Lukiel virou-se e olhou para mim preocupado. Eu ainda me acostumava com seus olhos brancos, mas fiquei feliz em saber que eles não podiam me fazer mal. Ele chegou mais perto como se quisesse ter certeza de que eu existia, estranhei aquilo.

— O que aconteceu? — perguntei e corri para fechar a porta.

— Ficamos preocupados com você — ele falou — Merl não pôde vir para cá.

— Estou aqui há dois dias, está tudo bem — falei — Nada demais aconteceu.

— O que Irriel queria com você? — agora eu sabia o motivo de tanta preocupação, era Irriel. Eles tinham medo de que eu saísse do controle — Encontramos isso na sua gaveta — ele me mostrou o bilhete de Irriel que continha a frase que eu não sabia o significado — THAYKLE MORTELS NTHIZ significa: Prepare-se para a morte.

— Quem deixou vocês mexerem nas minhas coisas? — eu arranquei o papel das mãos dele.

— Saraí, não confie em Irriel. Esse bilhete é a prova de que ele não é bom para você! — ele me alertou.

— Engraçado, ele é o único que me entende nisso tudo — falei sem pensar.

— Te entende? — Lukiel ficou confuso — O que aconteceu nesses dias em que esteve aqui?

— Isso não é da sua conta — falei alterada.

— Merl e eu temos que te proteger, essa é nossa missão — ele disse.

— Vejo que estão fazendo o trabalho muito bem — falei irônica.

— Não vamos discutir sobre isso — ele disse — E aquele garoto?

— Que garoto? — era óbvio que ele falava de João, mas decidi me fazer de idiota.

— Você sabe de quem estou falando — ele me encarou.

— O que é? Está com ciúme? — perguntei rindo.

— Eu quero apenas te proteger, não dificulte isso — ele falou e quando vi já estava saindo pela janela — Volto em breve — ele abriu as asas e voou.

Aquilo foi estranho. Nunca vi Lukiel tão alterado, eu não o conhecia há muito tempo, mas a sua preocupação já estava indo longe demais. E querer interferir na minha vida pessoal não iria me fazer seguir suas regras. Querer me proteger tudo bem, mas interferir nas minhas decisões não. O que ele vai fazer quando eu tomar minha decisão? E se eu escolher o lado oposto ao dele? Sua lealdade é a mim ou ao seu Reino? Perguntas que só seriam respondidas no dia da minha escolha. E espero que esse dia demore bastante, não estou preparada para liderar um exército.

Ás cinco horas eu estava treinando com Irriel, desta vez ele me levou para um campo de tiro perto da praia. No começo eu não conseguia segurar a arma sem tremer, mas em pouco tempo eu já acertava o alvo. Percebi que eu tinha talento para luta e manejo de armas e Irriel me ensinou coisas mais avançadas.

— Estou surpreendido com sua capacidade de aprendizado — ele disse depois que havíamos terminado.

— Eu também— falei guardando a arma dentro de minha mochila, não podia deixar aquilo à vista — Obrigada... Você é o único em que posso confiar!

— Os anjos querem o seu bem — Irriel se aproximou — Todos nós queremos.

— Sei disso, mas me sinto sufocada com tanta intromissão — falei ressentida. Lukiel não me deixava respirar, ele sempre fazia questão de me lembrar sobre o futuro.

— Não vou deixar que intrometam mais —Irriel deu um sorriso brincalhão.

— Eu confio em você — eu disse. Eu confiava nele, em todos os sentidos.

— Vamos fazer o último treinamento amanhã — ele falou — Te encontro no mesmo lugar!

Despedi-me de Irriel e fui para meu primeiro dia de trabalho na lanchonete de Tia Lavínia. Coloquei o uniforme e corri para atender alguns clientes que estavam para tomar o café. A manhã de treino me fez ficar cansada e aos poucos eu voltava ao meu ritmo habitual de trabalho. Todos os clientes já estavam servidos e Lavínia instruía o cozinheiro, ela falava como tio Michael. A lanchonete era bem mais vazia que a da cidade, eu estava acostumada a atender dezenas de clientes para o café da manhã e dessa vez só havia alguns, que só pediam café ou chá.

A lanchonete estava vazia. Peguei uma flanela e limpei algumas mesas, não conseguia ficar parada por muito tempo. Tia Lavínia estava do meu lado.

— Aqui é bem mais vazio — ela falou com a testa enrugada — Seu tio quer que o faturamento aumente, mas isso é quase impossível.

