O filho de Thomas Lawrance estava completando dois meses naquela madrugada, e, no mesmo horário, também se completava quatro anos desde que Lawrance havia dormido por mais de três horas numa noite. As coisas haviam acontecido rápido com ele. Num minuto estava se mudando com a recém esposa para um apartamento novo, ao leste da cidade e, no outro, estava segurando a pequena Robin nos braços. Depois veio Barbara, e agora, Damian.

Não que Lawrance tivesse grandes reclamações sobre a família. Ele amava a esposa e era apaixonado pelos filhos - cópias sardentas, encantadores e alegres da mãe -, mas quando as brincadeiras acabavam e as crises de choro cessavam, o rapaz sentia-se profundamente sufocado pelo ambiente familiar. Sentia como se duas mãos grandes e invisíveis, com cheiro de shampoo de bebê e pasta de amendoim, lhe apertassem no pescoço num lembrete de que ele, aquele único, magrelo e tímido homem, era o responsável por quatro vidas inteiras. Lawrance, porém, não queria se ausentar. O cansaço e a responsabilidade podiam apavorá-lo, mas a ideia de se manter distante das brincadeiras e das trocas de fraldas lhe parecia muito mais assustadora.

Por isso, quando viu que o necrotério da cidade estava procurando por plantonistas noturnos, Lawrance foi o primeiro a se candidatar. Quando estivesse no serviço, as crianças estariam pegando no sono e, pela manhã, quando retornasse, ele e a esposa teriam bastante tempo para serem bons pais, ainda que, mesmo após quatro anos e dois meses de experiência, Lawrence não soubesse o que isso significava.

Johnny, por outro lado, sabia exatamente o que significava. Ela podia não ter conhecido os pais e nem ter tido o outro Reginald, como os Hargreeves o chamavam, como uma figura paterna, mas havia crescido numa jaula temporal, o que lhe havia dado tempo o suficiente para analisar dezenas deles. No entanto, seus conhecimentos sobre pais modernos eram limitados. Se lembrava pouco daqueles dos anos 80 - se Reginald pudesse ser associado a um papel patriarcal naquela época, seria, no máximo, ao de um Tio Sam maligno, e não ao de um pai - e só havia passado poucos dias em 2019 até então, mas poderia tecer horas de conversa sobre os que viviam nos anos 60. A maioria tinha algo em comum: com o tempo, passavam a se odiar. Johnny não sabia afirmar se era pela pressão das famílias, ou o casamento precoce, ou as duas coisas ao mesmo tempo, mas se uma zona de guerra fosse montada com casais daquela época, o conflito acabaria num preciso empate de mortes. A paixão dos primeiros anos se apagava e os amantes se transformavam em inimigos obrigados a se aturarem por contratos matrimoniais, status e crianças remelentas. No fim, Johnny concluíra que eles se odiavam porque, simplesmente, precisavam estar juntos.

Foi com essa observação particular que ela notou, naquela meia hora de caminhada até o necrotério do centro da cidade, que Lila e Diego se comportavam como pais quando estavam perto um do outro. Não pelas farpas e respostas azedas que pulavam de suas interações o tempo todo, ou pelo modo como balançavam a cabeça para discordarem um do outro, mas sim porque, se os que Johnny conhecia brigavam pelo fato de estarem juntos, Lila e Diego pareciam brigar por não estarem.

Ela guardou a informação para si enquanto prendia um sorriso sorrateiro nos lábios. E continuou prendendo depois de se aproximar de Lila, que ditava sugestões não acatadas por Diego enquanto ele checava o perímetro. O Número Dois estava tentando encontrar uma janela aberta e, quando não encontrou, se agachou frente à fechadura da porta do prédio, tentando arrombá-la com um canivete.

Lila continuou falando.

— Devíamos ser discretos. Qualquer um pode ver a gente.

Não, não podiam. Eram três da manhã, e a região do necrotério parecia ter sido feita propositalmente para afastar os vivos. Era escura, gelada e esquisita, e começava a fazer Johnny pensar que não existia um lugar sequer naquela cidade que não fosse daquele jeito.

