–Você me está a ouvir?

–Uh uhm! – Eu murmurei não desgrudando os olhos do ecrã.

–Então repita o que eu disse, Rebecca!

–Ãh? - Eu grunhi e vi o televisor ficar negro.

–Hey! – Meu pai e meu irmão reclamaram.

–Não há mais futebol esta noite enquanto a Rebecca não repetir o que eu disse! – Ela insistiu de braços cruzados, parada ali ao lado do sofá segurando o remoto.

–Então…bem…é assim…

–Fala logo, Becky ou então a gente perde o jogo! – Meu irmão resmungou.

–Me deixa falar então! Você disse…que…ah, vá mãe, você disse o que sempre diz!

–E o que é que eu sempre digo?

–Coisa que eu já sei de cor…?

–Se já sabe de cor deveria saber dizer, né?

–E se eu sei de cor você já não deveria ter que repetir!

–Pelos vistos preciso repetir sim, porque você tem dezassete anos e às vezes parece ter cinco, me ignorando!

–Mãe, quando o Everton joga é hora sagrada nesta casa!

–Então se é hora sagrada, - Meu pai falou tirando devagar o remoto da mão da minha mãe. – porque vocês não continuam a conversa na cozinha?

–Ah, tá, pai. – Eu disse emburrada sabendo que ele e meu irmão caçula iam estar vendo o jogo e eu estaria na cozinha ouvindo minha mãe me dar aquelas tarefas todas.

Ainda nem lá tínhamos chegado quando eles os dois berram. – GOLO!

–Ah não, Becky! – Minha mãe me agarrou o braço pra eu não ir ver. – Vê repetição depois!

–Não tem piada assim, mãe! – Eu me tentei puxar da mão dela.

–Pára com isso, garota-

–Não sou garota, mãe!

–Às vezes parece, né? – Ela me arrastou pra cozinha. – Amanhã quero você no restaurante bem cedo, pode ser? Preciso que você coloque as coisas nas mesas. Tem um almoço muito importante lá amanhã.

–Rainha vai sair do Palácio?

–Deixa de brincadeira, tá? – Ela disse agora séria. Sim, este tempo todo a gente esteve assim brincando. Adoro essa relação que tenho com os meus pais, muito descontraída.

–Tá bom. Amanhã de manhã eu levanto cedo pra preparar tudo.

–Tony tem as indicações pra você, tudo o que é preciso. Ele depois estará na cozinha fazendo o almoço, mas você sabe que pode pedir qualquer coisa pra ele, que ele faz.

–Eu sei, Tony é bacana assim mesmo! Até podia pedir sorvete com espaguete pro almoço e ele fazia!

–É, - Minha mãe riu. – mas não tem ideia maluca dessas, viu? E, já sabe, não deixa seu irmão comer coisas que faça mal-

–Droga! Tenho que levar Cooper comigo? – Ela me olhou séria outra vez. – Eu não vou conseguir arrancar ele da cama.

–Contrata uma grua, chama uma banda de metal pro acordar, mas ele vai consigo! Você pode ir pro restaurante e depois voltar para pegar ele.

–Sim, eu estou pensando em fazer três viagens de metro só pra pegar o senhor cavalheiro! Quando eu tinha a idade dele, eu ficava sozinha em casa!

–Primeiro, você fala como se tivesse sido há muito tempo atrás, mas você teve a idade dela há nove anos atrás-

–Quase há uma década! Vê como foi há muito?

–Segundo, tenho que lembrar você da vez em que os bombeiros-

–Sei, sei! Já ouvi essa milhões de vezes! – Eu suspirei fundo e concordei. – Tá bom, eu depois venho pegar ele cá a casa. Mais alguma coisa ou posso ir ver o meu amado time jogando?

–Me responde só a isto: de quem você pegou esse jeito respondão, hein?

–Papai…essa é óbvia né, mãe?

Eu sai e fui acabar de ver o jogo…não quero falar sobre isso. Levar três Everton? Levar três e só dar um…não sei que dizer…! Antes de ir tomar um banho fui ver a meteorologia. Amanhã não ia chover, então sairia de bicicleta como saio pra escola sempre que posso e depois iria com o Cooper de metro.