— Podemos fazer uma promoção — tentei ajudar.

— Pode ser uma boa ideia, se você pensar em algo me fala — ela me incentivou. Um cliente entrou e eu fui atendê-lo.

A hora do almoço estava próxima e a lanchonete estava cheia, não estava lotada com fila virando esquina, mas todas as mesas estavam ocupadas. A garçonete que trabalharia comigo na parte da tarde estava anotando os pedidos e eu os servia. A garota se chamava Aline e parecia ter a minha idade, sua pele era bem bronzeada mostrando que ela frequentava bastante a praia. Ela fora bem gentil comigo e ficamos conversando um pouco antes do movimento aumentar.

— O cliente da mesa três pediu um suco de laranja e a presença de certa garçonete nova — eu não entendi direito o que ela disse— Ele é bem gatinho hein — Aline piscou para mim e voltou para o trabalho.

Quem poderia ser? Pensei nos anjos e nos demônios, eles poderiam estar me vigiando de perto, tremi com a possibilidade, não queria que eles frequentassem minha vida dessa forma. Pedi o cozinheiro o suco de laranja e fui até a mesa três, andei devagar temendo o cliente misterioso.

— Você demorou. Achou que fosse o bicho papão? — João sorria e eu soltei um suspiro de alívio, era apenas o garoto da praia, nada demais.

— Desculpe, o cozinheiro demorou com o suco — menti e coloquei o copo de suco de laranja na sua frente.

— Eu vim para te convidar para o lual que haverá hoje — ele falou e tomou um gole do suco — Vai ser legal...

— Ah obrigada, mas não sei se... — comecei a inventar uma desculpa.

— Não aceito não como resposta. E você disse que iria sair com a gente — ele insistiu e eu não tive como recusar.

— Saio daqui um pouco tarde — eu disse.

— Não tem problema, eu venho te buscar — João disse sorrindo.

— Não precisa, antes tenho que passar em casa para me arrumar, não quero ir com essa roupa — falei olhando para mim mesma.

—Tudo bem — ele terminou o suco — Passo para te pegar às 11. Está bem?

— Sim — sorri com timidez — Te vejo mais tarde!

João se levantou e deu um beijo de leve no meu rosto, fiquei vermelha. Depois abriu a carteira e pagou pelo suco, me dando uma gorjeta generosa. Eu sorri e acenei quando ele estava na rua.

— Não acredito que você está saindo com o João — Aline voou para meu lado — Ele não sai com uma garota há anos! E não é por falta de opção...

—Não estou saindo com ele — falei me defendendo — Ele é só um amigo... Na verdade eu conheci a irmã dele e...

— Ah Sara! Você está caidinha por ele. Vejo isso nos seus olhos — ela disse e ficou rindo da minha cara.

— Não estou — falei voltando para perto da cozinha, Aline veio atrás de mim.

— Não precisa se estressar — ele fez cara de magoada. E eu apenas ignorei, aquela garota era bem curiosa e isso realmente de estressava.

Eu não estava interessada em João. Minha vida estava cheia de problemas para que eu me envolvesse com um cara que mal conhecia. Não podia ter mais pessoas em minha vida, e definitivamente não sentia vontade nenhuma de ter um namorado.

Tia Lavínia fechava a lanchonete enquanto eu corria para casa. Faltava meia hora para João me buscar e eu não estava em casa. Corri para o banheiro assim que cheguei e tomei um banho rápido, coloquei uma roupa leve e quando percebi João já estava na sala conversando com tia Lavínia sobre assuntos que eu desconhecia.

— Estou pronta — anunciei assim que entrei na sala. João levantou tão rápido que acabou derrubando um porta-retrato de tia Lavínia e ficou totalmente sem graça, eu ri.

— Desculpe — ele disse a Lavínia e colocou o porta-retrato no lugar.

— Tudo bem — Lavínia disse sorrindo —Acho que vocês estão atrasados, ouvi na lanchonete que o lual começaria às 11 horas e bom, — ela olhou para o relógio de pulso e completou — são 11h15min.

— A culpa é minha — falei envergonhada — Demorei a me arrumar.

—Você está linda — João disse me fazendo ficar com mais vergonha.

— João tem razão, você está linda, Sara! — Lavínia disse — Jorge me mataria se soubesse que deixei você sair essa hora, mas eu vou correr o risco.

Sorri e fui em direção à porta, João veio logo atrás e colocou a mão nas minhas costas.

—Não volte tarde — Lavínia gritou quando já estávamos na praia.