O bip insuportável do despertador me acordou às 04h45min da madrugada. Levantei um pouco zonza de sono e fui ao banheiro lavar o rosto, depois voltei ao meu quarto e coloquei uma roupa de ginástica. Tia Lavínia dormia em seu quarto e eu não queria acordá-la cedo em pleno domingo, por isso peguei um pedaço de papel e deixei um recado:

Tia,

Fui correr na praia, prometo não demorar!

Sara

Peguei uma maçã na fruteira e sai da casa em direção a areia fina e branca. Fui andando devagar porque mesmo sabendo que Irriel não poderia me fazer mal, eu ainda nutria certo medo dele e isso fazia desconfiar de sua bondade. Aos poucos eu via a silhueta de um homem se formar no horizonte, era ele.

— Dois minutos atrasada — ele falou assim que eu estava perto o suficiente para ouvir — Espero que isso não aconteça mais.

Então ele pretendia me treinar por muito tempo, mas por quê? Se eu escolher Shamayim esse treinamento será contra ele mesmo, isso não faz sentido.

— O que vamos fazer? — perguntei.

— Trouxe a arma? — ele perguntou e logo percebi que não.

—Esqueci — falei e esperei a bronca.

— Não faz mal, obviamente não iríamos treinar tiro em uma praia pública — ele falou jogando a mochila, que trazia nas costas, no chão — Hoje vamos treinar a luta. Você sabe alguma arte marcial?

— Só sei me defender contra valentões, isso vale? — eu ri.

— Já é um bom começo — ele sorriu — Lutar contra anjos e demônios exige muito mais que força física, você tem que usar a cabeça. Os soldados de Shamayim possuem a capacidade de destruir seu oponente com o olhar, então, em hipótese alguma olhe nos olhos de um anjo. Eles não serão bons como seu querido Lukiel.

— E os demônios? Eles fazem algo especial?

— Demônios ficam invisíveis, te atacam de surpresa. Eles fazem você se cansar e depois pluft, desaparecem! — Irriel fazia movimentos como se estivesse em uma luta imaginária.

— E anjos caídos?

—Caídos como eu, só possuem a imortalidade. Somos como humanos em tudo — ele suspirou — Mas isso não quer dizer que sejamos mais fracos, apesar de termos sidos expulsos de Shamayim, ainda possuímos os conhecimentos.

— Mas você entrou em minha mente, aquele dia na lanchonete — falei relembrando daquele fatídico dia.

— É verdade, mas isso não é tão importante em uma luta — ele respondeu.

— Não sei se sou capaz de lutar dessa forma — falei o encarando.

— Não fale assim — ele falou sério — Agora vamos começar.

Irriel ficou mais próximo de mim e eu fiquei nervosa com essa aproximação repentina.

— Feche os olhos — ele disse. Eu fechei — Agora fique atenta a todos os sons ao seu redor.

Eu escutava as ondas do mar batendo nos rochedos, as gaivotas, um carro passado em algum lugar e os passos de Irriel atrás de mim.

— Não abra os olhos — ele continuou — Eu quero que você tente me alcançar com os olhos fechados.

Comecei a prestar atenção apenas no som que as botas dele fazia na areia, girei o corpo e fui andando em direção ao que parecia ser Irriel, por incrível que pareça, minha audição era muito boa e eu conseguia escutar até a respiração dele. Como nunca havia percebido isso? Fui andando até esbarrar em seu corpo, abri os olhos e sorri quando vi que eu consegui.

— Eu nunca pensei que pudesse fazer isso — falei extasiada — Era como se eu estivesse enxergando.

— Isso que dizer que você não teria problemas em lutar sem olhar diretamente para seu oponente. Você tem uma vantagem, mas isso não é o suficiente...

— Eu tenho que aprender a lutar — falei concentrada.

Ele abaixou até a sua mochila e pegou um punhal. Depois me entregou.

—Vamos começar com um punhal — ele comunicou — Embora seja pequena, essa arma será de grande serventia em uma luta. Deixe-a escondida, quando seu oponente estiver perto o suficiente crave-a nele sem pena.

— Mas isso o matará?

— Não, mas fará com que ele vá embora — ele falou — Agora vamos começar...

