Heróis de Boreatia: a Perfídia de Macker

Capítulo V: Apuros em Tileade - Parte II


(Continuação...)

Hachiko, até então sentada confortavelmente à sombra da macieira existente diante do templo de Serinius, costas junto ao tronco da árvore, percebera também a confusão iniciada dentro da taverna e agora, intrigada, observava seus desdobramentos no centro do pátio do forte. Sem perder a calma e pouco se surpreendendo com o que testemunhava, cortava uma maçã em fatias usando uma bonita adaga dourada cujo cabo era cravejado de jóias – obra-prima das Ilhas Kartan – enquanto acompanhava os acontecimentos. A estranha nuvem escura que deixara o interior do estabelecimento, estendendo-se até uma certa distância em volta após passar pela porta de entrada, de modo repentino se desfizera; justamente quando os fugitivos em seu interior acabavam de ser cercados pelos sentinelas do local. A elfa não conseguia ver com muita clareza devido a estar um tanto longe da cena, porém alguns dos envolvidos pareciam ter viajado consigo a bordo do Briss. A julgar pelas vestes coloridas, um deles devia ser o bardo que cantara uma tradicional canção élfica no convés durante uma das noites. Uma pena ele agora ser preso, mas... era a vida.

Mordiscando um pedaço da fruta, Hachiko cogitou fechar os olhos e esperar quieta o término daquela bagunça para que pudesse deixar Tileade sem problemas; quando, projetando sua visão sobre o cerco uma última vez... viu uma garota humana de capa e cabelos castanhos que lhe chamou atenção. Associando isso ao fato de o grupo até então aparentemente tentar escapar do forte, a jovem, por via das dúvidas, apanhou de novo o pergaminho de “procura-se” que tomara para si... observando a face nele desenhada. A semelhança com a pessoa visualizada agora em carne e osso era inegável. Sua possível recompensa estava ali, em vias de conseguir fugir ou ser obtida por outras mãos...

Levantando-se rapidamente, maçã jogada ao chão, a elfa tratou de armar-se de imediato com seu arco. Não podia deixar aquela oportunidade passar...

O quarteto antes oculto pela neblina via-se agora, realmente, sem muita chance de fuga – ao alcance das espadas e sob a mira dos arcos e bestas brandidos pelos guardas. Os lobos, acuados, rosnavam para os oponentes – e talvez por isso muitos deles hesitassem em efetuar um movimento efetivo de aproximação. Todos os indivíduos no centro do cerco também demonstravam tensão, em menor ou maior quantidade, sendo que a mais afetada pelo nervosismo era, sem dúvida, Kirinak. Quase abraçada ao druida, a clériga procurada tremia, prestes a voltar a choramingar. A situação parecia apenas piorar para si, e não via mais esperança alguma de escapar à prisão... mas surpreendeu-se quando a elfa de cabelos negros, tatuagem de lua na testa e trajes brancos, que por sinal achara muito bonita, chegou mais perto de si, olhos mantidos na direção dos vigias e braços prontos, aparentemente, para sacar algo oculto dentro de seu traje. Levando o rosto até um dos ouvidos da jovem humana, Lisah cochichou, demonstrando inesperada confiança:

- Fique tranqüila. Eu darei um jeito de nos livrarmos desta.

- Como? – a outra replicou incerta, voz igualmente baixa.

- Quando eu mandar, você correrá rumo ao portão do forte.

- Correr? Mas e os guardas?

- Confie em mim. Apenas corra quando eu ordenar. Cuidarei do resto.

Era difícil para Kirinak crer que aquele plano daria certo, mas a elfa denotava tamanha segurança em sua fala, que ela julgou ser prudente lhe dar o benefício da dúvida. Talvez fosse, realmente, a única oportunidade que teriam para sair daquela situação. Caso fosse pega, ao menos teria tentado. É, valia a pena...

Nisso, um soldado de uniforme ligeiramente distinto dos demais adentrou o cerco – usando armadura de desenhos um tanto diferentes, a mesma se adequando perfeitamente ao seu corpo musculoso, e tendo uma capa azul às costas. A face era rígida, um bigode espesso e loiro aparentando até reforçar sua autoridade. Tratava-se do chefe da guarda, espada numa mão e apito na outra.

- É melhor terem uma boa explicação para isto, ou serão todos detidos por desordem! – exclamou ele abrindo caminho entre seus homens. – E, pelo que vejo, estão ainda por cima acobertando uma criminosa!

- Não sou uma criminosa! – Kirinak rebateu por impulso.

- Eu não o contrariaria na presente situação... – Caleb murmurou, aconselhando a garota.

O bardo, por sua vez, continuava bêbado. Cambaleando junto aos companheiros, resmungava coisas sem nexo – totalmente alheio ao grave quadro. O clima piorou. O chefe da guarda avançou cerco adentro, disposto a desarmá-los e prendê-los um a um... e Lisah concluiu que aquele era o momento. Voltou-se discretamente para Kirinak, deu-lhe uma piscadela... e sussurrou:

- Vá!

A clériga estremeceu, acreditando que seus pés não a obedeceriam e ela permaneceria ali, estática; porém conseguiu superar a insegurança e, sem olhar para trás... pôs-se a correr esbaforida rumo ao portão, o mais rápido que conseguia. Tinha de escapar. Tinha de confiar na elfa!

- Ela está fugindo! – bradou o comandante, apontando para a jovem. – Peguem-na!

Dois soldados se adiantaram, espadas em punho, para fechar o caminho da procurada... Mas não contavam – e nem ela mesma – com o que aconteceu a seguir. Assim que Kirinak começou a correr, Lisah aguardou dois segundos para partir em seu encalço, como se desejasse igualmente impedi-la – e tanto o druida quanto o embriagado Killyk creram nisso. Quando a dupla de sentinelas avançou para deter a clériga, a elfa saltou, ultrapassando-a como se houvesse errado um bote que visava derrubá-la... e levou ao chão, ao invés dela, um dos combatentes, sua armadura e arma se chocando com as pedras do pátio em baques férreos.

- Hei! – ele berrou, confuso. – O que está havendo?

- Ai, desculpe... – disse Lisah, com o rosto vermelho, enquanto se erguia. – Não foi minha intenção...

Então esse era o plano dela? Bom, surtira efeito, pois com o que fizera uma brecha fora aberta para que Kirinak continuasse fugindo. Desviando da estocada do outro soldado, prejudicado em seu ataque devido a ter se atrapalhado com a queda induzida do colega, seguiu correndo rumo ao portão – a ainda consideráveis metros de distância. Sem hesitar, sem retroceder, tentando ignorar o medo e a falta de fôlego, assim como os passos dos guardas que agora a perseguiam, para atingir seu objetivo... Até deparar-se, logo à frente, com um jardim de algumas árvores... junto a uma delas havendo uma aparente elfa, intrigantes cabelos prateados... e munida de arco voltado em sua direção, corda esticada, flecha pronta para ser disparada.