Depois do banho me vesti no quarto ao som de Beatles. Há uns anos atrás me perguntaram que eu queria pra presente de aniversário. Ora, eu falei que queria um toca-discos. Queria dar uso aqueles discos de vinil do vovô. Ele tinha discos dos Queen, The Who, Beatles, The Police, Led Zeppelin e muitos outros. Mentiria se dissesse que os quatro garotos de Liverpool (onde nasci, mas agora vivo em Londres!) não são os meus favoritos.

Bem, coloquei lá o disco deles no toca-discos (nessa noite calhou o Sgt. Pepper’s) e ia dançando enquanto me vestia e enxugava o cabelo. Acabei por me deitar sobre a cama, sendo levada pelas músicas deles e adormeci. Sei que meu pai deve ter passado pelo quarto e tirado a agulha de cima do disco pra que a música parasse.

De manhã acordei com o babaca do sol me batendo nos olhos. Levantei e tratei de me vestir. Pra mim, aquilo era como andar acordada de madrugada. Quando estou de férias, dez da manhã é a mesma coisa que três da manhã! Enfim, meia ensonada me arranjei e sai. Dyco ainda dormia. Dyco é o meu irmão; a gente chama ele assim porque o nome dele é Dylan Cooper.

Ajudo os meus pais no restaurante sempre que estou de férias, mas estou acostumada a sair mais tarde, só na hora de ir servir às mesas. Hoje, pelos vistos, meus pais não iam puder abrir o restaurante, por isso, calhava-me a mim essa tarefa.

Montei na minha bicicleta e sai pedalando pelas ruas de Londres. Adoro o cheiro da manhã, a agitação toda e pedalo com cada vez mais rapidez. Já ninguém estranha uma maluca como eu indo sobre os passeios à maior velocidade. Todos os dias passo por Abbey Road. Fica a caminho, mas mesmo que não ficasse, vou lá para dar um beijo no meu tio, Nate. Ele trabalha no Abbey Road Studios, e ele me deu todas as minhas ‘bebés’ que estão penduradas lá no restaurante. Uma Gibson SG, uma Les Paul, uma Epiphone Sheraton, uma Rickenbacker e uma Grestch. Curioso, meu segundo nome é Grestch, tal como a minha guitarra favorita…

Eu amo muito o lugar onde o meu tio trabalha. Ele é produtor musical e pode andar por aqueles corredores por onde tantos músicos de renome já andaram. No ano passado pelo meu aniversário ele me levou ao estúdio onde os Beatles gravavam. Nossa, foi o melhor presente da minha vida! Depois de ter feito a já habitual visita fiquei parada olhando a passadeira ali em frente.

Eu consigo ver John, Ringo, Paul e George passando ela, como se estivesse mesmo acontecendo ali, diante dos meus olhos. E sorrio que nem uma tola…bem, eu sou louca mesmo, que fazer?

–E aí, Tony? – Eu disse vendo que ele me esperava à porta. – Tudo bom?

–Tudo. – Ele me deu um abraço rápido antes de eu abrir a porta. – Tudo bom, garota. Sua mãe disse que Dyco vinha também.

–É, eu depois vou pegar ele a casa. Sabe como é aquele preguiçoso. – A gente entrou e eu fui acender as luzes ao painel geral. – Antes de começar a trabalhar, posso já deixar a minha reserva pro almoço?

–Espaguete à bolonhesa? – Ele disse com um sorrisinho.

–Você me conhece demasiado bem, Tony!

–Você só sabe comer espaguete! Na verdade você só come, né? E depois é vareta assim! Como você faz?

–Pergunta pro George Harrison! – Eu ri.

–Tá bom. Eu terei uma conversa com ele, lá depois na Eternidade. Agora, trabalho menina! Sua mãe pediu pra não deixar ninguém entrar. Vai ser almoço só pra eles. E pediu pra você pôr a mesa para seis e pra dar uma limpeza geral no salão todo!

–Minha mãe pirou de vez! Afinal, se não é a Rainha que vem aí, quem é?

–São os Reis, garota!

–Ah não, você sabe, Tony! – Eu resmunguei enquanto ele me ignorava, caminhando para a cozinha. – Me diz, vá lá!

–Só digo que você vai amar!

–Tony, isso é igual a pedir uma pista sobre a prenda de aniversário e dizerem que vem embrulhada!

–Vai trabalhar mocinha!

–Pode pelo menos dizer se é homem, mulher…

–São quatro homens e duas mulheres!

–Oba, eu me vou divertir!

