Klaus encarava o relógio digital em cima da mesa. Estava com os cotovelos apoiados nas coxas, as mãos fechadas na frente da boca e olhava para o retângulo sem piscar. Era um daqueles modelos modernos, com números brilhantes que mudavam como o painel de uma espaçonave. Klaus terminou de contar os segundos. Cinquenta e oito, cinquenta e nove, sessenta... E ainda assim faltavam duas horas e quarenta e cinco minutos para que ele parasse de trabalhar. Soltou um suspiro cansado e passou a mão pelo rosto como se estivesse amassando uma massa de pão. Sentia o baseado no bolso da camisa chamando por ele. Sua vontade era sair dali e acendê-lo num banco de praça, inalando a fumaça tranquilamente enquanto seus problemas eram levados pelos ar junto com ela.

Com problemas, Klaus se referia à pequena menina ao seu lado, que estava lhe acompanhando desde o fim de sua primeira sessão naquele dia. Amalia era uma jovenzinha espanhola de dez anos, com tranças grossas e ruivas em cada um dos lados da cabeça e olhos fundos e apáticos. Havia morrido em 1932, de tuberculose, e estava sendo procurada por dois sobrinhos que estavam escrevendo um livro sobre a família - informação que foi recebida por Klaus com uma risada rouca e curta. Livros e famílias, que combinação trágica.

Amalia, como qualquer criança, era curiosa e observadora. E, também como qualquer criança, gritava bastante. Até demais.

O Número Quatro tapou as orelhas quando uma nova onda de "AAAAHH" voltou a escapar da boca da menina. O comportamento vinha se repetindo bastante desde que ele a invocara. Na sessão, Amalia, pelo corpo de Klaus, encarou os sobrinhos por vinte minutos seguidos, sem dizer uma palavra, antes de afastar os lábios e gritar incessantemente por minutos a fio. Os dois homens saíram da reunião sem as respostas que queriam, e ele com a garganta doendo.

Agora, a projeção astral da menina o perseguia, e os gritos dela também.

— Chega, já chega — Ele pegou o relógio e colocou na frente dela, no sofá. Ainda gritando, a garota abaixou os olhos e encarou o objeto. — Brinque com isso, tá bem? Pode desmontar, se quiser. Jogar na parede... sei lá, faça o que quiser. É seu.

E levantou, já se afastando:

— Eu vou lá fora tomar um ar — Ele disse por cima dos ombros enquanto contornava a mesa de centro. — Você pode ficar aí se quiser... Na verdade, não sai daí, beleza? Eu volto logo.

Mas a garotinha mal o olhou. Ao menos, ela havia se calado, e Klaus tomou cuidado para mantê-la assim, pisando levemente enquanto se dirigia para a saída, temendo que o grito daquela pequena demoniazinha despertasse outra vez. Atravessou a sala em silêncio e, de costas, abriu a porta, atento à menina, passando pela porta sem respirar e fechando-a com a cautela de um desarmador de bombas.

Assim que alcançou o outro lado, porém, Klaus cogitou voltar para a presença de Amalia. Precisou de poucos segundos para olhar para a recepção dos Mothers of Agony e chegar a essa conclusão. Não sabia qual das duas cenas que aconteciam na frente dos seus olhos era mais inusitada: a tentativa do gigantesco Morgan em conter Diego, que se debatia e se esticava para alcançar a sua faca presa na parede; a imagem de Lila, cravada às costas de Patrick, - o motoqueiro da careca tatuada e sobrancelhas raspadas -, numa assustadora determinação para que ele libertasse o Número Dois; ou, então - e o que lhe parecia muito pior -, o fato de que eles haviam descoberto onde Klaus passava a maior parte do tempo quando queria evitá-los.

O Número Quatro deu um passo para trás, voltou a segurar a maçaneta e abriu a porta por três centímetros antes que ela fosse fechada novamente com um baque forte, pela mão de outra pessoa. Olhou para o lado e, quando viu Johnny, Klaus xingou como se tivesse batido o dedinho do pé na quina de uma mesa. O palavrão não era pelo susto, mas sim por não tê-la previsto antes.

— Você trouxe eles aqui — Acusou, seu rosto assumindo todos os traços de alguém prestes a voar no pescoço de outra pessoa.

Johnny sacudiu os ombros.

— Eu decorei o caminho. Fiquei surpresa por você não ter trago seus irmãos aqui ainda.