- Não, espere! – a clériga tentou argumentar.

Em vão, porém. O projétil foi lançado, Kirinak sendo obrigada a pôr em prática o pouco que aprendera nos treinamentos físicos com Elya para rolar pelo chão – abaixando-se a tempo de não ser atingida. Assim se esquivando, tornou a prosseguir rumo à saída do forte, a flecha que errara o alvo felizmente não atingindo nenhum daqueles que a perseguiam. A agressora misteriosa, no entanto, não se deu por vencida, inserindo outra seta no arco e a disparando. Ainda sem olhar para trás, a fugitiva sentiu-a passar bem próxima de si, quase atingindo seu tronco... indo se cravar numa das paredes do quartel. Ofegante, mas nada disposta a parar, a clériga persistiu... e atravessou o portão, começando a desaparecer de vista pela estrada levando ao norte...

Caleb, Lisah e Killyk também testemunharam o sumiço de Kirinak – ainda que este último sem um pingo de clareza. Os guardas que a perseguiam detiveram-se junto ao portão, não tendo sido autorizados a abandonar sua base no forte. Por entre eles, no entanto, abriu caminho uma elfa de cabelos cor de prata, arco em mãos, partindo também pela estrada no encalço da suposta assassina. Aparentemente era a mesma personagem que os outros dois elfos haviam visto de relance a bordo do Briss – ainda que o bardo agora estivesse bêbado demais para conseguir fazer tal associação. O chefe da guarda chamou de volta seus comandados com um assoprar do apito, dispondo-os em fila e passando a selecionar um pequeno destacamento para partir atrás da fugitiva. Já o trio de forasteiros, ainda imóvel no pátio, permanecia sob a vigília de alguns sentinelas. Foi quando Lisah mais uma vez se manifestou:

- Nós não temos nada a ver com ela! Fomos pegos de surpresa quando se utilizou de algum tipo de magia para criar aquela névoa e escapar da taverna, onde fora reconhecida. Acabamos tendo o azar de estar no lugar errado e na hora errada, podemos garantir.

A lábia da elfa, como Rosengard vinha constatando, era mesmo admirável. Até Anuk pareceu olhar para si com uma expressão de concordância em relação a seus pensamentos. Ao terminar de compor o grupo de cinco soldados que de imediato deixou Tileade para realizar buscas nas cercanias, o chefe da guarda aproximou-se dos três estranhos e afirmou, bastante sério:

- É possível que vocês estejam falando a verdade. Assim como podem não estar. Não descarto a possibilidade de serem cúmplices da criminosa, tendo favorecido sua fuga.

- Dê-nos uma chance de provar nossa inocência nesse incidente – pediu Lisah, mais séria e convicta ainda.

- Concordo com a minha amiga aqui, meu caro – apoiou o druida. – Sejamos justos.

- Hic! – soluçou Killyk, sendo ignorado.

O chefe da guarda coçou o queixo em dúvida, encarando cada um deles, ao que a elfa tornou a dizer:

- Nós nos dispomos a procurar a suspeita pelas redondezas, e trazê-la aqui caso a encontremos. Para garantir não ser apenas uma desculpa com o intuito de irmos embora impunes, pode ordenar que um ou mais de seus homens siga conosco.

Bela proposta. Seriam mais pessoas procurando a criminosa, aumentando assim as chances de detê-la. Aqueles forasteiros possuíam inclusive lobos, que poderiam farejar o rastro da procurada. O comandante estava realmente disposto a aceitar. Desejava impor uma condição a mais, porém:

- Certo, mas um de vocês fica aqui, para garantir que não tentarão nada. Caso não retornem dentro de algumas horas, essa pessoa será detida imediatamente.

Cabível. A questão era... quem ficaria para trás?

- O dia hoje está tão bonito! – exclamou o ébrio bardo, apontando para o céu azul e quase caindo para trás ao perder o equilíbrio. – Queria ter asas como um pardal e voar por entre as nuvens! Hic! Oh, que bonito...

Lisah e Caleb trocaram um olhar de acordo... e sorriram.

Kirinak corria, corria e corria. A estrada de terra parecia interminável; os arbustos e árvores de ambos os lados aparentando representar enorme ameaça, como se a qualquer momento estendessem seus galhos para capturar a fugitiva, conservando-a imobilizada até a chegada dos guardas do forte. A verdade era que, desde a noite de sua escapada do santuário de Wella, tudo parecia conspirar contra si. A tendência vinha se mantendo...

Após mais alguns minutos de carreira desenfreada, a clériga viu-se completamente sem ar e com suas pernas doendo a tal ponto que não conseguiria mais dar um passo sem descansar um pouco. Vencida pelas limitações de seu corpo, ela parou – um pouco mais tranqüila por julgar ter aberto boa vantagem sobre seus perseguidores – tomou ar, e saiu do meio da estrada, dirigindo-se até alguns ciprestes num de seus lados. Examinando as plantas, chegou a cogitar se esconder atrás delas até conseguir fôlego o bastante para voltar a correr, mas logo viu que a vegetação não era alta e não lhe renderia bom refúgio. Voltou sua atenção, então, para as árvores ao redor, não muito elevadas e de copas fartas... Era o que procurava!

Fazendo uso da experiência adquirida escalando as árvores do jardim do santuário quando mais nova, Kirinak, após uma ou duas pisadas em falso, conseguiu subir pelo tronco de uma delas sem muita dificuldade, alojando-se e ocultando-se, como podia, em meio à sua folhagem, ao atingir o topo. Por entre as aberturas da cortina esverdeada, a garota conseguia observar com relativa clareza o aspecto da estrada, sendo capaz de detectar a chegada de inimigos antes que eles presumivelmente a percebessem. Estava disposta a ali permanecer pelo mínimo de tempo necessário, até ter condições de continuar...

- Você vai descer daí, ou terei de derrubá-la à força?

Levando grande susto, que a fez agitar-se em meio à copa e com isso derrubar dela algumas folhas, a clériga constatou, ao olhar para baixo, que a mesma elfa de cabelos prateados de antes se encontrava aos pés da árvore, arco apontado para si. Pôde agora examiná-la mais de perto: tinha os olhos levemente puxados, diferente da aparência élfica padrão que conhecia – representada por Elya. E a visão dela devia ser muito boa para ter conseguido enxergá-la ali, além de ter acompanhado seu rastro com incrível eficácia. Bem, não havia muito que fazer agora... apenas tentar dialogar:

- O que você quer comigo?