— Você quer falar sobre discrição? Já viu como sua amiga tá vestida?

Lila se moveu atrás dele. Um esbarrão "acidental", que o atingiu no ombro esquerdo e o fez cambalear para o lado. O rosto dela assumiu uma expressão inocente.

— Eu fiz o melhor que pude com o guarda-roupa dos seus irmãos — Lila olhou para Johnny, satisfeita com o resultado. — Ela tá ótima.

Johnny se aprumou ao ouvir o comentário.

— Eu gostei — ela disse, confiante, antes de sorrir para a amiga. — Tô me sentindo como uma das Panteras.

A porta fez crec, e Diego grunhiu. Lila seguiu o barulho e conteve a vontade de fazer um ironizar sobre a habilidade do Número Dois em lidar com facas para olhar através do vidro fumê da porta. Através das letras I e P, de Necrotério Municipal, ela notou que as luzes estavam acesas.

— Não está fechado, tem alguém aí dentro.

Diego deixou os olhos fugirem para os all-stars equilibrados nas pontas dos pés ao seu lado e sentiu uma pequena culpa por não ter escolhido comparsas melhores. Ele guardou o canivete no bolso e se levantou. Depois, imitou a pose de Lila e apoiou as duas mãos em concha sob o vidro para enxergar melhor.

Viu um balconista abatido enchendo uma xícara com café e balançou a cabeça.

— Merda! — sibilou ele. — O que vamos fazer?

Em resposta, Lila levou a mão até a maçaneta e, com um toque simples, abriu a porta. Os dois se entreolharam. Um vislumbre acusatório piscou nos olhos de Lila, e ele debochava de Diego. Ela nunca havia estado trancada.

Atrás deles, Johnny pareceu satisfeita com aquela resposta.

— Apenas me sigam — disse e se espremeu entre o casal, entrando no que parecia ser uma sala de recepção vazia.

Ela estreitou os olhos para o fim do corredor. Lá, a mesa de Thomas Lawrance jazia ao lado de uma planta artificial e de um bebedouro de plástico, que reproduzia, entre 'bloorps' e 'gloobs', os únicos sons do ambiente. Johnny mirou sua atenção nele e mordeu o lábio, pensando, enquanto Lila e Diego se juntavam a ela. Os dois a observaram quando ela fora até o quadro de anúncios e arrancara o panfleto de uma casa funerária de lá, olhando para o corredor mais uma vez antes de respirar fundo, chacoalhar o papel no ar e começar a caminhar.

Foram os passos lentos de Johnny, Lila e Diego que partiram da sala de recepção. Os que alcançaram Thomas Lawrance, no entanto, agora pertenceriam a três profissionais bem-vestidos, com macacões pretos e rostos de pessoas que sabiam o que estavam fazendo, diferente dele. Quando se reposicionou para encará-los, sentiu-se imediatamente culpado, e parte da culpa pertencia ao molhado rastro de café deixado em seu bigode.

— Nós estamos — ele usou a manga da blusa para enxugar os lábios. — Nós estamos fechados.

Seus olhos dispararam para a porta e depois para o trio, num nítido sinal de confusão. O prédio estava vazio e eram raras as ocasiões em que recebiam visitas àquela hora da madrugada. Sendo assim, ainda que estivesse exausto ou com os olhos vendados, não seria difícil perceber três pessoas desconhecidas marchando por aquelas portas. Mas, por alguma razão, Lawrance não se lembrava de tê-las visto se aproximando.

— Inspeção de última hora — A mulher da frente disse, mostrando um papel a ele.

Era loira e tinha uma voz melodiosa e persuasiva, O tipo de voz que seria capaz de convencer alguém a comprar um carro novo, mesmo não tendo habilitação. Lawrance coçou o queixo.

— Fomos enviados pelo Conselho — ela continuou. — Precisamos que o senhor deixe o prédio para que façamos o nosso trabalho.