— É meu emprego, sua idiota, não a porra de uma praça de shopping.

Ela franziu as sobrancelhas, a boca se abrindo com um ar irônico e superior.

— Ser contador é ter um emprego. Você só é esquisito.

Klaus pôde jurar que havia sentido a pálpebra do olho esquerdo tremer. Sempre pensou que se sofresse um ataque cardíaco, a fatalidade seria causada pela quantidade de drogas que consumia e não por ver o irmão e a possível cunhada se atracando com um bando de brutamontes tatuados enquanto era importunado pelo rosto azedo de uma fofoqueira do Novo México. Deixou a própria frustração escorregar pelos ombros e levou os braços para cada lado do corpo na mesma intensidade que uma criança costumava usar quando se cansava de alguma brincadeira. Depois, apertou a ponte do nariz, prevendo por uma dor de cabeça que ainda - ainda — não tinha o alcançado, e pigarreou:

— Tá, parem com isso — E o pedido soou pelo ar inutilmente, empurrado pela pouca disposição que ainda restava em sua voz. Com exceção à Johnny, que havia se desencostado da porta e parecia interessada nos resultados de suas ordens, o murmúrio desanimado não fizera nenhum efeito na confusão.

Chutes, cotoveladas, gritos e insultos à mãe de alguém ainda rolavam pelo ar.

Então, Klaus decidiu tomar as dores do próprio negócio, respirou fundo e, quando notou, estava no meio dos braços de Diego e Morgan. No entanto, mesmo com a interrupção, Diego lutava para se desvencilhar das mãos que o seguravam e, quando seu oponente, Morgan, tentou acertá-lo no olho, passando perigosamente perto do rosto de Klaus, o Número Quatro esticou os braços e empurrou os dois homens para lados opostos.

— Merda, vocês vão arrancar minha orelha!

— A culpa é dele! — Morgan justificou para Klaus, apontando um dedo decidido e bastante acusatório para Diego. Seu tom, por um instante, o fez parecer vulnerável, tão infantil que nem mesmo a carcaça máscula e imponente de integrante de uma gangue conseguiria salvá-lo.

Ele se virou para encarar o irmão, e Diego devia ter interpretado a seriedade em seus olhos porque antes mesmo de questioná-lo, o Número Dois abriu a boca e explicou:

— Nós só queríamos negociar.

Klaus inclinou a cabeça, sentindo uma súbita vontade de esmagá-lo. Durante a infância, era Diego quem se atirava sobre ele e o segurava no chão até que fizesse as pazes com Ben, quando brigavam. Com o Número Seis era a mesma coisa. Diego se lançava contra o sexto Hargreeves e só o libertava quando estivesse seguro de que nem ele e nem Klaus estavam irritados um com o outro. Agora, depois de mais de vinte anos e um irmão a menos, era Klaus quem queria se atirar sobre Diego. E ele não o soltaria tão cedo.

O Número Quatro respirou fundo.

— Negociar, Diego? Usando as mãos?

Os ombros de Diego se levantaram.

— A gente precisa falar com você de algum jeito.

— Só com horário marcado, cara! — Morgan avançou um passo, ainda irritado, e Klaus o segurou. Ou, pelo menos, era o que parecia estar tentando fazer.

— Isso mesmo, tem clientes na fila — Julian, o velho motoqueiro, falou detrás do balcão, e só então Klaus o notou.

Era possível ver os olhos azuis arregalados e o cabelo branco mesmo com o seu rosto parcialmente protegido por um vaso de planta e um computador velho. Julian era um motoqueiro acima de tudo, mas também era um ótimo recepcionista e, como qualquer um que ocupava tal função, também tinha um exímio talento como fofoqueiro.

— É assunto de família! — Diego rebateu, também dando um passo a mais para ficar frente a frente com Morgan.

— Resolve isso na terapia então! — Morgan devolveu.

— Já chega! — Klaus gritou, e, de alguma forma, a ordem fizera efeito, porque Diego e Morgan pararam.