- Eu tenho um pergaminho aqui informando haver uma boa recompensa para quem entregá-la às autoridades! – a adversária foi direto ao ponto.

- M-mas... eu não fiz nada!

- Não vim aqui para te julgar. Apenas quero levá-la de volta ao forte e receber o dinheiro! Desça logo daí.

- Não, por favor...

- Vamos, ou serei obrigada a usar mais algumas flechas... Desta vez lhe garanto que irei acertar!

- Você é tão bonita... e me parece também tão sábia, pelo modo como fala! Por favor, escute-me. Eu não matei aquele homem. Foi um acidente. Estava tentando apenas poder viver minha vida sem regras, sem imposições. Você não é natural deste reino, é? Então, como viajante, deve saber bem o que é ser livre, poder perseguir seus sonhos longe do jugo de pessoas que não a entendem. Eu lhe imploro... deixe-me ir!

Sim, a elfa entendia bem. E a humana realmente pareceu ter mexido num ponto fraco da arqueira. Ela manteve a arma apontada para o alto da árvore durante mais alguns instantes... e por mim abaixou-a, rosto também cabisbaixo. Será que a procurada conseguira transparecer sinceridade suficiente em suas palavras para convencê-la? Teriam as duas histórias parecidas, de algum modo? Isso a clériga ainda não seria capaz de responder, apenas suspirando aliviada por perceber que sua perseguidora aparentemente desistira de capturá-la. Falando agora num tom de voz bem diferente, todo o aspecto de imposição nela presente tendo agora se esvaído, ela pediu de forma calma, tornando a erguer os olhos levemente marejados:

- Desça. Não lhe farei mal.

- Mas...

- Pode confiar em mim.

Sentindo firmeza na desconhecida assim como antes sentira em Lisah – algo que lhe gerara bons frutos – a moça tranqüilizou seu coração e saltou da árvore, pousando de pé diante da elfa. Esta lhe estendeu então uma mão e se apresentou, sorrindo:

- Meu nome é Hachiko.

- Prazer – a outra correspondeu de modo tímido. – Sou Kirinak.

A alguma distância atrás, na mesma estrada, quatro indivíduos caminhavam lentamente, precedidos por um casal de lobos que, atento, farejava o caminho. Estes, como é de se supor, eram Anuk e Kiche – os quais, depois de instruídos por seus donos, pareciam agora seguir o rastro ali deixado por Kirinak. Quanto ao quarteto, dois deles eram Caleb e Lisah, lado a lado, andando atrás da dupla de guardas de Tileade destacados por seu comandante para acompanhá-los. O par de soldados parecia representar completos opostos entre si: o primeiro, cabelos grisalhos, entre seus quarenta e cinqüenta anos, demonstrava maior experiência e boa habilidade em combate armado, observando e ouvindo tudo pelo trajeto com o máximo de prontidão, pronto para golpear algo com sua espada – mortalmente – a qualquer momento. Já o outro, franzino e moreno, acabara de passar dos vinte anos e por certo era um recém-recrutado à tropa. Brandindo seu sabre da forma mais desajeitada possível, o mesmo inclusive já tendo caído de sua mão algumas vezes desde o forte, parecia contemplar tudo de maneira assustada, incerto sobre como agir quando o perigo surgisse. Um novato que ainda tinha muito a aprender...

De qualquer modo, ambos, inclusive o mais maduro, aparentavam ser adeptos de hábitos descuidados, já que caminhavam à frente do druida e da elfa, totalmente à mercê de algum ataque que tentassem desferir pela retaguarda. Estes, aliás, vinham planejando desde Tileade uma maneira de derrubá-los e verem-se livres. Aguardavam apenas o momento certo...

- Vocês são de onde? – perguntou o mais velho aos forasteiros.

- Astar – Lisah replicou seca.

- Do norte de Behatar – Caleb respondeu também sem muito entusiasmo. – Floresta Negra.

- Da Floresta Negra? – o sentinela mais novo riu. – Ninguém consegue viver no meio de um lugar selvagem como aquele! Você é o que, um druida?

Rosengard preferiu manter-se calado diante da suposição...

- Os lobos de vocês parecem bem determinados a encontrar a assassina... – observou o soldado mais experiente.

- É, eles são bons nisso... – Caleb murmurou.

O guarda deu uma breve risada, em seguida tornando a focar sua atenção no caminho adiante. A elfa e o druida, por sua vez, trocaram um olhar de cumplicidade. Talvez aquele fosse o momento esperado. Fazendo um leve gesto com a cabeça, Lisah apontou para o bordão de madeira de Rosengard, este assentindo. Era a arma ideal para nocauteá-los, por certo.

Avançaram mais alguns metros pela estrada, os soldados no ápice da distração... até que Caleb, puxando ar para os pulmões, investiu com o bastão contra o guarda mais velho – alvo prioritário por se mostrar melhor em combate. O golpe atingiu-o em cheio na nuca, seu corpo desfalecendo de imediato e encontrando a terra do caminho num baque metálico, devido à armadura. Poeira foi erguida e o som mostrou-se um tanto alto, os dois atacantes já se preparando para lidar com o surpreendido combatente novato... mas este, por mais incrível que pareça, não percebeu a queda do colega. Ao invés disso, continuou caminhando tranqüilo como se nada houvesse acontecido – e para ele, de fato, assim as coisas se achavam. A sorte sorria inesperadamente para a dupla de suspeitos. Seria bem mais fácil livrar-se do guarda restante do que haviam suposto...

- É uma tarde bonita, não acham? – indagou o recruta, alegre. – Se bem que aquelas nuvens escuras no horizonte dão a entender que logo virá chuva...

- Pois é... – Lisah anuiu num tom de enfado, lançando outro olhar estratégico para o druida.

Posicionando-se exatamente atrás do alvo, que seguia andando a acompanhar os lobos, Rosengard preparou o bordão em mãos para mais uma investida, efetuando-a ao deslocar de leve seu corpo para frente... e errando, a ponta do bastão passando a poucos centímetros da cabeça do jovem – chegando até a resvalar em seus cabelos, sem que ele no entanto percebesse.

- Ah, parece que estou sentindo um vento nas minhas costas, é chuva mesmo que vem vindo, hehe! – riu o tolo vigia.

- Eu diria que está mais para tempestade... – murmurou Caleb.

Mais alguns passos depois, o bordão singrou de novo o ar... tornando a errar. Contribuíam para tais fracassos tanto o ritmo incerto do soldado ao se deslocar, quanto a falta de costume do druida em utilizar seu bordão como arma. Ele começava a se irritar... porém não podia desistir. Após fitar brevemente uma impaciente Lisah, segurou firme a haste em suas mãos, dispondo-se a fazer daquela terceira tentativa a decisiva...

- Vocês estão quietos, o que...

