Foi em uma breve viagem para a Itália, no final do verão dos anos 70, que Reginald ouviu pela primeira vez alguém julgá-lo como “o tipo de homem silencioso demais''. O comentário foi dito numa padariazinha veneziana, comandada por Colombo e Leonardo, dois irmãos gêmeos particularmente apaixonados por vinho, mas que não sabiam escolher um bom queijo. A escolha da palavra, na ocasião, havia feito Reginald cozinhá-la em sua mente durante cada minuto da meia hora em que levara para finalizar o péssimo café com conhaque que haviam lhe servido. Ele pensou nas variações da palavra silencioso. Não era quieto, tampouco sossegado. E, definitivamente, também não se adequava ao condicionamento que sereno e calmo lhe implicavam. Silencioso lhe soava muito mais elegante e fiel ao que realmente era.

Quando a meia hora acabou, Reginald se levantou e não pagou a conta.

Apesar de assertiva, não gostava que fizessem deduções sobre ele.

Depois dali, tornou-se atento às próprias - e poucas - qualidades e concluiu que, sim, havia certo valor nelas, ainda que não oferecessem tanta sonoridade ao mundo. Vivia confortável com o seu silêncio e em sua vida silenciosa ao lado da adorável esposa. Grace era compreensiva e, aos olhos dele, divina. Ela gostava de música, de longos jantares e de participar de conversas sbre assuntos triviais, como a previsão do tempo. Além disso, Grace podia ser deliberadamente mais comunicativa do que ele, mas conseguia apreciar as tardes silenciosas em que liam um para o outro e se reconfortar na maneira como suas vozes eram o único som que transitava pela mansão em que viviam. O silêncio, ele sabia, era menos solitário quando compartilhado com ela.

Nos últimos dias, Reginald vinha sentindo falta dele. Não se lembrava de um dia sequer naquela semana em que havia conseguido manter sua introspecção sem que precisasse falar um pouco mais para garantir que as coisas continuassem sob o controle. E, mesmo que ele e Grace estivessem se esforçando, há quem acusasse dizer, caso escutasse superficialmente pelo lado de fora daqueles portões, que havia muitas mais vozes ali dentro do que as que o casal conseguia contar.

— Malditos ecos — Reginald murmurou para si mesmo. Estava com um parafuso preso no canto dos lábios e com as mangas arregaçadas até os cotovelos para livrá-las das mãos sujas de graxa.

Luther, que o ajudava do outro lado da bancada, moveu a cabeça para tentar escutá-lo.

— Como disse? — O Número Um perguntou.

Reginald crispou os lábios, apontando para a chave de fenda. Estavam trabalhando numa peça que Reginald havia desenterrado de uma das caixas. Luther estava curioso para decifrar a funcionalidade do objeto, mas não estava disposto a levantar questões até que tivesse certeza de que não estavam apenas lidando com o concerto de um motor de micro-ondas. Era metálica, pesada e repleta de fios, e Luther torcia para que aquilo pudesse ser algo fantástico.

O Número Um entregou o objeto rapidamente, como o ajudante prestativo que era, e virou a cabeça por um segundo para olhar por cima do ombro, em direção a discussão dos irmãos. Mais cedo, Luther havia se queixado sobre o barulho, mas a reclamação fizera com que a horda de discussões se virasse contra ele, dessa vez, liderada por Diego, que, igualmente irritado com a primeira discussão, incitara outra sob o pretexto de que não era necessário silêncio quando o assunto era puxar o saco de Reginald. Depois disso, Luther não disse mais nada, mas continuou direcionando olhares de julgamento para a baderna às suas costas.

— Eu não entendo o motivo de vocês estarem complicando as coisas — Allison ia dizendo no meio da sala. Assim como os outros, já havia perdido o controle da própria voz, que soava alta pelo ambiente. — É apenas uma visita idiota. Observar as coisas, se lembram? — Ela sacudiu o papel que Nova lhe entregara mais cedo. Estava amassado e, se a breve análise de Luther estivesse certa, Allison descontava nele o que gostaria de fazer com o irmão menor.