Se estavam o obedecendo ou apenas aguardando para matá-lo, Klaus não sabia afirmar, mas, de qualquer forma, estava certo de que se não saísse dali rapidamente, ele acabaria vomitando nas botas de um deles e isso com toda a certeza acabaria em homicídio por alguma das partes. Olhou para baixo e puxou Lila, arrancando-a das pernas de Patrick e a colocando de pé ao seu lado sem nenhum resquício de delicadeza. Depois, apanhou a mão de Diego na mesma intensidade e, com o semblante de quem estava de saco cheio, falou:

— Vou resolver isso — afirmou com tamanha convicção que não dera aos outros outra escolha senão acreditarem nele. Klaus iria resolver aquilo. Ele precisava resolver.

— É, é bom mesmo — Julian havia se levantado um pouco mais de seu esconderijo. Agora, o rosto estava quase todo à mostra, e ele lançava um olhar condenador para Johnny. — Aquela mocinha me prometeu um carro e eu só encontrei uma lata de lixo no lugar.

Johnny ficou contrariada.

— Você olhou debaixo dela? — ela perguntou, sarcástica, enquanto o enrugado rosto de Julian ficava cor-de-rosa.

Klaus não deixou que o velho respondesse. Com Diego e Lila à tiracolo, passou por Johnny e a empurrou, junto com os outros dois, para dentro de seu escritório.

Quando se virou, Morgan o esperava com um olhar severo.

— Você tem meia hora — ele avisou.

E então Klaus fechou a porta.

[...]

A primeira coisa que Diego sentiu quando entrou na sala foi calor. E era surpreendente, já que havia passado a vida toda imaginando que sessões espíritas vinham obrigatoriamente acompanhadas por ambientes frios e velas pretas. O escritório de Klaus, pensou ele, talvez fosse uma exceção. No lugar das velas, haviam luminárias coloridas, e o espaço tinha o conforto e o exagero que apenas o irmão saberia combinar. Como o quarto de uma sessão espírita, aquele era diferente e... bem, como Klaus.

Olhou para o Número Quatro enquanto o rapaz empurrava os cacos daquilo que parecia ser um relógio estraçalhado para debaixo do tapete, no meio da sala. Resmungava baixinho, e Diego se perguntou, parado em frente à porta junto com Johnny e Lila, se deviam atrapalhá-lo. A menor lhe lançou um olhar de incentivo.

Vai — Lila articulou com a boca um sussurro que mal teve som.

Diego pigarreou.

— Klaus — chamou, e o Número Quatro os olhou como se eles fossem os únicos estranhos da sala.

— Vocês ainda estão aí? Venham pra cá, não temos muito tempo — falou com urgência. Então, baixou as pálpebras com força e jogou a cabeça para trás. — Merda, isso vai ser um porre. Minha cabeça já começou a doer — ele abriu os olhos novamente e, quando viu que nenhum dos três havia se movimentado, gesticulou com mais insistência — Vamo, galera, se mexe! Eu não mordo — e fez uma pausa, refletindo por um segundo. — Tá, talvez eu morda, mas isso vai depender da sessão.

Por fim, esperou que Diego se aproximasse para colocar as mãos na cintura e perguntar:

— O que você aprontou dessa vez?

— Ele levou a gente no necrotério — Lila respondeu, sem olhar para o Número Quatro. Estava analisando o local quando a iguana dentro do aquário prendeu sua atenção. O bicho colocou a língua pra fora, e a pequena mulher estremeceu.

Perto dela, Johnny se acomodou no sofá de leopardo e se espreguiçou nele enquanto concordava:

— É, ele foi atrás daquele cara que morreu na avenida principal naquele dia. Michael Stone, esse era o nome — ela coçou a cabeça. — Seu irmão acha que se você falar com ele, talvez possamos descobrir quem foi o responsável por tudo aquilo.

A declaração fez Klaus piscar como se algo tivesse caído em seus cílios. Encarou o irmão

Klaus encarou Diego. Havia ficado tão quieto e pensativo que, por um segundo, o Número Dois imaginou que o irmão desistiria de ajudá-lo. Mas então - e como Diego deveria ter previsto -, o rosto de Klaus se revirou numa careta, e o Número Quatro pareceu usar toda a força que seu corpo possuía para impedir que os lábios se abrissem. O esforço, Diego contou, durou menos de três segundos até que a gargalhada desafinada do irmão explodisse pelo ar.

— Cara, você tem sérios problemas.

— Você acha que consegue falar com ele ou não? — Diego perguntou, sentindo as orelhas queimarem.

Klaus enxugou uma lágrima.

— Bom, isso depende.

— Depende do que?