Justo quando Rosengard moveu o bastão para atacar, o guarda se voltou para trás e enxergou a tempo a ameaça contra si. Demonstrando reflexos rápidos, o alvo conseguiu se abaixar, evitando o golpe. Logo depois, trêmulo, ergueu sua espada para reagir, mantendo-se numa postura defensiva.

- Não sairão livres desta! – ele ameaçou demonstrando incrível nervosismo, sem acreditar em suas próprias palavras.

- Oh, sim, nós vamos.

A afirmação foi feita por Lisah, que surgiu repentinamente ao lado de Caleb... com uma espada, sacada não se sabe de onde, na mão direita. O sabre era extremamente bonito, possuindo cabo prateado e lâmina longa, nela gravadas diversas inscrições na língua élfica. A mulher apontou a arma para a garganta do soldado – mantendo-a estendida a poucos centímetros de tocá-la – e falou ao novato de forma amedrontadora, sua voz e seu rosto dominados por espantosa agressividade:

- Você nos deixará ir, ou sofrerá as conseqüências. Não nos subestime. Somos bem piores que a tal suspeita de assassinato. Basta ver o que fizemos há pouco com seu amigo. E se ousar contar a verdade sobre o que houve aqui ao chefe da guarda do porto ou qualquer outra pessoa, nós o encontraremos em qualquer lugar que estiver, e o puniremos por ter uma língua grande.

Aquela elfa só vinha surpreendendo Caleb mais e mais – talvez até chegando a assustá-lo um pouco. Já no referente ao sentinela, podia-se dizer que ele se assustara muito. Quando a agressora fez referência a seu companheiro, o recruta olhou para trás, só então percebendo o colega de destacamento caído metros antes na estrada: desmaiado ou, na pior das hipóteses, morto. Ambos os lobos, agora, rosnavam para si. Tremeu ainda mais, suando frio e com seus olhos emitindo um brilho de pavor ao encararem os de Lisah...

Até que, vencido pela covardia, o guarda emitiu um berro, soltou sua espada – quase a atirando longe – e colocou-se a correr desesperado de volta pelo caminho, rumando até Tileade. Realmente tinha muito que aprender...

- Isso que eu chamo de poder de persuasão! – exclamou Rosengard, aliviado.

- Não foi nada... – suspirou a elfa, guardando a espada numa bainha extremamente bem-escondida sob suas vestes brancas que antes pareciam nada ocultar. – Ele era um fraco. Só teremos agora de tomar mais cuidado pelo trajeto, levando em consideração também haver uma outra patrulha vinda do forte pelas redondezas.

Nisso, Anuk e Kiche já prosseguiam pela estrada, voltando a farejar o rastro de Kirinak.

- Vamos! – apontou Lisah.

E, tornando a utilizar seu bordão somente como apoio para caminhar – função que não exigia de si habilidades cuja falta o colocaria em risco – o druida seguiu-a.

Mais à frente na estrada, junto à árvore onde há pouco Kirinak tentara se esconder, ela e Hachiko, sentadas silenciosas perto de alguns arbustos, descansavam um pouco para logo seguirem adiante. A elfa de Kartan garantira estarem seguras fazendo isso – comprometendo-se até a defender a clériga fugida com seu arco e suas flechas se visse necessário. Era incrível como o ímpeto da estrangeira mudara em relação à procurada, desistindo de capturá-la para agora se prontificar a protegê-la. Recordando-se mais uma vez de sua fala implorando por clemência, a humana tornou a imaginar o que movia aquela bela arqueira, e o que possuíam em comum para tamanha empatia ter sido gerada. Achou melhor não perguntar nada a ela, todavia. Era curiosa por natureza, mas fazer indagações poderia acabar irritando-a e mudar a opinião dela a respeito de si. Encontrava-se numa condição em que não deveria, de forma alguma, irritar os poucos que a ajudavam. Seria por demais delicado...

Súbito, Hachiko levantou-se da relva e, ágil como uma lebre, apontou o arco para o sentido da estrada de onde tinham vindo, já com uma flecha em seu bojo. Com o coração a palpitar ansioso em seu peito, Kirinak também se ergueu e, temerosa, estreitou os olhos para tentar visualizar quem vinha pelo trajeto – coisa que a elfa já conseguira determinar com clareza graças à sua visão superior. Uma pequena quantidade de poeira era levantada pelos passos dos dois recém-chegados; um homem e uma mulher, aparentemente. Chegaram mais perto, podendo ser então melhor identificados: a clériga reconheceu-os de imediato como o eremita estranho e a elfa bonita da taverna do porto, ambos despreocupados – ainda que atentos – e sem sinal de quaisquer perseguidores. Já Hachiko determinou ambos como parte dos envolvidos na confusão ocorrida em Tileade, a elfa de cabelos negros e tatuagem na testa sendo uma das viajantes do Briss. Faltava ali, apenas, o jovem elfo de vestes coloridas...

- Então aí estão vocês! – sorriu Lisah, aproximando-se.

Já o druida constatava como a Roda da Fortuna era brincalhona, pois se reuniam novamente, com exceção do bardo, todos os presentes em seu sonho profético – agora em suposta segurança. Tinha apenas de aguardar o melhor momento para explicar tudo melhor a eles; principalmente a Kirinak, que ainda desconhecia os detalhes e ignorava poder vir a se tornar uma entidade maligna em meio a uma floresta em chamas. O importante era que o destino aparentava conspirar para permanecerem juntos, e assim deveriam se conservar. Caleb esperava, desse modo, evitar a calamidade que tanto o perturbava desde que fora por si prevista...

- Eu tenho de agradecer a vocês por terem me ajudado a escapar... – disse a suspeita de assassinato, tímida, com os olhos fixos no chão. – Mas não quero gerar complicações a vocês. É melhor que sigam seus próprios caminhos, enquanto tento seguir para um outro porto em busca de um navio...

- É bom estar mesmo agradecida, pois realmente nos arriscamos para salvar sua pele! – afirmou Lisah, simpática apesar da frase um tanto dura.

- Sim, de fato – concordou Rosengard, batendo com seu bordão contra o solo. – Principalmente a senhorita Lisah aqui, que encenou uma bela queda sobre um dos guardas durante o cerco.

- Aquilo não foi nada... – falou ela num tom evasivo, tentando desviar o assunto. – Mas vejo que acabou auxiliada por mais alguém...

A elfa morena se referia claramente à de cabelos prateados, que só então abaixou seu arco. Mantendo um semblante sério, ainda que não tão hostil aos desconhecidos, manifestou-se:

- Apenas fiz o que achava certo, tanto antes quanto agora. Creio que devemos refletir sobre o que Kirinak falou: vamos então cada um seguir seu próprio caminho?