Cinco, que olhava para ela com a cabeça erguida para compensar os centímetros a menos que tinha de altura, descruzou os braços para bater uma palma desencorajadora.

— Certo, vamos em frente! Vamos observar alguns quadros e andar de mãos dadas até explodirem as nossas cabeças — falou enquanto uma fenda profunda repartia o espaço entre suas sobrancelhas.

— E como você acha que bancar o James Bond no meio de outros sete idiotas vai acabar?

— Com alguma vantagem, eu espero — Cinco respondeu. — Você tem poderes, Allison, mas o rumor não é mais rápido do que uma bala de prata.

Allison não se afetou. Diego, que por sua vez estava à espera de alguma oportunidade para provocá-lo, sim.

— E você é? — retrucou, avaliando a pequena figura do irmão com desdém.

O rosto de Cinco não se moveu, mas um palavrão lhe escalou pela língua, e o garoto o segurou, com muita força, para que um novo round de insultos não começasse outra vez.

Da bancada de Reginald, Luther observou as mãos do irmão abrirem e fecharem, e o detalhe o fez esboçar um leve e zombeteiro sorriso. As discussões estavam sendo bastante promissoras até aquele ponto. Depois de Allison contar a todos sobre o evento que seria promovido no hotel pertencente à Sparrow Academy, os ânimos mudaram. A oportunidade cairia como uma luva para conseguirem informações e, caso tivessem alguma sorte, se aproximarem de Perseus. O clima também mudou quando Vanya se voluntariou em acompanhar Cinco e Allison na missão, ainda que a Número Três afirmasse, com todo afinco e teimosia que sua personalidade forte lhe permitia, não ser necessário o uso de uma força bruta, como a da irmã. Naquele ponto, Allison sustentava o argumento de que ela e os irmãos seriam apenas mais três civis no meio de centenas e não havia motivos para se comportarem com tanta desconfiança. Cinco, obviamente, discordava. Por ele, não só levariam Vanya, como também iriam armados até os dentes. O garoto estava disposto a seguir a vontade de Allison - desde que estivesse com uma navalha em um dos bolsos.

No centro do debate, Klaus também estava se divertindo, Luther percebera. O Número Quatro estava sentado com Johnny no sofá da salinha improvisada do Bunker, e assim como ela, assistia à discussão que, inicialmente, fora criada por eles.

Todos tinham assistido ao noticiário naquela manhã, e a notícia de que o irmão estava sendo novamente procurado pela polícia não demorou a repercutir entre eles. Em menos de uma hora, metade da família já estava reunida, estressada e com belos sermões para serem lançados contra a dupla, que, não surpreendentemente, foi a última a chegar. Depois da constatação de que ambos estavam bem e vivos, algumas reclamações foram feitas, e até Reginald destacou como eram sortudos por não terem sido esmagados em alguma esquina. Mas então, Johnny perguntou à Allison sobre o papel que ela estava segurando e, em pouco menos de sete minutos, a discussão já havia adotado outra pauta.

— Então você tinha um culto — Johnny falou, olhando debaixo das unhas. Assim como Klaus, estava com alheia ao debate paralelo que acontecia ao redor deles e com a cabeça deitada preguiçosamente no sofá, mirando o teto como duas crianças esquecidas pelos adultos na noite de Natal. No colo dela, o gato começava a pegar no sono. O Número Quatro balançou a cabeça em afirmação, mas continuou com os olhos erguidos, tentando contar quantos parafusos tinham nas colunas de aço do teto. Ele já tinha iniciado a contagem duas vezes. — E vocês faziam sacrifícios, esse tipo de coisa?

Klaus negou, e Johnny deu de ombros. Ficaram em silêncio.

Hum — Johnny começou, mas tornou a fechar os lábios para pensar um pouco. Abandonou as unhas para acariciar carinhosamente a cabeça do gato e, depois de ouvi-lo ronronar, virou a cabeça para olhar para Klaus. — O que andou fazendo em 9 de agosto de 69?