— Se ele vai querer falar comigo, ora — Klaus franziu a testa e então começou a tirar as alpargatas. Os sapatos foram chutados e pararam em direções opostas, distantes um do outro, mas o Número Quatro não se incomodava em procurá-los depois. — Todos têm essa visão de que espíritos estão sempre à mercê da vontade humana, prontos para serem invocados a qualquer hora, mas isso não é verdade — ele colocou uma mão na cabeça e a puxou para o lado, alongando o pescoço. — Eles são geniosos, alguns até arrogantes, e ficam bem mais dependendo da forma em que morreram — falou e, depois, dobrou uma perna e a segurou pelo tornozelo.

Diego desviou o olhar do irmão para encarar Lila, que parecia tão deslocada quanto ele. Imaginou que para falar com o outro lado, Klaus precisaria de dentes de alho e sementes, e não do preparo físico de um maratonista. Quando o alongamento acabou, Klaus foi até o sofá e começou a coletar almofadas. Parou na quarta, uma amarela com estampa de gato, que se encontrava atrás das costas Johnny e precisou de alguns segundos para ser arrancada de lá. Com todas as outras em mãos, Klaus circulou pela mesa de centro e as posicionou em cada uma das extremidades dela.

— Vocês teriam uma hospitalidade melhor se tivessem um horário marcado — Klaus ia dizendo enquanto se acomodava na almofada do meio, gesticulando para as outras. — Escolham um lugar e tentem relaxar. Fantasmas são como cachorros, se sentirem que você está com medo, vão se aproveitar disso — ele olhou para Diego, que decidira ocupar a almofada de zebra à sua esquerda. — O que vocês trouxeram?

O irmão esticou a caneta azul e a aliança, e Klaus gemeu com desgosto.

— Vocês invadem o parque de diversões dos médiuns e é o melhor que conseguem pegar?

— As roupas dele sumiram.

Klaus olhou para Johnny.

— Como?

— Diego olhou — A loira respondeu com convicção, sentada à sua frente. — Ele não tinha muita coisa.

— E quanto aos sapatos?

Ela balançou a cabeça, e Klaus suspirou. Era sempre mais fácil quando tinha sapatos. Bastava colocá-los e se concentrar em um ponto fixo. Em menos de três minutos - dois, se estivesse limpo há mais de 24 horas -, sussurros começariam a rodeá-lo com um forte cheiro de fumaça. Os espíritos, por algum motivo que Klaus já havia desistido de tentar compreender, possuíam uma afeição quase obsessiva com os calçados os quais haviam morrido e tendiam a procurá-los assim que alguém os calçava. Era como segurar migalhas de pão em um parque, Klaus gostava de pensar. Se aguardasse com paciência, não demoraria até estar cercado de pombos. Já com outros itens, o processo era... estressante, e Klaus sempre acabava vomitando depois.

Ele olhou para a caneta azul e depois para a aliança. A energia dos dois itens era forte, mas instável, quase como uma rádio fora de sintonia. Nenhum deles facilitava as coisas.

— Que seja — ele resmungou, revirando os olhos ao pegar a aliança e colocá-la no dedo anelar. — Vamos começar.

Mas não começaram. Depois de quinze minutos, Klaus estava inquieto, fechando os olhos e os abrindo poucos segundos depois, e irritado por não conseguir se concentrar. Os espectadores, ele podia sentir, entreolhavam-se constrangidos, sem saber como podiam ajudá-lo. Johnny havia até mesmo prendido a respiração. Com as bochechas infladas, a jovem encarava Klaus com a mesma expectativa nos olhos de quem havia ido ao zoológico para observar chimpanzés comendo banana. Não era extraordinário, mas algo precisava acontecer, não precisava? Nos próximos quinze minutos, para ser exato. O tempo disponível para que Morgan não chutasse a porta e retirasse todos dali usando toda a força que os seus 1,90m de altura estava prestes a se reduzir para catorze, e Klaus estava começando a se desesperar.

O Número Quatro conseguia sentir certas vibrações no ar. Eram intensas e pareciam frescas, mas nenhuma delas pertenciam à pessoa que ele estava procurando. Ele fechou os olhos novamente e passou o polegar pela aliança de ouro. A conta não batia. Se era casado, deveria nutrir algo pela esposa. Fosse amor ou ódio, sessões com elementos conjugais costumavam canalizar sentimentos intensos, infalíveis na evocação do mundo espiritual, mas aquela, para o azar de Klaus, estava sendo uma exceção.