Questão difícil. Caleb desejava realmente que eles não se separassem, pois havia sido uma dádiva poder encontrar e reunir as pessoas de seu sonho – ainda que faltasse uma delas – de maneira tão simples, quase por acaso. Queria permanecer junto delas para poder conhecer melhor cada uma, compreendendo quem eram, o que faziam e o que visavam – dessa maneira sendo capaz de entender e prevenir a catástrofe com a qual sonhara. Tendo isso em mente, deu sua opinião:

- O que o destino une por intermédio dos deuses, não cabe aos mortais separar. Para mim, deveríamos ficar juntos após termos nos encontrado em tão pitorescas circunstâncias. Não importa para onde irão. Caso continuem em grupo, eu os acompanharei para onde quiserem viajar.

Certo. Os demais se entreolharam, aguardando quem seria o próximo a se decidir. Kirinak fechou a cara por alguns instantes, a menção a “deuses” não a tendo agradado nem um pouco. Lisah tomou a palavra, mas não para se manifestar claramente a favor ou contra à separação, e sim tornar as coisas mais claras:

- Não seria melhor cada um dizer para onde está indo? Quem sabe alguns de nós não possuímos o mesmo destino?

- Eu os seguirei para qualquer lugar, conforme havia dito – afirmou o druida.

- Viajo para o extremo norte do continente, numa demanda pessoal – explicou Hachiko.

- Eu tenho de seguir até a capital Borenar, para tomar parte nas festividades da coroação do novo rei – revelou Lisah. – E você, Kirinak?

A garota humana, de capuz erguido, coçou a cabeça, mexeu os pés de maneira insegura, e em seguida replicou:

- Eu realmente não tenho local definido para onde ir. De preferência uma cidade costeira onde eu possa embarcar para fora de Behatar. Pensei em rumar até Serinia, que fica ao norte, mas...

- Por que não tenta pedir perdão perante o novo rei? – Caleb indagou de repente. – Aí deixaria de ser perseguida!

Todos foram surpreendidos pela idéia do druida, mas ela era por certo bastante sábia. Era costume em quase toda Boreatia, durante a cerimônia de coroação de um novo monarca e nos primeiros dias decorrentes, o soberano distribuir benesses entre seu povo, desde o perdão de dívidas e pequenos delitos, até o abrandamento de penas para crimes mais graves. Se Kirinak procurasse o rei e implorasse por clemência, ainda mais alegando inocência e por ser tão jovem, era bem possível que ela lhe fosse concedida. Poderia ao menos tentar.

- É mesmo! – concordou Lisah. – Pode seguir conosco até a capital para falar com o rei. E você, Hachiko, já que viaja para o extremo norte, também pode nos acompanhar, se quiser. Borenar está bem no caminho.

A elfa de Kartan pareceu pensar por um momento, logo respondendo:

- Certo, eu os acompanharei. É melhor mesmo se deslocar em grupo por estas estradas hostis.

- Eu também vou... – disse uma encabulada Kirinak. – Apreciei a idéia de Caleb. Irei tentar...

- Então, podemos continuar? – inquiriu Rosengard.

A resposta da clériga foi cair sentada em cima da grama, ainda exausta. Nunca correra tanto assim em sua vida, e teria de passar mais algum tempo descansando. Já Hachiko, assoviando, encaminhou-se até a mesma árvore em que a fugitiva antes subira, sentando-se despreocupadamente sob sua refrescante sombra. Lisah, por sua vez, parecia impaciente em relação a algo, olhando ao redor como se quisesse fazer alguma coisa antes de prosseguir.

- Entendi, entendi... – murmurou o druida diante das manifestações dos novos companheiros. – Vocês querem passar um momento ou dois descansando, correto? Pois bem. Só não vamos demorar muito. Há uma outra patrulha de guardas do forte vistoriando os arredores, e não queremos ser encontrados. Estamos perto do início do trecho pavimentado deste caminho, porém. Se nos pusermos de novo a andar dentro de pouco tempo, será mais difícil para eles seguirem nosso rastro.

Ninguém pareceu dar muita importância às palavras de Caleb – cada um preferindo cuidar de seus próprios assuntos ou repouso. Anuk lançou um olhar desapontado para o druida; este, bufando, acabando por se sentar também em meio à relva. No horizonte, conforme o soldado novato há pouco apontara, realmente se reuniam nuvens escuras. Encontrariam chuva cedo ou tarde...

E, quando deu por si, apenas Kirinak e Hachiko continuavam ali... Lisah e sua loba tendo misteriosamente desaparecido.

Ignorando o que poderia ter a elas acontecido, simplesmente rebaixou o tronco, deitando-se na grama. Em contato com a vegetação, conseguia pensar melhor... e recobrar suas forças. Precisaria. Sabia que aquela aventura estava apenas em seu mais tenro início...

Ali permaneceram descansando por alguns minutos. Após esse tempo, partiu da própria Kirinak a iniciativa de levantar-se e chamar os demais a continuarem. Temia ter de escapar novamente de algum cerco – e dessa vez talvez não pudesse contar com a sorte. Hachiko e Caleb também se ergueram, preparando-se para tornar a andar, porém Lisah ainda não havia retornado de aonde quer houvesse ido. Teria abandonado o grupo às escondidas, preferindo na verdade viajar sozinha?

A resposta veio quando a elfa de cabelos negros reapareceu junto com Kiche, vinda de uma área mais densa da mata próxima à estrada sem que pessoa alguma a houvesse visto nela entrar. Encontrava-se, no entanto, um tanto diferente – como os demais logo notaram...

Ela usava agora trajes escuros, uma mistura de túnica e vestido na cor preta, de contornos totalmente distintos da vestimenta alva de antes. Além de mais detalhada e supostamente cara, a nova peça parecia melhor se adequar ao corpo atlético da elfa, a parte inferior possuindo aberturas segmentadas que deixavam mais visíveis suas pernas. A roupa, no entanto, não compunha a única mudança. Os cabelos de Lisah estavam agora muito mais longos, caindo-lhe em compridos fios sedosos até praticamente sua cintura. O primeiro pensamento dos presentes foi tratar-se de uma peruca, porém as mechas eram naturais demais... Até que Hachiko, mais acostumada àquele tipo de coisa devido às atividades escusas muito praticadas em sua terra natal, compreendeu o truque. A cabeleira da elfa antes estava presa num cuidadoso penteado que, ocultando embaixo de si mais da metade do cumprimento de seus fios, deixava entender que os segmentos visíveis se encontravam em seu tamanho normal, cortados nas pontas e se estendendo somente até seus ombros. Quando o penteado era desfeito, porém, os cabelos se desenrolavam em toda sua extensão, mostrando-se na realidade bem mais longos. Bastante arrojado, convinha se dizer.