Num primeiro segundo, Klaus não se moveu. O Número Quatro continuou assistindo Cinco argumentar sobre como nem mesmo a melhor camiseta do Bozo camuflaria seu olhar assassino e sua capacidade de matar sei lá quem em sei lá onde, até que a data levantada por Johnny começou a ser assimilada pelo seu cérebro.

Em linhas diretas e bem literais, Klaus mal se lembrava da última refeição decente que havia tido. Ele sabia que o prato em questão fora um belo filé com batatas, servido numa sessão em que tivera que “consultar” o falecido marido de uma sous chef, mas não conseguia apontar exatamente quando aquilo havia acontecido. Ter uma boa memória estava entre as milhares de habilidades a qual não fazia questão de possuir, afinal, ele havia passado a maior parte de sua vida tentando se esquecer das coisas, e não se lembrar delas. Com exceção há alguns meses de 1968, Klaus não fazia a menor ideia do que estava fazendo em...

— Ei, eu não sou aquele cara! — Klaus respondeu, mais preocupado do que ofendido. Não era a preocupação de quem se incomodava em ser chamado de maluco, mas sim a de quem se perguntava se estava tão mal ao ponto de o confundirem com um.

— Bem, você tava meio parecido com ele naquela foto — Johnny se moveu no próprio assento. — O cabelo comprido, o culto e tudo mais.

Klaus usou uma mão para afastar a ideia.

— Sabe quem também era assim? — Ele usou os dedos para contar — Jesus, John Lennon… — Os olhos dele se voltaram para Johnny, que semicerrava os olhos, não muito convencida. — E eu adoro a Sharon, tá bem? Eu—

A explicação de Klaus foi cortada pela metade quando a voz de Diego os puxou de volta para o debate. Ao que parecia, Allison estava esperando que o Número Quatro lhe desse razão. Do ponto de vista de Klaus, a irmã não tinha nenhuma, mas sabia que, em algumas circunstâncias, um belo aperto de mãos era eficaz e suficiente para impedir uma guerra.

Por isso, quando Diego afirmou:

— Klaus, você viu de perto o que aconteceu ontem à noite — E perguntou: — Acha que podemos confiar neles?

Klaus se limitou a resmungar, com um ruído demasiadamente interpretativo, uma sílaba tendenciosa, que valia tanto para o não quanto para o sim. Não duvidava que alguém da Sparrow Academy fosse perturbado o bastante para fazer algo como aquilo. Qualquer um faria - até mesmo sua irmã, veja só, sua pequena e sensível irmã, havia explodido a lua. Mas Klaus não queria dar esse mérito a eles. Era legal demais.

Insatisfeita com a resposta do irmão, Allison contraiu os lábios e, com o semblante sério, olhou para Diego.

— Eles são super-heróis, atraem inimigos — Allison disse, impassível. — Vocês esqueceram de todos os supervilões que enfrentávamos? — Ela ergueu o papel na altura dos olhos do irmão. — É isso o que acontece quando se tenta salvar o mundo: algumas pessoas se revoltam e saem por aí explodindo carros. Pode ter sido um inimigo da Sparrow quem fez tudo aquilo.

O Número Dois a observou por um minuto.

— Como tem tanta certeza? — perguntou.

Um suspiro cansado se esvaiu pelos lábios da mulher.

— Nós vamos para investigar. Só isso.

Próximo a eles, Klaus se espreguiçou.

— Bom, por mim vocês podem fazer o que quiserem — Klaus disse, e Johnny o acompanhou com os olhos enquanto ele se levantava do sofá. — Se a coisa ficar feia, deem um soco no Ben por mim, beleza? Aposto que reencontrar aquele babaca vai ser uma experiência fascinante pra vocês.

— Ei, ei, aonde você tá indo? — Allison tentou impedi-lo de prosseguir, e Klaus afastou o braço da irmã carinhosamente. As sobrancelhas dela se frisaram numa expressão de relutância. — Não acha que a gente deveria conversar?