Irriel me ensinou golpes simples de autodefesa. Chute, soco, não virar às costas para o inimigo... Eu estava evoluindo bem para o primeiro dia de treino. Tão bem que até ele se surpreendeu com a minha capacidade de absorver as informações. Duas horas de treinamento e eu já estava exausta.

— Muito bem — ele finalmente disse — Está bom por hoje, amanhã te espero aqui no mesmo horário, e traga a arma...

Eu assenti.

— Obrigada — falei e fui embora devagar para casa. Observei algumas famílias chegando para aproveitar o dia e fiquei com saudade de meus pais.

Cheguei e encontrei minha tia arrumando uma bolsa para ir à praia, ela usava um biquíni florido e um chapéu que tampava parte do seu rosto.

— Você demorou — ela disse — Ia te chamar para um mergulho, mas vejo que deve estar muito cansada.

— Estou — falei secando o suor — Acho que vou tomar um banho e dormir mais um pouco.

— Vou passar o dia na praia. Qualquer coisa é só gritar pela janela — ela riu. Eu assenti e fui para o banheiro tomar um banho.

Fiquei boa parte da manhã deitada, não consegui dormir. Sono para mim sempre foi algo complicado e de alguma forma meu corpo evitava-o a todo custo. Fui à cozinha e procurei algo para comer, encontrei umas panelas na geladeira, mas quando abri constatei que minha tia realmente não era boa para cozinhar. Voltei para meu quarto e coloquei o biquíni, eu iria à praia me divertir.

Andei um pouco e vi minha tia deitada na areia se bronzeando, ela me viu e sorriu. Fiz um sinal indicando que eu iria comprar uma água de coco para me refrescar do calor do litoral. Voltei e fiquei com Lavínia.

— Descansou? — ela perguntou.

— Um pouco — falei me sentando embaixo do guarda-sol.

— Tem vários jovens da sua idade aqui. Por que você não se enturma?

Ela tocou no assunto que eu mais odeio. Amigos. Nunca tive amigos, eu preferia ficar sozinha sem contato com os outros. Aprendi isso no orfanato, as garotas eram más e me maltratavam. E as pessoas que falavam serem meus amigos fizeram muito mal a mim, por isso resolvi que não me apegaria a ninguém. Quando fui adotada descobri que existiam pessoas boas, mas nem isso fez com que eu confiasse plenamente. No colégio eu era a mais quieta e ninguém falava comigo. Esse foi um dos motivos que fizeram eu não ir para a faculdade, se eu fosse com certeza passaria pelos piores momentos da minha vida, então resolvi trabalhar de garçonete.

— Não quero — falei seca.

— Sara — ela insistiu — Você é jovem, bonita, inteligente... E aqueles garotos não param de olhar para cá.

Olhei para o lado e vi um grupo de jovens me encarando. Senti-me envergonhada e me segurei para não sair dali correndo.

— Prefiro ficar sozinha — respondi nervosa.

— Eles são legais, a maioria frequenta a lanchonete. Você vai conhecê-los de qualquer maneira. Vamos lá... — ela falou — Ei, Scarlet!

— Não faça isso — falei assustada. Mas já era tarde, a garota veio em nossa direção.

— Olá Lavínia — Scarlet a cumprimentou.

— Oi! Essa aqui é minha sobrinha, Sara — minha tia disse animada — Pensei que você poderia apresenta-la aos seus amigos.

Eu queria matar tia Lavínia. O que ela estava fazendo? Eu não queria conhecer aquelas pessoas.

— Não... Não precisa — falei para a garota. Mas ela já estava me puxando para conhecer o seu “pessoal”.

Havia três pessoas embaixo do guarda-sol. Dois garotos e uma garota, os três conversavam e riam de coisas sem sentido. Quando Scarlet e eu paramos em frente a eles senti meu rosto ficar vermelho.

— Gente, essa é Sara — Scarlet disse para eles. Eu acenei — Ela é sobrinha da Lavínia.

— Oi Sara! — um dos garotos levantou e apertou minha mão — Eu sou João.

—Ele é meu irmão — Scarlet fez cara de desprezo.

— Eu sou Júlia — a garota disse — E esse é meu namorado, Igor.

Eu sorria para parecer amigável, mas eu não fazia ideia do que fazer. As quatro pessoas esperavam que eu dissesse algo, falasse sobre mim, contasse sobre minha vida. Fiquei paralisada sem reação.