- Mudando a aparência para evitar pôsteres de “procura-se”? – indagou Rosengard, sorrindo.

- Digamos que sim... – Lisah, não muito disposta a dar explicações, já se colocava a caminhar novamente pelo caminho junto com sua loba.

- Você é cheia de segredos, não?

Ignorando o druida, ela seguiu andando... passando a ser acompanhada pelos demais...

Como Caleb dissera, a estrada logo se tornou pavimentada, coberta por blocos de pedra ali fixados pelas mãos calejadas dos antigos centuriões do Império Boreal. Árvores e arbustos eram vistos de ambos os lados, as primeiras horas da tarde transcorrendo com a proximidade da chuva. Todos, exceto Hachiko, começavam a sentir fome – porém seria mais prudente cobrirem uma boa distância antes de pararem novamente com o intuito de comer. O único problema, no caso, era desconhecerem o caminho: Rosengard e Kirinak sabiam que o rio Northar encontrava-se logo à frente; porém ambos, na ida até Tileade, o haviam atravessado por outros caminhos, ganhando somente aquela que era a estrada principal quando já se aproximavam do forte ao sul. As duas elfas eram estrangeiras e, desconhecendo completamente o terreno, também não seriam de grande ajuda. A de cabelos prateados trazia consigo o mapa que lhe fora deixado pelo tio, mas não desejava consultá-lo na frente dos demais. Isso levaria a perguntas e não queria que qualquer outra pessoa além de si soubesse do tesouro que a aguardava...

Apesar de tudo parecer correr de maneira mais tranqüila, eles podiam jurar estar esquecendo algo... Que poderia ser?

- O bardo! – Lisah exclamou num dado momento.

- Que bardo? – Caleb rebateu.

- Aquele elfo de harpa, que se embriagou na taverna e causou toda aquela confusão... Ele permaneceu em Tileade como garantia de que não tentaríamos nada contra os guardas! Neste momento já deve ter sido detido!

- Vamos fazer algo por ele? – questionou Hachiko.

- Eu não acho que deveríamos... – Kirinak resmungou contrariada. – Se não fosse por ele eu estaria sem a metade dos problemas que tenho no momento. Por que teve de abrir a boca sobre mim para aquele balconista?

- Não conheço Killyk muito bem e por isso não posso afirmar com tanta certeza, mas pelo que pude depreender ao conversar com ele durante a viagem e depois de desembarcar, é um sujeito de bom coração – opinou Lisah. – Deve ter feito aquilo ao se atrapalhar devido ao álcool que lhe subiu à cabeça. Foi desastroso, convenhamos, mas não estou tão certa se intencional...

- Vamos voltar atrás dele ou não? – insistiu a elfa arqueira.

- Regressar até Tileade agora seria suicídio! – a clériga estava ficando ainda mais nervosa.

- Então continuemos! – o druida disse num tom firme, passos determinados. – Se já foi vontade dos deuses que todos nós nos encontrássemos uma vez, então creio que eles também trarão de volta Killyk até nós. Sigamos. Pode haver soldados em nosso encalço.

Assim o fizeram, Kirinak murmurando algo em discordância por um breve momento...

Avançaram então por aquelas paragens; o druida, que conhecia melhor a região, caminhando à frente. A paisagem de árvores e ciprestes persistiu por mais algum tempo, logo estes segundos passando a predominar sobre os primeiros. A floresta adjacente à estrada parecia se abrir, ser cortada por algo. Até que, depois de menos de uma hora a mais de trajeto, eles viram do que se tratava. Ou melhor, admiraram, pois aquilo merecia a mais reverente contemplação, em sua grandeza...

- Aqui estamos! – falou Caleb apontando com o bordão para as águas. – O rio Northar!

O vasto curso d’água constituía o principal rio do continente de Behatar, apresentando, àquele ponto, uma extensão de centenas de metros para ser atravessado. Nascia no Lago Comaey, bem ao norte, para depois contornar parte da área ao redor da capital Borenar, cruzar um segmento da Floresta Negra e, entre curvas e alternâncias em seu volume, ir finalmente desaguar na porção sudeste daquela península. Rio lendário, nomeado em homenagem ao Senhor dos Deuses, quando o Império Boreal sequer ainda existia e a antiga Terrodin era centro do poder naquelas terras. Rio que fora renomeado como “Tinner” – que quer dizer “forte” – pelos governantes da Liga do Norte, por não adorarem nenhuma divindade senão Swordanimus. Mesmo rio cujas águas, cem anos antes do Crepúsculo dos Deuses, foram convertidas em sangue como sinal das calamidades que ainda viriam. E também rio que, durante o Crepúsculo dos Deuses em si, teve seu volume de água assustadoramente aumentado, alagando todas as áreas vizinhas numa imensa onda que emitiu um estrondo soturno ao ir se desmanchar no mar. Manifestação máxima da ira de Northar contra os mortais que tanto o insultavam...

Um rio histórico, vasto, bonito e imponente. Que agora seria atravessado por aquele despojado grupo de aventureiros.

Felizmente, eles não teriam de nadar. Dando continuidade à estrada pavimentada, uma extensa ponte de pedra fora erguida acima do curso d’água em tempos imemoriais, seu comprimento levando a crer que tomaria dos viajantes alguns bons minutos para ser transposta. A estrutura erigida sobre um conjunto de bonitos arcos, no entanto, não levava diretamente à margem oposta, onde árvores frondosas e arbustos frutíferos podiam ser avistados. Conduzia, na verdade, a uma espécie de ilha de médio tamanho situada bem no meio do rio, sendo de se supor que dela partia uma outra ponte que concluía a travessia até o outro lado – ainda que não pudesse ser enxergada dali. O que bloqueava a visão, na formação de terra, era uma construção de dimensões consideráveis, aparentemente dois andares, com várias dependências e janelas, arquitetura típica de um castelo – ainda que não possuísse muros. O que mais chamava atenção nela, no entanto, era seu aspecto enegrecido, as paredes desgastadas e escurecidas pelo tempo, assim como os vidros quebrados e pregados com tábuas, conferindo-lhe preocupante caráter atroz e corrompido. Todos os integrantes do grupo sentiram certo receio ao encararem a edificação, ainda que à distância. Não parecia haver boa coisa ali...

- Onde estamos? – inquiriu Lisah, mantendo ainda a esperança de que alguém ali pudesse isso lhe esclarecer.

- Eu não sei, tenho apenas uma suspeita... – murmurou Rosengard encarando o caminho adiante, horizonte já plenamente dominado por nuvens negras que pareciam complementar a aparência perturbadora da misteriosa construção. – Para confirmá-la, teremos de atravessar a ponte.

- O que estamos aguardando então? – sorriu Hachiko, arco em mãos.