— Sobre o que? — Klaus questionou sem muito esforço, o cansaço arrastando as palavras dele.

Diego também se levantou.

— Você tá sendo procurado pela polícia — Ele respondeu no lugar de Allison. — Vocês dois.

O Número Quatro e Johnny se entreolharam. Um sorriso preguiçoso pendia na boca de Klaus quando ele falou:

— Eu sempre tô sendo procurado pela polícia, Dieguito — disse. Johnny também não era exceção. — Paz pra vocês, eu vou dar uma dormida — Um bocejo lhe escapou no meio da frase, e Klaus aproveitou a deixa para dar ouvidos a ele. — Não me chamem se o pau quebrar — Então, adotou uma expressão mais séria: — Tô avisando.

Com as pernas pesadas, o Número Quatro se arrastou, a passos lentos e desanimados, para a saída do bunker. Sentia-se cansado, mas não do jeito bom que costumava ficar após alguns comprimidos. Era o tipo de cansaço que faria uma alma se desprender do corpo, algo que Klaus conhecia muito bem. Também estava começando a ouvir sussurros ao seu redor. Eles não estavam realmente lá, e poderiam muito bem ser resolvidos com um cigarro bem enrolado, mas tinha uma sessão agendada pela manhã e não gostaria de perder a clientela outra vez por não ter “segurado as pontas”.

Na sala deixada para trás, Allison e Vanya começavam a se concentrar na tarefa de tornar Cinco menos parecido com um senhor aborrecido no corpo de um jovem e transformá-lo em um jovem simplesmente aborrecido. Antes de sair, acompanhada pelos dois irmãos, Allison chamou por Luther.

— Tem certeza de que não quer ir com a gente?

— Tenho — Ele desviou a atenção da bancada de serviço por um segundo para encará-la. Quando a encontrou, os lábios de Luther se apertaram num sorriso compreensivo. — Tenho sim.

Allison hesitou um pouco antes de dar às costas e ir embora. No rosto da Número Três, a preocupação vinha acompanhada de um tom calculadamente amigável. Como se Allison estivesse lidando com um filhote machucado e, caso fizesse um movimento errado ou fizesse a escolha errada de palavras, ela o perderia de vista. Quando deixou a sala, Reginald olhou para Luther e, sem tirar os olhos do maquinário, sugeriu:

— Devia acompanhar seus irmãos.

Luther segurou um pequeno riso, como se a possibilidade fosse absurda. Em silêncio, ele se concentrou em continuar apertando os parafusos. Depois, refletiu em voz alta.

— Eles estão melhor sem mim — Mas o tom indiferente de Luther não pareceu convencer Reginald. O Número Um sentiu um vago desconforto, que o fez querer se explicar. — Confio neles.

O rosto do velho não se moveu. Em silêncio, ele mostrou novos fios os quais Luther deveria segurar e usou uma pequena solda para prendê-los. Quando conseguiu, deixou a ferramenta de lado e usou o dorso da mão para enxugar a testa.

— Nem sempre o papel de um líder é dar ordens e vê-las prosperar, meu jovem — Reginald finalmente disse. Depois, fez uma pausa e voltou a apanhar a solda. — Às vezes, estar presente mesmo quando as coisas dão errado já é o bastante.

E, por um momento, Luther sentiu como se o conselho não fosse somente sobre ele.

Do outro lado do bunker, Diego também começava a se fazer perguntas, e sua inquietude fora notada por Lila assim que ela se juntara à Johnny no sofá.

— Tem alguma coisa errada — Ele sussurrou pra elas, o brilho conspiratório nos olhos dele lançando uma lembrança desagradável para a mente de Lila.

— Eles vão dar conta, Diego.

— Não, não isso — Ele mordeu a bochecha, os olhos divagando. Depois de pensar um pouco, voltou a encará-las. — O que vocês vão fazer na madrugada?

Lila e Johnny se entreolharam.