfa quanto o povo de Behatar sairiam ganhando.

Já não restava muito a ser feito naquele forte. Talvez Hachiko apenas se permitisse descansar por algumas horas sob a sombra fresca de uma árvore, como as existentes nos pequenos jardins do pátio, até que o momento planejado para sua partida viesse. Havia um diante do templo de Serinius, uma das plantas de copa vasta nele enraizadas sendo uma macieira que oferecia bonitos frutos à população. Visando também matar a fome, a elfa avançou até o local, certa de que o período restante até a retomada de sua missão seria tranqüilo...

No entanto, como se diz, ninguém pode prever Feger e sua Roda da Fortuna...

- Espere aí, deixe-me ver se entendi... – ponderou Lisah erguendo os braços, tentando analisar cada nuance da fantástica narrativa contada pelo humano, que haviam descoberto se chamar Caleb Rosengard. – Está dizendo que teve um sonho meses atrás, o qual acredita ser premonitório, e que nós estávamos nele?

- Exato – replicou o druida, agora sentado na companhia dos outros dois. – Você, o elfo aqui chamado Killyk, uma outra elfa que avistei lá fora antes de entrar e que viajou com vocês no navio, de cabelos prateados, e uma jovem humana de cabelo curto e estranha armadura. A Floresta Negra, meu lar, ardia impotente perante um mal avassalador que parecia ser representado exatamente por essa última moça citada. Eu a vi envolvida por uma aura vermelha, infernal. E alguém, que aparentava não ser nenhum de vocês, pronunciou a sentença “É tudo culpa do Macker”. Desde então venho confiando meus passos a Wella na tentativa de evitar essa iminente catástrofe. E foi então que achei vocês, logo após ter chegado a Tileade.

A dupla de estrangeiros não sabia o que dizer. A elfa, em seu íntimo, conflitava duas possibilidades: ou o suposto druida era um doido varrido, ou então se tratava de um aproveitador que, fazendo uso de uma história mirabolante, vivia de aplicar em ouvintes ingênuos algum tipo de golpe. A primeira já podia ser confirmada devido ao teor absurdo do caso, já a segunda demandava mais algum tempo de conversa, para averiguar se o interlocutor faria algum tipo de proposta ou convite. Em sua vivência, Lisah já testemunhara falácias interesseiras como algum parente muito mal de saúde ou uma família em situação por demais miserável, mas salvar o mundo era nova. E sentia vontade de rir disso.

Já o bardo via-se confuso. Apesar de a si a narrativa de Caleb também soar muito estranha, estava inclinado mais a aceitá-la do que o contrário. Crescera ouvindo poemas épicos, registros líricos de façanhas e aventuras grandiosas que, por mais espalhafatosas que parecessem, haviam de verdade acontecido. Podiam duvidar do relato daquele druida, porém os mortais lançavam desconfiança sobre “Nemitus”? Desmentiam as histórias sobre o choro de Mihnire? Riam das narrativas tratando dos deuses e seu nascimento? Às vezes era necessário o passar dos séculos para que as coisas maravilhosas ocorridas no mundo alcançassem a condição de mitos consolidados, e era bem possível que no futuro o sonho de Caleb Rosengard também chegasse a esse patamar. Convinha por isso respeitá-lo e dar-lhe crédito. Sincero, Killyk se manifestou:

- Assusta-me apenas o fato de minha pessoa estar envolvida em visão tão aterradora, porém acredito em você, caro druida. É provável que façamos parte de algum plano maior elaborado pelos deuses, sendo sua aparição o sinal para que o abracemos e o sigamos conforme deve ser feito. Essa floresta em que você vive, e que apareceu queimando em seu sonho, é próxima da capital Borenar, correto?

- Sim, fica logo a oeste – respondeu Caleb tranqüilo.

- Pois bem. Eu me dirijo para a capital, com o intuito de participar da coroação do novo rei. Ela ocorrerá daqui uma semana, e como a distância entre este porto e Borenar é, numa marcha rápida, de seis dias, pretendo deixar Tileade o quanto antes para lá chegar a tempo. Adoraria tê-lo em minha companhia, Caleb. Durante a viagem podemos pensar numa maneira de evitar a desgraça por você prevista, e enfrentar qualquer outro desafio que o destino nos reserve.

- Será uma honra, Killyk Eleniak – o druida assentiu numa saudação com a cabeça.

- Minha amiga Lisah aqui não me disse para onde irá, mas caso também seja a capital, bem que poderia nos acompanhar...