Tentou imaginar o que mais poderia equivaler a tais emoções. Quem sabe, Michael Stone fosse apaixonado pelo que fazia? Algumas pessoas eram bem fiéis aos seus trabalhos, até mesmo depois da morte. Ou então ele tivesse algum animal de estimação do qual não tivera a chance de se despedir. E se fossem filhos? Michael podia ter garantido às crianças que voltaria para um beijo de boa noite, mas a promessa talvez tenha sido interrompida por sua morte. Isso mesmo, filhos.

Dois deles.

Billy e Maxine, uma perfeita dupla pestinhas...

Klaus sentiu os pêlos da nuca se arrepiarem. Os nomes praticamente pularam em sua mente, brilhantes e urgentes, e ele se impediu de sorrir em comemoração quando os dedos dos pés começaram a esfriar. Manteve a concentração nas duas crianças.

Billy e Maxine. Billy e Maxine. Billy e Maxine. Billy e Maxine.

Duas pestinhas.

Suas pestinhas.

Tinham sete anos. Amavam sorvete, tinham medo de tempestades, eram fãs de Guerra nas Estrelas e detestavam pepino. Maxine tinha olhos castanhos e amendoados, e Billy tinha sardas no nariz. O menininho usava o mesmo tênis vermelho o tempo todo, pois acreditava que lhe davam sorte quando brincava de pique-esconde com a irmã.

Billy e Maxine.

Seus filhos.

Michael percebeu que não estava com eles. Quando o pensamento lhe ocorreu, foi como se uma nuvem de desespero pairasse em cima da sua cabeça. Ergueu o rosto e encarou os desconhecidos na sala tomado por temor e confusão. O medo foi catalisado por uma convulsiva dor nas clavículas, que deslizava para os braços e terminava nas costelas. Sentia como a pressão ali fazia com que seus olhos ardessem em cada momento que seus pulmões esvaziavam. Atônito, ele começou a olhar em volta, tateando o próprio corpo e, quando alcançou a região onde deveria de haver um ferimento, soltou um gemido que fez Johnny se assustar.

— Onde eu estou? — perguntou, com a voz rouca.

Os olhos lacrimejavam e seu rosto tinha a expressão confusa de um sonâmbulo que acabava de ser despertado.

— Michael? — A sobrancelha de Diego se ergueu.

Não tinha motivos para duvidar do dom de Klaus. Ele mesmo já havia tido provas concretas de que o irmão conseguia fazer coisas extraordinárias quando não estava com algo injetado nas veias e acreditava em si mesmo. No entanto, algo em seu cérebro estava com dificuldade para assimilar que, além daqueles dois olhos verdes e intensos, agora existia uma outra pessoa.

A dúvida, porém, permaneceu em seus pensamentos por poucos minutos, até que Michael gaguejou:

— Nos conhecemos? Diga-me, senhor, onde estou?

Diego fechou a boca. Cético ou não, ele conhecia o irmão bem o suficiente para saber que Klaus não falava formalmente e, muito menos, com sotaque britânico. Aquela era a voz de alguém que lia o jornal todas as manhãs, bebia café sem açúcar e jogava golfe nas horas vagas.

— Somos amigos — Diego respondeu. — Queremos te ajudar.

— Você está seguro agora, Michael — Lila afirmou, se sentindo estranha e ao mesmo tempo, fascinada com a interação.

Uma linha dividiu a testa de Klaus. No comando daquele corpo, Michael ainda tentava compreender tudo o que havia lhe ocorrido nos últimos dias. A dor permanecera, mas o calor voltara a incomodá-lo, junto com o amontoado de perguntas que se acumulavam como peças de dominós em sua cabeça. Uma após outra, Michael recebia confirmações de que seja lá o que tivesse lhe acontecido, não poderia feri-lo mais do que já havia ferido, pois estava morto. E o que lhe deixava mais aborrecido, era saber que mortos não voltavam para casa, pelo menos não do jeito que gostariam.

O detalhe o fez cerrar os punhos, cravando as unhas na carne das palmas das mãos.

— Meus filhos, eu — ele soluçou. — Eu estava indo pra casa. Só isso, eu não queria...

Johnny estava séria, mas havia compaixão em seus olhos.