A desconfiança em Lawrance era aparente, e sua relutância também. Lawrance se atentou aos outros dois, como se estivesse garantindo que ainda estavam ali, e voltou-se para a mulher, cujo crachá apresentava-a como Jannie. Ela tinha olhos enormes, e pareciam sorrir para ele. Depois, deu uma breve olhada no papel, uma olhada rápida e desinteressada, que mal alcançou o fim da primeira linha. E, mesmo sem ler, Lawrance sabia, de alguma forma, exatamente o que estava escrito lá.

Ele coçou o queixo de maneira hesitante enquanto a fitava, decidindo o que fazer. Não se parecia com os camaradas desconfortáveis da prefeitura, tinha feições muito infantis para a função, mas o cara atrás dela, o da cicatriz e da barba malfeita, era exatamente o tipo de profissional que podia ser encontrado por lá. E a pequena moça atrás dele também não ficava atrás.

— Não vou deixar o prédio, senhorita — ele avisou, voltando a se sentar preguiçosamente. — Se houvesse uma inspeção agendada, eu estaria sabendo.

— Senhor, mas—

— Sinto muito, dona, mas terão que voltar pela manhã.

Johnny se calou, convencida. Não estava disposta a dar meia volta, mas temia que, se insistisse, Lawrance voltasse a prestar a atenção nas coisas, despertando da breve fantasia em que ela o colocara. Olhou para trás com esperança de que a presença de seus companheiros pudesse ajudar as engrenagens de seu cérebro a ter outra ideia, e sentiu elas pararem quando colocou os olhos em Diego.

— Fomos enviados por John Perseus — Ela mostrou o papel novamente para Lawrance. Dessa vez, a informação estava lá, em letras maiúsculas, e fora lida com atenção pelos olhos do homem, impossível de ser ignorada. O rapaz parecia ter levado um choque. Num pulo, apoiou a xícara na mesa e retirou seu casaco de trás da cadeira em que estava sentado.

Já estava com um braço dentro de uma das mangas quando enfiou a mão no bolso e retirou de lá um molho de chaves, o qual entregou para Jannie - Johnny.

— Tranquem tudo quando terminarem — E os cumprimentou com um aceno, saindo depressa pelo corredor com os olhos atentos dos outros três às suas costas.

Johnny estava prestes a se gabar sobre o trabalho bem feito quando Lawrance subitamente parou. Diego e Lila se entreolharam. O Número Dois levara a mão até a parte de trás do cinto, e Johnny soube das intenções dele assim que lançou um olhar de aviso para ela. Estava prestes a concordar quando Lawrance apenas pediu:

— Não esqueçam de desligar as luzes.

Ela engoliu seco, concordando.

— Eu mesma irei garantir que elas serão apagadas.

Então, Lawrance partiu em direção à saída, sem olhar para trás, como um sonâmbulo à caminho da cama. Seja lá onde quer que ela estivesse.

[...]

O necrotério municipal possuía duas alas principais, além da recepção. A primeira se tratava do setor de liberação e controle do prédio, onde toda parte burocrática para o direcionamento de exames, investigações e registros de cadáveres era realizada. Se um corpo surgia do outro lado da cidade, era de responsabilidade deles garantir que o recém falecido não ficasse sem supervisão por muito tempo. Faziam um serviço rápido e, na maioria das vezes, limpo, como em qualquer outra empresa de transporte de carga - fosse ela humana ou não. Já a segunda, no subsolo, era onde a ação acontecia pra valer. E por coincidência, era também a favorita de Diego.

O Número Dois já havia feito visitas ao prédio antes, nas muitas noites de patrulhamento em que ele, sozinho, tentava colocar ordem na cidade enquanto os irmãos colocavam ordem nas próprias vidas após deixarem a Academia. Mesmo após as alterações na linha temporal, a sala de necropsia permanecia como antes, com a sobriedade e quietude de um consultório médico, a não ser pela placa de entrada, que agora era emblemada pelo brasão da Sparrow Academy.

O brasão também estava estampado nas lixeiras, jalecos e pastas, o que foi notado por Diego com um bufo zombador quando foi até a única mesa do ambiente e começou a vasculhá-la.