A elfa se controlava para não atacar o abusado bardo ali mesmo. “Amiga” sua? Desde quando? Eles mal haviam conversado poucas vezes! Bufou de novo, cruzando os braços em cima da mesa. Passando a ignorar a conversa entre ele e Caleb, voltou a centrar seus sentidos no ambiente da taverna. O capitão continuava contando histórias tão absurdas quanto o tal sonho do druida, um grupo de marujos de Etressia há pouco entrara para desfrutar de uma rodada de rum... E a misteriosa pessoa encapuzada de antes, sentada não muito longe do trio, por algum motivo ocultava ainda mais a face com o manto, como se sentisse crescente perigo à sua identidade com o transcorrer dos minutos. Lisah sentiu-se desafiada. O que aquela criatura teria a esconder?

Nesse momento Rosengard, percebendo que a elfa olhava numa outra direção, voltou a cabeça para o mesmo rumo... e assim que suas pupilas miraram o indivíduo oculto sob a capa, seu corpo estremeceu e quase sentiu falta de ar. Uma intuição muito forte dominou seu raciocínio e reflexões, de modo que aquela silhueta, ainda que tivesse sua real forma totalmente desconhecida por si, pareceu-lhe envolvida, e muito, com sua própria demanda. Uma suspeita incômoda passou a cutucar sua mente, de início de maneira fraca, porém aumentando em intensidade a cada instante. Seus membros se retraíram, seu coração disparou. E, sem pedir qualquer opinião aos colegas de mesa, levantou-se, fez um sutil sinal para que Anuk permanecesse onde estava – próximo de Kiche – e avançou até o móvel onde a figura solitária permanecia... aparentemente trêmula.

Olhando-a de forma fixa, ao que a pessoa parecia, por debaixo do capuz, evitar de qualquer jeito retribuir do mesmo modo, semblante voltado para outra parte do estabelecimento, o druida simplesmente puxou uma cadeira e sentou-se ao lado do personagem incógnito, dizendo-lhe, sem qualquer cerimônia:

- Não sei explicar, mas... você me intriga.

Killyk e Lisah arregalaram os olhos, permanecendo onde estavam. A teoria do doido varrido ganhava mais um ponto a favor.

A pessoa encapuzada, por sua vez, encolheu-se no assento, o recuo da manta acabando por deixar suas mãos e parte dos braços à mostra... exibindo uma pele muito branca e dedos presumivelmente femininos. Apesar da reação nervosa, Caleb insistiu:

- Não se preocupe, apenas queremos saber quem é, e o que faz aqui. Não contaremos a ninguém.

- Não posso falar! – a figura, numa chorosa voz de garota, replicou agitada. – Vá embora, por favor.

O druida, no entanto, reagiu de maneira totalmente contrária: avançando de supetão sobre a misteriosa jovem – sem que ela, surpresa, tivesse tempo de recuar – agarrou-lhe o capuz e puxou-o para baixo, forçando-a a revelar a cabeça. Na mesa próxima, os dois elfos abriram a boca de espanto; até mesmo Lisah, que aparentava ser mais habituada a situações inusitadas como aquela. A moça de rosto antes oculto, agora mostrando ser claramente humana, conteve um grito diante da atitude do abusado rapaz, pois, apesar da raiva que sentia, não desejava chamar ainda mais atenção para si. Não aparentava ter mais que dezoito anos de idade – os contornos de seu semblante, em conjunto com os amedrontados olhos verdes, denotando o aspecto de alguém que acabara de deixar a adolescência. Possuía cabelos castanhos um pouco compridos, presos em duas tranças que lhe caíam até o início das costas. O corpo, sob o manto, parecia magro e um tanto desnutrido – evidência de que vinha passando dificuldades.

- O que é isto? – ela indagou nervosa num tom que tentava se manter baixo, enquanto Caleb recuava calmamente até sua cadeira. – Você não tem o direito!

- Eu apenas apressei as coisas, minha cara – ele afirmou num sorriso triunfante. – Não lhe daria sossego enquanto não se revelasse a mim. Acredite, há um motivo. E agora que pude vislumbrar sua face sem qualquer tipo de máscara, comprovo o que suspeitava. É necessário que eu lhe explique...