–São todos muito velhos pra você! – Tony pareceu ter pensado no que disse, mas reforçou. – É, são TODOS velhos pra você!

–Eu não ligo pra isso. Gosto de homem que venha com a escola toda!

–Que é que é isso, garota? Ainda ontem você tinha cinco anos e achava nojento duas pessoas se beijarem e agora me diz coisas destas! Trabalho!

Bem, passei uma eternidade naquilo. Sorte é que estava deliciando os ouvidos com música e o nariz com aquele cheiro gostoso da comida que Tony fazia. Acabei saindo para ir buscar Lorde Dyco a casa. E não é que ele se lembrou de trazer um apito com ele?

–Dyco, ou você pára ou você engole esse maldito apito!

–Não páro, não! – Ele disse amuado. – Tou fazendo música!

–Que linda música! Vai ser álbum pra surdos ou pra ensurdecer?

–Você tem é inveja! – Ele disse, continuando a soprar naquilo enquanto saiamos do metro.

–Claro que sim. – Eu coloquei os fones nos ouvidos e agarrei na mão dele para irmos para a rua. – Eu até que sei tocar violão e tenho inveja de um puto de oito anos com um apito!

–Que você tá a ouvir?

–Nada!

Ele arrancou um fone da minha orelha e colocou na dele. – Hey, você tá ouvindo o Joj! Here comes the sun! – Ele cantou. Não pude deixar de sorrir. Por mais chato que ele seja, ele é o meu maninho com bom gosto!

Quando a gente chegou ao restaurante larguei a mão dele e achei ele fosse ter com Tony pra lhe pedir o que queria comer e eu iria atacar o meu esparguete, já ali sobre a mesa, me esperando. Me enganei! O sacaninha correu pra minha comida! Arregalei os olhos e Tony desatou a rir da minha cara!

–Eu trago batata frita pra você.

–Não é igual, Tony! – Fiquei zangada. - Ninguém rouba minha comida, viu? Mas traz por favor.

–Venho já então. – Tony entrou na cozinha e eu olhei Dyco mais uma vez. Ele me deitou a língua de fora e eu cerrei os olhos em direção a ele e foi para outra sala de refeições.

Me sentei a uma mesa, admirando as minhas guitarras. Quantas vezes peguei nelas pra tocar? Muito poucas! Tenho medo de estragar elas! Elas são uma preciosidade. Mas estou a considerar levá-las para casa e as usar mais vezes. Peguei na minha gaita, uma Hohner, como a do John Lennon e comecei a tocar nela até que ouvi:

–Tá aqui as suas batatas. E ketchup também!

–Oba, - Ouvi o Dyco dizer e ainda não tinha chegado à sala principal. – posso comer também?

–Que é isso? Já comeu meu almoço, tira a mão deste, viu?- Eu sapateei a mão dele, mas acabei lhe dando algumas batatas. – E aí Tony, quando chegam esses Reis?

–Seus pais chegaram agora. E os Reis também.

–Você vai amar, Becky. – Dyco me disse dando um sorriso tão doce que ninguém diria que às vezes ele parece que tem o demónio no corpo!

Eu virei o olhar para a porta e quase desmaiei. Minha nossa senhora! Ali…no restaurante da família….a pisar aquele chão…a respirar o mesmo ar que eu…

Sir James Paul McCartney.

E logo atrás veio Sir Ringo Starr, que mesmo não tendo título de Sir, o chamo de Sir porque não o conheço de parte alguma.

Atrás apareceu a primeira mulher… Olivia. E com ela Dhani.

E depois aquele homem que meu tio e eu idolatramos…George Martin.

Oh não, isso queria dizer que a outra era…pois, a Yoko!

Ok, eu dou o benefício da dúvida. Posso não gostar muito dela, mas vou trata-la bem.

–Becky, estás bem? – Eu ouvi o meu pai dizer na minha frente, mas eu o via desfocado.

–Tou, tou ótima!

–Você consegue ficar aqui com Dyco e servir à mesa? É que Tony vai embora daí a pouco!

–Consigo. Consigo pai, relaxa! – Eu disse, mas quem precisava de relaxar era eu.

–Ok, então sua mãe e eu vamos tratar dos assuntos do restaurante lá ao banco. É capaz de durar a tarde toda.

Meu Deus…a tarde toda com aquelas pessoas…

Acho que morri…!