Iniciaram em seguida a travessia, seus pés pisando o milenar calçamento daquele trajeto de pedra que resistira a tantas calamidades e guerras... levando alguns instantes para notarem que alguém não os acompanhava. Voltando-se para trás, viram Kirinak, estática, de pé junto ao início do caminho, uma expressão preocupada no rosto e parecendo até uma estátua que desejava se fundir à estrutura da ponte. Impaciente, o druida retornou alguns passos e indagou:

- O que há de errado?

- Têm certeza de que esse é o caminho mais seguro para cruzar o rio? – perguntou a clériga, demonstrando grande inquietude.

- E que outro caminho você vê nas redondezas? Deslocando-nos pela margem em busca de pontes diferentes, com certeza seríamos surpreendidos pela patrulha do forte!

- É que pensei em fazermos uma canoa... ou uma jangada. Para atravessar pela água. Mais difícil de alguém nos pegar...

Lisah e Hachiko se entreolharam bufando. Caleb cruzou os braços, contendo sua irritação. E, somente de fitar os semblantes carrancudos dos companheiros, Kirinak concluiu que a idéia era inviável. Mesmo um tanto contrariada, pôs-se a segui-los. Melhor seria do que acabar deixada para trás sozinha...

Andaram cerca de cinto minutos e se encontravam quase na metade da ponte. Era incrível como os povos antigos haviam conseguido erguer tão admirável obra de engenharia, capaz de cobrir metade de um rio tão largo e possuir alicerces tão firmes em seu fundo. Os blocos de pedra compondo o caminho haviam sido todos encaixados com o máximo de esmero, não se encontrando na estrutura nenhuma falha, muito menos rachadura. Os arcos dispostos acima da água pareciam todos perfeitamente simétricos entre si, como se os construtores realmente houvessem calculado cada um aos mais mínimos centímetros. Prestando atenção a esses curiosos detalhes, o trajeto parecia ter seu tempo encurtado... Porém logo algo estranho foi visto à frente. Ou melhor, alguém.

- Quem é aquele homem? – perguntou Hachiko, a primeira a vê-lo devido à sua já aguçada visão élfica e ainda mais bem-treinada devido ao uso do arco.

- Não sei... – Lisah estreitou seus olhos. – Um estranho...

- Apenas continuemos a andar – recomendou Rosengard. – A via é pública, não me espanta encontrarmos outras pessoas nela.

As duas elfas assentiram, mas Kirinak, apesar de também seguir caminhando, tomou a traseira do grupo. Tinha um mau pressentimento a respeito daquele indivíduo, certa de que sua cota de azar aquele dia ainda não se esgotara. Caso algo de ruim acontecesse, ao menos seus companheiros de viagem a protegeriam de início... ou assim esperava.

Eles foram se aproximando do estranho – e os contornos deste se tornaram mais nítidos. Encostado de pé ao parapeito de um dos lados da ponte, tratava-se de sujeito bem-equipado, por certo ciente dos perigos que as estradas de Behatar então ofereciam e precavido devido a muito se deslocar através delas. Vestia armadura prateada, um pouco maior do que o aparente tamanho de seu corpo, por isso a ele não se adequando muito bem. Trazia uma besta pendurada às costas, uma bainha com uma espada longa à cintura e, assoviando, usava àquele momento uma adaga, provavelmente transportada numa de suas botas, para limpar a sujeira das unhas de uma mão. A canção desafinada que seus lábios sopravam logo chegou aos ouvidos dos recém-chegados, que também puderam observar sua face com clareza: pele branca, cabelos pretos curtos e um cavanhaque da mesma cor junto ao queixo. Os contornos eram amedrontadores. Característicos de alguém que vivia de matar seus semelhantes...

O grupo nem teve tempo de abordar o indivíduo para confirmar ou não suas más impressões, quando ele moveu-se da beirada da travessia, ainda assoviando, e posicionou-se de frente para os aventureiros bem no meio da ponte, com o claro intuito de detê-los ao menos temporariamente. Hachiko levou os dedos instintivamente à corda do arco e Lisah já se preparou para sacar algo de baixo de seu traje, quando o desconhecido exclamou, voz áspera, num breve e debochado riso:

- Desculpem, mas não posso permitir que prossigam!

Ótimo! Kirinak, um tanto trêmula, procurou se manter segura e escondida atrás daqueles que esperava poder chamar de “amigos”. O homem estranho possuía mesmo um mau intento. Se ao menos os demais houvessem ouvido o conselho da clériga a respeito de atravessar o rio a bordo de uma jangada...

- E podemos saber o motivo? – indagou Caleb, parando de andar e apoiando-se em seu bordão.

- Não deixarei que passem por esta ponte com aquilo que é meu...

Dizendo isso, o hostil personagem guardou sua adaga numa das botas e apanhou algo que também carregava às costas, até então oculto aos outros viajantes. Tratava-se de uma espécie de pergaminho enrolado. Após desatar uma pequena corda que o prendia, ele abriu-o e estendeu-o na direção dos outros. Era mais um cartaz de “procura-se” retratando o rosto de Kirinak, igual aos encontrados em Tileade. A fugitiva estremeceu, cogitando sair correndo dali; mas ao lembrar-se de que por onde viera a patrulha de soldados do forte a procurava, concluiu que se fizesse isso acabaria cercada. Pensou até mesmo em jogar-se no rio, porém a correnteza e a profundidade, somadas ao fato de nunca ter realmente nadado, a desencorajavam de tal plano. Teria mesmo de permanecer ali, com aqueles recém-conhecidos aliados, e torcer para que resolvessem a situação da melhor maneira possível.

O ameaçador sujeito tornou a enrolar o pôster, guardou-o consigo e, com os lobos rosnando para sua pessoa, explicou:

- Não vou negar: sou um caçador de recompensas. Vivo como mercenário. Fui contratado para trazer viva uma clériga procurada por assassinar um homem em Tyrnan, durante o último Festival de Outono. Meroah Jent, sacerdotisa-mor do santuário de Wella, irá me pagar oitocentas peças de ouro por essa garota. Eu a venho seguindo desde os arredores de Garuny e, deduzindo que ela encontraria algum tipo de problema ao tentar embarcar num navio em Tileade, mantive-me nas redondezas aguardando que reaparecesse acuada... Só não contava que não viria sozinha...

O nome “Meroah Jent” fez Kirinak sentir calafrios. A situação já era nada boa para si, mas ser levada a visualizar novamente, em seus pensamentos, a autoritária figura da sacerdotisa-mor, foi o ápice para seus já maltratados nervos. Com lágrimas a lhe escorrerem dos olhos, bradou ao inimigo:

- Eu não fiz nada! Você não irá me levar!