Rosengard, já habituado a todas as circunstâncias fantásticas que determinavam seus encontros desde que chegara a Tileade, aparentava encarar com naturalidade a situação – apesar de seus impulsos. Fazendo um sinal para os elfos com uma das mãos, chamou-os a se transferirem para aquela mesa; os dois correspondendo, ainda que um pouco temerosos. Anuk e Kiche também vieram, passando a cheirar a garota desconhecida por debaixo da mesa, coisa que não a agradou muito.

- Ela é a peça que faltava! – esclareceu o druida apontando para a jovem. – O cabelo está mais comprido e aparentemente não veste a armadura que identifiquei antes, porém o rosto é muito semelhante. Você também estava em meu sonho!

- Que sonho? – a pobre infeliz só se sentia mais confusa e assustada a cada instante. – Do que está falando? Quem são vocês?

- É você, não é? – Lisah perguntou subitamente, lançando sobre a misteriosa personagem um olhar bem sério. – Naquele pôster?

A elfa apontou com o olhar o cartaz fixado numa das paredes... e a humana, voltando-se discretamente para o mesmo, pareceu assustar-se ao encará-lo. Cobrindo a cabeça mais uma vez com o capuz, de forma rápida, virou-se em seguida de novo para frente e abaixou o semblante, fitando a madeira da mesa.

- Você é essa tal Kirinak? – quis confirmar Killyk.

- Sou... – ela admitiu timidamente, vendo que não poderia mais esconder seu segredo. – Mas por favor, não contem a ninguém...

- Nós não contaremos! – Caleb replicou num tom firme, mostrando à fugitiva que ela poderia confiar ao menos em si.

- Você realmente matou um homem? – o bardo inquiriu, olhos arregalados numa sincera demonstração de perplexidade.

- Foi um acidente... – Kirinak suspirou, novamente chorosa. – Se ao menos me dessem uma chance para explicar...

O assunto parecia causar grande dor na moça. Killyk, apesar de ser o mais temeroso em relação a ela, também aparentou ser o primeiro a reconhecer seu sofrimento, a expressão agitada abandonando sua face élfica para ceder lugar a uma consternada empatia. Lisah, que desde o navio vinha se mostrando um tanto fria em relação a assuntos que não lhe diziam respeito, endireitou-se no assento e, com os olhos fixos na humana, dispôs-se inteiramente a ouvir. Já o druida, menos aturdido, concluiu que a explicação de seu sonho poderia aguardar. A pobre garota devia estar passando por maus bocados, e nada custaria ouvir a versão que ela tinha dos fatos, ao menos por alguns poucos instantes:

- Quando bebê, eu fui deixada por meus pais na frente de um santuário das clérigas de Wella em Tyrnan, na parte oeste do continente. Acabei criada pelas sacerdotisas e desde cedo educada para me tornar uma delas assim que atingisse a maioridade. No entanto... não nasci para esse tipo de vida, uma existência tão rígida e regrada a ponto de eu nem poder sair às ruas da cidade. Sem contar que nem idolatro Wella ou qualquer outra dessas divindades impostas... Com isso, ao longo dos anos, foi crescendo em mim um intenso desejo de ir embora, abandonar aqueles muros para nunca mais voltar, ter minha própria vida... Meses atrás, durante o Festival de Outono em Tyrnan, minha esperada chance chegou. Mas nós nunca sabemos o que o traiçoeiro destino nos reserva... e, enquanto eu saltava através do muro para fora do santuário, acabei acidentalmente empurrando lá de cima um guarda embriagado que se lançou sobre mim... ele morrendo na queda.

Teriam as coisas ocorrido mesmo daquela maneira? Kirinak dotava suas palavras de uma triste sinceridade, que aos outros três ali presentes dificilmente soava como falsa. Ao que parecia, a trajetória da garota fora mesmo marcada pelo azar e pela tragédia. Ainda que houvesse sido mesmo um acidente, difícil seria provar sua inocência. E a julgar pelos pôsteres de “procura-se”, não eram poucas pessoas que se encontravam em seu encalço. Situação realmente complicada.

- Desde então vaguei pelas estradas destas terras durante meses, procurando me afastar o máximo de Tyrnan, até vir parar neste porto – ela continuou. – Agora estou tentando juntar dinheiro suficiente para embarcar no primeiro navio que me leve de Behatar. Não posso permanecer aqui. Não antes que me esqueçam.

Ao concluir sua exposição, lágrimas passaram a escorrer por seu rosto pálido, num choro baixinho e sofrido. Todos os demais se compadeceram – até mesmo os lobos, aparentemente. Massageando um dos braços de Kirinak na esperança de tranqüilizá-la, Lisah voltou-se para um arrependido Killyk e pediu:

- Vá até o balcão e peça um pouco de água para acalmá-la.