—E o que você faz Sara? — João perguntou.

—Eu... Eu... Sou garçonete — gaguejei.

— Você vai trabalhar aqui? — ele continuou a perguntar.

— Vou — falei devagar — Só por um tempo...

— Senta com a gente — Scarlet disse e puxou uma cadeira para mim.

— E vocês? Fazem o quê? — tentei puxar papo.

— Eu faço engenharia química — João começou a falar — Mas eu queria ter entrado em engenharia cívil, infelizmente não consegui. Estou no segundo período.

— Legal — foi a única coisa que consegui pensar.

— Eu não me decidi ainda, como você. Não existe nada que eu goste de fazer, não me imagino nessas profissões — Júlia disse.

— Scarlet e eu fazemos arquitetura — Igor falou.

— Deve ser bom saber o que fazer — falei e lembrei-me da situação em que eu me encontrava. Tinha que decidir entre salvar a humanidade ou não.

— Você vai fazer a melhor escolha — João falou como se conhecesse meus dilemas.

— Mudando de assunto —Júlia disse — Antes de você chegar aqui Sara, o João não parava de olhar para você.

Todos riram. Eu fiquei mais vermelha do que já estava e João sorria sem graça.

— Eu só comentei como você era bonita, nada demais — ele estava tão sem graça que eu achei um pouco engraçado.

— Não ligue para ele, Sara — Scarlet ria — João sempre foi assim sem vergonha.

— Não fale mal de mim — João protestou — Eu estou aqui!

— Não se preocupe — eu ri.

Passamos um bom tempo ali na praia conversando. Até que eles eram legais, não me faziam muitas perguntas e riam de tudo. Eu me sentia parte de um grupo pela primeira vez em muitos anos. João não perdia tempo em flertar comigo, toda hora eu o encontrava me olhando, sorrindo para mim e por incrível que pareça, eu estava gostando. Os outros fingiam que não viam. O sol foi se pondo quando eu vi que tia Lavínia já não estava na praia, decidi que já estava na hora de voltar para casa.

— Está cedo — João disse.

— Preciso mesmo ir — falei.

— Vamos sair amanhã à noite. Quer ir? — Scarlet me convidou.

—É claro, vou adorar — percebi que estava na hora de eu me enturmar naquela cidade, talvez não fosse tão ruim.

— Passamos na lanchonete amanhã para te avisar — ela falou.

— Até amanhã então —falei — Foi um prazer conhecer vocês!

— Vou te acompanhar — João já estava do meu lado.

— Não precisa, eu moro logo ali.

— Eu insisto — ele falou e eu aceitei.

João e eu andamos os poucos metros até minha casa. Ele ficou em silêncio, o que achei estranho. Mas preferi não falar nada também. Estávamos na varanda da casa.

—Está entregue — João disse. E eu sorri, por que aquele garoto estava interessado em mim?

— Obrigada — falei e comecei a subi os degraus até a porta, ele veio atrás de mim.

— Espere — ele disse — Vejo você amanhã?

— Sim — eu falei — Eu espero que sim.

João se inclinou e deu um beijo de leve na minha bochecha, depois desceu os degraus e foi embora. Fiquei o observando até sumir de vista. Essa com certeza não era a hora certa de eu me envolver com alguém, mas eu poderia tentar. Ouvi a porta se abrindo.

— Você e João, que belo casal — tia Lavínia disse.

— Não somos um casal — eu falei rápido.

— Pareciam um — ela ria da minha cara — E o que é que tem? Vocês são jovens e livres... Não precisa se preocupar, não vou falar com seu pai, sei que ele é ciumento.

— Ciumento? — eu também comecei a rir — Ele é um leão.

— Vamos entrar, eu sei que você não comeu nada hoje — ela falou e eu ouvi meu estômago roncar.

Um hambúrguer me esperava sobre a mesa. Eu o devorei rapidamente, pelo menos para montar um sanduíche Lavínia era boa. Eu pensava no dia bom que tive, pela primeira vez em semanas. O pessoal da cidade parecia ser bem legal e tinha o João, que era um cara bem interessante. Terminei minha primeira e última refeição do dia e fui para meu quarto, acendi a luz e tomei um susto quando vi Lukiel parado perto da janela.