— Nós sabemos — ela interrompeu com cautela. — É por isso que estamos aqui, queremos descobrir quem fez isso com você — Então viu os traços severos e assustados que habitavam o rosto de Klaus se suavizarem.

A informação havia surpreendido Michael. Como não poderia? Para muitos, ela bem sabia, a morte era o fim da linha e, de certo, aqueles que passavam por ela não deviam estar acostumados a ter alguém do outro lado com um tempinho livre para vingá-los. Ao menos não de uma forma tão direta.

Além disso, Johnny achava particularmente estranho se comunicar daquela maneira. Klaus estava lá quando Michael foi assassinado e, com exceção a ela, o rapaz era a única pessoa que podia fazer perguntas ao falecido homem com outra perspectiva além da que os turvos detalhes dos quais se lembrava a permitiam elaborar. Ali, no entanto, o desafio de dialogar com um estranho dentro de feições agora tão familiares confundia o seu raciocínio e a fazia se sentir, no mínimo, idiota.

— Do que você se lembra? — Johnny insistiu, se contendo a não revirar os olhos ao pensar no tempo que eles economizariam se Klaus pudesse aproveitar a estadia de Michael em seu corpo para atualizá-lo com a memória que tinha sobre o ocorrido.

Ela, porém, soube quando a pergunta o fizera pensar. No início, a ação não passou de um olhar prolongado num ponto fixo no fundo atrás de Johnny. Depois, algo começou a fomentar em seu maxilar, uma tensão rija e determinada, do tipo que só poderia ser resolvida socando a cara de alguém ou virando todas num bar. A questão havia sido um fitilho de pólvora diante de uma bomba de sentimentos, e Michael - Johnny teve certeza assim que o viu umedecer os lábios - estava pronto para explodi-la.

Foi então que ele começou a falar.

Foi então que ele começou a falar.

Michael era um chefe de família dedicado. Amava a esposa como todo marido era capaz de amar e se esforçava para manter uma boa relação com os filhos enquanto se esforçava para mantê-los vivos e alimentados. Era também um profissional tradicional. Chegava pontualmente no trabalho às nove da manhã e permanecia lá até que todo o serviço estivesse feito. Às cinco da tarde, os funcionários iam embora, mas a dedicação de Michael o prendia no escritório noite adentro, e depois que todos os formulários eram preenchidos e todas as pastas eram organizadas, o homem caminhava sozinho até em casa.

Na noite em que morreu também não foi diferente. Pelo contrário, ela vinha sendo tão igual às outras que Michael realmente acreditou que chegaria em casa, cumprimentaria os filhos e dormiria ao lado da esposa, mas algo no meio do caminho o fez mudar de direção. Havia algo estranho no ar. Michael não sabia dizer se era a forma como as luzes piscavam ou como seu corpo ficara repentinamente intimidado pela presença de míseros pássaros nos fios de alta tensão, mas o homem acelerou o passo e só parou quando alcançou uma via residencial.

— Assim que comecei a caminhar novamente, todas as casas se apagaram. Como se um blackout estivesse só esperando eu colocar um pé naquela rua — Ele umedeceu os lábios e fez força para engolir. — E então, a pancada veio, e eu só consegui recuperar a consciência outra vez quando já estava machucado e preso na frente daquele carro.

— Preso? — Diego repetiu, confuso.

— Eu não conseguia me mover. Era como se... — Michael fez uma pausa, e então continuou — Meu corpo estava paralisado, em transe. Eu nunca senti aquilo na vida. Meu cérebro dava comandos, mas o resto de mim simplesmente não conseguia responder.

— E então o carro acelerou — Johnny disse, fazendo uma careta quase empática ao se lembrar da cena.

Michael assentiu.

— Sozinho. Sem ninguém dentro.

Nada mais precisou ser dito. A afirmação foi absorvida e interpretada pelos demais presentes na sala de imediato, e Johnny mal precisou olhar para Lila para saber que ela possuía a mesma expressão esclarecedora e sugestiva de Diego. O Número Dois estava satisfeito pela confirmação de sua hipótese, mas nada fazia seus olhos arderem como uma boa desculpa para chutar algumas bundas. E aquela, que Deus abençoe Michael, era perfeita. Ele passou a língua nos dentes e conteve um sorriso enquanto balançava a cabeça e dizia:

— Aqueles filhos da puta...

Este é o último capítulo disponível... por enquanto! A história ainda não acabou.