- Certo, certo... – ele se levantou um pouco atrapalhado. – Já estou indo!

O elfo atravessou então a taverna, ignorado pela maioria dos outros fregueses, indo ter com o atendente. Sempre simpático, sentou-se junto ao balcão de madeira e, apoiando nele ambos os cotovelos, indagou ao homem magro de barba:

- Poderia me providenciar uma jarra de água?

- São cinco peças de ouro! – o balconista informou de modo grosso.

- Aqui estão – levando uma das mãos aos bolsos, o bardo em seguida empurrou cinco moedas douradas na direção do funcionário, que foi então pegar o líquido.

Enquanto ele se voltava de costas para Killyk, este pôde observar melhor o ambiente atrás do balcão do estabelecimento. Existia ali uma extensa prateleira, presa à parede, contendo os mais variados tipos de bebidas. As garrafas alternavam-se em tamanho, cor, formato, volume... compondo espetáculo bastante divertido aos olhos. Os rótulos também variavam muito entre si, indo de rústicas e velhas etiquetas carcomidas a detalhados entalhes em alto relevo com letras e figuras estilizadas. Um desses recipientes, em particular, prendeu a atenção do bardo. Seu vidro era de um anil fosco, lembrando as próprias profundezas marinhas. Voltado para o elfo havia, desenhado sobre o revestimento, a figura de um humanóide traquinas de cauda de peixe e tridente em mãos, apoiado em cima de um rochedo e tendo ao seu lado o curioso nome da bebida: “Tritão Azul”. Tanto a figura quanto as palavras pareciam convidá-lo...

Era fato que não costumava recusar uma boa dose de licor ou vinho – até mesmo hidromel. Quando o pai ainda era vivo, em suas andanças por Astar, tinha o hábito de com ele dividir muitas canecas e garrafas quando se envolviam em festividades; o álcool, ao subir-lhes à cabeça, tornando-se até fonte de maior inspiração para os versos. O balconista retornou com a jarra de água... e Killyk pensou que não faria mal tomar um pouco daquelas bebidas. Animaria-lhe o espírito, e, estando mais espirituoso, poderia até alegrar a então inconsolável Kirinak. Lançando novo olhar sobre a prateleira, decidiu-se pelo Tritão Azul. Estava inegavelmente curioso em relação a ele.

- Senhor, gostaria de uma caneca daquela bebida ali! – o bardo apontou para a garrafa azulada.

- O Tritão? – o atendente replicou um pouco incerto. – É um licor bem forte, rapaz. Tem certeza de que não prefere algo mais leve?

- Será apenas uma dose... Não se preocupe.

- Bem, como é um dos meus mais antigos... O preço será dez peças de ouro.

Sem se incomodar com o valor normalmente considerado caro – correspondendo a uma garrafa inteira de outras daquelas bebidas – Killyk somente colocou as moedas sobre o balcão, aguardando ser servido...

Enquanto isso, na mesa em que permaneceram Lisah, Caleb e Kirinak, um incômodo silêncio predominava. A ausência de palavras contribuía para que a clériga fugida se tranqüilizasse, embora constrangesse um pouco os outros dois. Não sabiam ao certo, agora, o que fazer diante da revelação da moça. Enquanto o druida via-se na necessidade de revelar a ela o teor de seu sonho premonitório, não sabia como dizer tê-la presenciado, nele, dominada por uma aura maligna que a tudo aparentava destruir. Já a elfa alternava os olhos entre a face encapuzada e cabisbaixa da humana, e o cartaz anunciando a recompensa para quem a encontrasse. Era difícil pensar, por certo, o que fazer numa situação como aquela. E ninguém mais se manifestar só parecia piorar o quadro...

- O seu amigo está demorando a trazer a água... – Rosengard afirmou sem muita discrição.

- É mesmo... – concordou Lisah, lançando um olhar intrigado para o balcão.

Killyk Eleniak já havia tragado dois ou três goles do Tritão Azul.

E, num lampejo inebriado, concluiu que deveria ter dado ouvidos ao balconista.