- Ah, vou sim – ele respondeu, confiante. – E desejo fazer uma proposta aos seus amigos. Se eles me pagarem oitocentas peças de ouro, eu deixarei que você siga livre. Não é lá grande recompensa, e como você é “peixe pequeno”, darei essa colher de chá. Mas caso não aceitem, então serei obrigado a lutar com vocês todos até poder levar embora a menina. O que me dizem?

A resposta do grupo foi empunhar suas armas. Caleb agarrou firme o bordão, erguendo-o novamente numa postura de luta. Hachiko levantou o arco já munido de uma flecha, mantendo-o apontado, com a corda esticada, na direção do mercenário. Já Lisah sacara a mesma espada ornamentada de antes... e uma segunda com a outra mão, possuindo aparência quase idêntica à primeira – apenas as inscrições em élfico na lâmina diferindo, ao que parecia. Passou a manter, assim, um sabre em cada punho. Somente Kirinak permaneceu sem ação, olhando ao redor aturdida buscando um jeito de se livrar daquela alarmante situação. Ao menos seus companheiros não a haviam entregado ao algoz, dispondo-se a defendê-la; mas isso não a deixava em estado muito mais animador. Talvez conseguisse correr pela ponte no sentido da ilha em meio ao calor da luta que ameaçava se iniciar...

- Já que vocês querem assim, então... – murmurou o caçador de recompensas, retirando sua espada da bainha.

E lançaram-se em combate.

A elfa de Kartan disparou de imediato o projétil do arco contra o adversário, este desviando num salto para a direita, a seta indo perder-se nas águas do rio. Pronunciando palavras numa língua estranha, aparentemente a mesma que antes utilizara para conjurar a névoa em torno de si, o druida ordenou que Anuk atacasse. O lobo avançou ligeiro rumo ao mercenário, que logrou repeli-lo num chute – o animal ganindo, mas tendo somente seu ímpeto aumentado. O inimigo tentou, em seguida, ceifar Rosengard com sua espada, porém acabou obrigado a se esquivar de uma investida dupla efetuada por Lisah e suas duas lâminas. Escapou de uma, mas a outra lhe abriu um corte num dos braços. Gemeu: o ferimento não fora tão superficial e teria de ser tratado. Antes, todavia, terminaria aquela luta que via como extremamente tola. Já Kirinak permanecia na retaguarda, junto à loba Kiche – ordenada pela dona a se manter naquela posição. A clériga, em seu temor, só não percebia que uma crescente brecha surgia diante de si, com os movimentos dos combatentes...

Hachiko lançou mais uma flecha, errando novamente devido à dificuldade em atingir o agitado alvo. Caleb, desta vez, teve mais sorte: aos poucos aprendendo a manejar seu bordão numa luta, desferiu com ele doloroso golpe contra o estômago do mercenário. Este parou, cuspindo sangue enquanto cobria o abdômen com ambas as mãos, tomado pela dor. Vendo-se capaz de aproveitar uma grande oportunidade, Lisah avançou contra ele brandindo as espadas... mas o oponente, notando a ameaça, saltou para frente num movimento desesperado... caindo sobre Kirinak e a levando ao chão tanto com o peso de seu corpo, quanto com a força de seus braços.

A clériga gemeu, ralando-se na inesperada queda. O algoz a agarrou com força, impedindo-a de escapar. Os demais, ao notarem a ação do caçador de recompensas, recuaram cautelosos. Erguendo-se da cobertura de pedras com um corte no rosto, o adversário também puxou a procurada para cima, forçando-a a levantar-se entre lágrimas. Abraçando-a pelas costas, sacou rapidamente seu punhal e levou a lâmina deste até a garganta da jovem. Agora ele tinha uma refém.

- Qualquer gracinha e ela morre! – vociferou.

Os outros três mantinham-se a certa distância, armas ainda empunhadas. A loba Kiche, ao lado do mercenário, rosnava para si de forma ameaçadora, porém só atacaria ao comando de Lisah. Ele, porém, deu importância maior do que devia à fera. Voltando para ela a cabeça e ordenando que se afastasse, enquanto mantinha Kirinak presa entre a adaga e seu tronco, descuidou-se dos demais oponentes por alguns segundos... que se mostraram fatais.

Fechando os olhos, a chorosa clériga somente escutou o zunido de algo passando numa intensa velocidade junto a um de seus ouvidos, a poucos centímetros da orelha... e, num cálculo menos preciso de disparo, ela teria sido levada junto. A flecha, felizmente, foi cravar-se somente no que havia atrás de si... o pescoço do caçador de recompensas. Afundando em sua carne, produziu de imediato jatos de sangue quente, que voaram inclusive sobre a própria Kirinak. Esta, felizmente, aproveitou-se do fato de que os braços do mercenário haviam se afrouxado e conseguiu afastar-se dele, unindo-se aos companheiros. O inimigo, por sua vez, tentou pronunciar alguma coisa, mas somente emitiu grunhidos engasgados enquanto perdia, pelo ferimento, mais e mais líquido vital. Esgotando-se suas forças, acabou cambaleando até um dos parapeitos da ponte, inclinando-se sobre ele... e por fim afundando no rio, tingindo de rubro a água ao redor de seu cadáver.

Hachiko abaixou o arco. Na terceira tentativa havia acertado. Arriscara a vida da fugitiva no processo... mas mostrara ter valido a pena confiar em sua mira.

Já a clériga, por sua vez, encontrava-se novamente sem saber como agir. Apenas encarava cada um de seus protetores com um semblante corado, lágrimas a ainda por ele escorrer... quando conseguiu gaguejar:

- O-obrigada...

Os demais apenas assentiram com a cabeça, ainda ofegantes devido ao combate. Era difícil para Kirinak acreditar que eles realmente haviam se arriscado por ela – até mesmo Hachiko, que horas antes tentara derrubá-la em Tileade. As coisas pareciam estar mudando... e a garota humana, pela primeira vez desde sua fuga do santuário, acreditava ter encontrado pessoas com quem podia contar. Ter encontrado amigos.

- Vamos! – Rosengard apressou-os. – Melhor sairmos daqui antes que apareçam mais mercenários como esse, ou guardas do forte!

Todos concordaram, colocando-se mais uma vez a andar. A segunda metade da ponte era vencida, a intrigante construção decrépita desenhando-se logo à frente, cada vez mais próxima. O que encontrariam nela? Essa era uma questão que, a cada passo, tentavam responder dentro de seus destemidos corações...

“Certa vez vi-me a indagar a respeito

da razão dos mortais se sacrificarem

por seus semelhantes, o que os move.

E concluí que nada mais é do que se

sentir no lugar do outro, querer

protegê-lo da mesma coisa

de que você se protegeria”

Gertrun de Etressia, aprox. 151 ACD.