— O que estamos procurando? — Lila perguntou. Analisava a estrutura de alumínio na parede. Era alta e larga, com quatro fileiras de seis compartimentos cada uma e assoprava pelo ambiente um ruidoso barulho de geladeira velha.

— Um corpo — Diego respondeu, apanhando uma pasta.

Johnny apontou com o queixo para a parede de gavetas.

— Você está com sorte hoje — ela disse e, então, apoiou o corpo numa das macas vazias. — É só escolher.

— Será que estão todas cheias? — Lila perguntou para Johnny, que deu de ombros.

— Pela estrutura, eu diria que a estadia aqui deve ser bem disputada.

Diego se aproximou com um pequeno monte de pastas em mãos. Ele as espalhou pela superfície de metal da maca utilizada de apoio por Johnny e abriu uma por uma, revelando o prontuário de cinco pessoas. Virou o primeiro para que a loira pudesse lê-lo.

— Quantos anos o homem que foi morto no dia do ataque parecia ter?

— Ele não era muito velho — Os olhos dela correram pela caixa de informações na primeira ficha. Newton Routh, setenta e dois anos. Não era ele. Passou para a segunda pasta, e Lila parou ao seu lado, também lendo. — Aqui, o terceiro. Michael Stone. Deve ser ele.

Diego pegou a pasta e procurou pelo número de identificação do homem. A causa da morte não havia sido especificada, apesar de recente, e o detalhe adicionou um ponto na teoria do Número Dois. Foi até as gavetas e procurou pela qual correspondia ao número doze. Quando a encontrou, abriu sem muitas cerimônias.

Johnny fez um barulho enojado ao se aproximar.

— É, é ele mesmo — ela tencionava os lábios tensionados numa careta. Olhou para o homem por um segundo antes de erguer os olhos de novo, piscando.

Michael não estava num dos melhores ângulos, mas não era preciso muito esforço para reconhecer seu rosto grande e carnudo, ainda mais quando ele possuía o dobro do tamanho por conta do inchaço cadavérico. Mesmo depois do acidente, a feição dele continuou na mente de Johnny, e agora, ela tinha certeza de que jamais a esqueceria.

A imagem, porém, não pareceu afetar Lila, que se curvou sobre o morto para analisar os ferimentos suturados na pele do homem.

— Certo — Diego mais para si mesmo, como se estivesse avaliando as próprias constatações. Deixou as duas com o homem morto e voltou para a maca, procurando algo no prontuário de Michael. Seguiu pelas informações técnicas e parou na altura do carimbo do profissional que o recebera. Um pouco mais abaixo, o código de identificação B-03 chamou sua atenção.

Bingo.

O Número Dois olhou em volta, procurando por algo, mas sem saber ao certo o que. Tentou imaginar quais outros tipos de informações poderiam ser obtidas de um corpo costurado e uma ficha quase vazia e onde elas se esconderiam. Os arquivos enfileirados no canto da sala pareciam uma boa aposta. Caminhou até eles e correu os olhos pelas etiquetas que marcavam os compartimentos de cada um. B-03 estava ali. Diego puxou a alça do compartimento e, quando olhou para dentro dele, se convenceu de que as opções de sua investigação continuavam limitadas. O compartimento abrigava um saco plástico transparente, que tinha como únicos itens uma aliança, um relógio e uma caneta esferográfica azul, e todos eles pertenciam a Michael. Se o homem estava com alguma carteira quando morreu, ela havia desaparecido, assim como suas roupas, que Diego imaginava terem sido descartadas.

— São as coisas dele? — Johnny perguntou assim que viu o saco com objetos nas mãos de Diego, o relógio dourado ativando uma de suas lembranças.

— Três pessoas estavam naquela rua no dia do ataque. A TV tem culpado duas delas, mas uma, e a que provavelmente sabe a verdade, ainda não deu sua versão da história.

Lila balançou a cabeça, pouco confiante.

— Acho que vai ser um pouco difícil — ela deixou o rosto de Diego para olhar novamente para Michael. — Seu amigo aqui é um pouco caladão.

Para sua surpresa, o Número Dois sorriu.

— E é por isso que vamos consultar um especialista.