O licor desceu incandescente por sua garganta tão habituada a recitar e cantar. Parecia fogo mágico – algo avassalador. Tão logo a ardência passou, o elfo emitiu um soluço, resultado da chegada da substância ao seu estômago vazio... e o álcool da potente bebida subiu-lhe à mente. Sentiu-se um tanto zonzo, extremidades do corpo dormentes... as portas da criatividade, sempre vigiadas pelas lindas musas, abrindo-se de uma só vez diante de seu limitado “eu”. Foi tomado por uma incrível vontade de entoar canções festivas, de declamar a todos ali versos perfeitos que eram lapidados dentro de sua imaginação pelas mãos agitadas da excitação alcoólica. Encontrava o êxtase, o ápice da inspiração. Sorrindo, visualizou pequeninos tritões anis voando pelo ar, atingindo o topo de sua cabeça e passando a brincar por entre seus cabelos arrepiados, espetando seu cocuruto com os tridentes sem causar qualquer dor ou incômodo ao bardo. Seu sorriso transformou-se numa risada debochada, achando graça em sua própria imbecilidade: a constituição física dos elfos não suportava nem uma dose completa daquela bebida tão forte!

Voltou a cabeça para a mesa em que haviam permanecido seus recém-conhecidos companheiros. Lisah e Caleb tinham caras fechadas, provavelmente estando bravos consigo. Eram mesmo uns chatos! Fitou a seguir Kirinak. A infeliz jovem possuía marcas de lágrimas em seu rosto, ainda derramando algumas sem que ninguém naquela taverna parecesse com ela se importar. Ele tinha de alegrá-la, afastar dela aquela tristeza esmagadora que a oprimia! Por isso viera para aquele continente, fora a missão dada por seu pai no leito de morte: trazer alegria ao mundo! E isso incluía livrá-la de tanto pesar, de tanto arrependimento e desespero...

Sem controlar suas palavras, virou-se de novo para o atendente e indagou, num tom quase cantado:

- Você conhece Kirinak, que fugiu do santuário de Wella em Tyrnan?

- Quê? – o funcionário replicou de modo um tanto confuso. – Ah, sim, a garota dos pôsteres de “procura-se”? Não, não que eu me...

Enquanto falava, o balconista lançou seus olhos novamente sobre o cartaz numa parede, em seguida observando os fregueses do estabelecimento àquele momento... e detendo-se na direção da jovem encapuzada que até então não percebera. Sua face estava mais à mostra do que antes, banhada em prantos, mas com seus contornos e parte do cabelo plenamente identificáveis. Memorizando-os, o homem tornou a contemplar o semblante retratado no pôster... e sentiu seu coração disparar.

- Encontrei! – berrou, num violento impulso, enquanto apontava com um braço para a suspeita. – A procurada pelo assassinato em Tyrnan está aqui na taverna!

Todo o recinto se aquietou. Os freqüentadores voltaram de imediato sua visão para a mesa em que Kirinak se encontrava com os demais – estes ficando praticamente congelados diante da enorme gafe cometida por Killyk. A clériga, por sua vez, também ficou sem reação, incapaz de pensar em qualquer estratégia que pudesse tirá-la daquela situação. Sua sofrida fuga aparentava ter chegado ao fim...

Mas não se dependesse do astuto Caleb Rosengard.

Levantando-se de sua cadeira de forma rápida, o druida apanhou em seguida o mesmo móvel e arremessou-o até o centro da taverna, mais precisamente na direção de alguns fregueses que já ameaçavam se erguer de suas mesas visando à procurada. Logo depois, agindo o mais depressa possível e causando surpresa naqueles ao seu redor, passou a gesticular com as mãos de uma maneira esquisita, realizando movimentos aparentemente padronizados no ar enquanto falava numa estranha língua:

- Wella, mo bandia, lig dom a chruthú ceo tiubh anseo chun éalú ó na Breathnaíonn wicked!

E, num processo no mínimo curioso, uma espessa névoa, semelhante a vapor, partiu do corpo do druida, envolvendo toda a área em torno de si a mais de cinco metros de distância... impedindo assim que quase todos no interior da taverna conseguissem visualizar qualquer coisa. Até mesmo Lisah, com sua visão élfica superior às das demais raças, pouco conseguiu se orientar em meio à repentina neblina. Aqueles que antes tencionavam avançar sobre Kirinak de imediato recuaram – alguns até se jogando sobre o assoalho aos gritos alegando ser aquilo bruxaria das mais perversas. Uma completa desordem se instalou no estabelecimento, a maior parte das pessoas caminhando às cegas enquanto os poucos que haviam ficado para fora da obscuridade tentavam retirar dela os demais. A região do balcão permanecera nítida, o atendente, com as mãos na cabeça, assistindo desesperado ao que ocorria, enquanto o embrigado Killyk, ainda bebericando o licor, mantinha-se sentado rindo, sem se dar conta do que provocara.

- Permaneçam próximas a mim! – bradou Caleb para Lisah e Kirinak.

As duas avançavam através da névoa como podiam, mãos estendidas para frente com o intuito de tatear Rosengard. Logo cosneguiram encontrá-lo, identificando com seus dedos a suja túnica, e permaneceram próximas ao seu vulto centralizado em meio à neblina mágica. Em seguida o druida, certificando-se de que ambas o acompanhavam de perto, assim como os lobos, dirigiu-se até o balcão, trazendo até ele a nuvem ambulante. O funcionário, assustado, abaixou-se atrás da estrutura e gritou, impotente diante da vil ameaça que aqueles estranhos pareciam representar:

- Guardas! Guardas!

A situação só parecia piorar. Enfurecido, Caleb esticou uma mão e agarrou o bardo de forma brusca por um dos braços, puxando-o a soluçar para junto do grupo. Trôpego, totalmente afetado pelo alto teor alcoólico do Tritão Azul, o elfo, ainda a rir, deixou-se arrastar cambaleando pelo humano, que se dirigia agora para a saída do estabelecimento. A balbúrdia ali continuava, fregueses correndo, saltando e caindo entre berros e xingamentos, tentando escapar daquela névoa que aparentava a tudo envolver. Devido ao desespero, sentiam até que ela os sufocava – apesar de esse efeito não passar de conseqüência do nervosismo que os dominara.

Sem maiores contratempos – apenas tendo de se desviar de um marinheiro desgovernado perto da porta – o grupo chegou ao lado de fora. E grande foi a surpresa dos moradores, vigias e funcionários do porto – sem contar os tripulantes dos navios ali ancorados – quando viram um misterioso e inexplicável foco de neblina deixar a Gaivota Azul e se deslocar pelo pátio do forte como se uma das nuvens do céu houvesse há pouco descido para tomar um gole de rum.

O destacamento de soldados, mobilizado pelos clamores do taverneiro, já se dirigia em peso até o estranho fenômeno, os sentinelas abandonando seus postos nos muros e torres e iniciando um cerco em torno do monte de névoa – espadas, arcos e bestas empunhados. Transeuntes fugiram apavorados; barracas de comércio foram quase de imediato fechadas por seus donos, dobradas aqui e ali e logo não passando de retos pedaços de madeira. O pânico se instalava em Tileade. E, para causar ainda mais receio, o apito do chefe da guarda ressoou repetidamente pelo local, seus silvos estridentes tentando manter a ordem e também intimidar aqueles que causavam problema. Estes, por sinal, ainda não-identificados atrás da cortina de fumaça que os protegia.

Caleb, no centro da neblina, logo viu que ele e seus acompanhantes já se encontravam cercados pelos combatentes. Apesar de não ousarem penetrar no vapor místico – um truque natural de fácil realização, ideal para situações como aquela – o druida sabia que reagiriam de maneira hostil caso vissem que a pequena nuvem tentava fugir por alguma direção. Junto a Rosengard, Lisah e Kirinak continuavam sem nada enxergar fora da névoa, mantendo-se apenas próximas àquele que a gerava. Já Killyk seguia soluçando e soltando indesejadas gargalhadas. Num dado instante até exclamou:

- Olhem só, quem fechou as janelas? Ficou tudo escuro!

Parando de se mover, o druida, olhando ao redor, tentou estudar todas as possíveis alternativas. Talvez melhor fosse, realmente, abrir caminho por entre os soldados até o portão, antes que acabasse sendo fechado. Graças à obscuridade gerada pela névoa, os guardas teriam dificuldade em atacá-los com precisão, não sendo muito difícil passar por todos. Quando ia avisar os outros sobre seu plano, porém... a neblina aos poucos foi se dissipando, como se sugada pelo próprio ar ao redor... e, ao dar por si, ela não existia mais. Ele, Kirinak, Lisah e Killyk, todos próximos e retraídos, encontravam-se agora plenamente visíveis e pegos de surpresa pelo desaparecimento da favorável camuflagem. Caleb reprovou-se mentalmente. Havia se esquecido não ser capaz, ainda, de sustentar aquela magia por mais de um minuto...

- Parados! – ordenou um dos vigias, apontando sua espada para os suspeitos.

Agora sim eles estavam enrascados...

(Continua na Parte II)