A água já escorria por dois minutos quando Johnny se lembrou de onde estava, no minúsculo banheiro de um bar. Apoiada na pia, sentia o cheiro de álcool, urina e do vômito que, surpreendente, não era seu. Ela prestou atenção nas moscas que sobrevoavam o vaso sanitário esquecido no canto do ambiente. Os insetos subiam e desciam pela cerâmica encardida e pousavam no chão escorregadio, tão sujo quanto as suas mãos. Ela as esfregou debaixo da água corrente como pôde e sentiu os arranhões escondidos pela poeira do asfalto arderem com o contato. Também havia sangue debaixo de suas unhas. Se era seu, Johnny preferia não pensar muito sobre a possibilidade. Já não conseguia diferenciar os hematomas novos dos velhos, o que fazia com que aquela crosta vermelha, formada pelo fluido vindo do corpo de um desconhecido, se tornasse o detalhe menos desagradável que tivera que lidar nas últimas 24 horas.

Ela sacudiu uma mão e afastou uma mecha de cabelo. No espelho, seu reflexo não era decepcionante, mas não se parecia com o que havia visto pela última vez em Roswell. Os lábios estavam machucados, a língua tinha um gosto metálico. Seu corpo visivelmente precisava de um banho. O rosto estava abatido e cinza, também pela sujeira, e outra mancha de sangue havia se acumulado debaixo do nariz.

─ Eu estou bem repetiu para si mesma. Então, molhou os dedos novamente e os esfregou sob a pele machucada. ─ Estamos bem.

Johnny fez uma careta para o próprio reflexo. Nos pés, sentiu o corpo peludo e quente do gato passar por uma perna e depois pela outra. As patinhas dianteiras amassaram o couro de uma de suas botas e um miado lânguido foi soprado para ela. Os dois sabiam que não estavam.

Quando saiu do banheiro, avistou um Klaus sonolento do lado de fora. Estava sentado no banquinho do balcão de bebidas, usando o corpo para girá-lo lentamente, enquanto tinha a cabeça equilibrada na palma da mão direita. Os óculos dela estavam no rosto do Número Quatro, e o vislumbre de um hematoma podia ser visto por trás das lentes. O rapaz havia sido atingido em cheio na maçã do rosto, e quando Klaus pegou o acessório mais cedo para escondê-la, Johnny não se importou em deixá-lo com ele pelo resto do caminho.

Não são nem dez horas O comentário foi para o copo com líquido transparente na frente de Klaus. Ergueu a cabeça para o relógio na parede e confirmou que estava certa: mal haviam alcançado as nove.

Johnny olhou ao redor antes de se sentar. O barman, tatuado e careca, enxugava uma caneca por bons minutos enquanto assistia o noticiário. Um homem com rosto vermelho, que fumava do outro lado do balcão, encarava o nada com as pálpebras de alguém que já havia tomado cervejas demais, apesar do copo quase cheio numa das mãos. Outro cliente tentava fazer com que Paul McCartney parasse de cantarolar através da jukebox, sacudindo o aparelho.

No geral, a clientela não parecia preocupada com o tempo.

É vodka Klaus disse por fim. A resposta foi alongada por um bocejo. Os olhos por trás dos óculos piscaram, e o Número Quatro se esticou, despertando. Pra você.

Johnny hesitou, separando os lábios numa negação silenciosa. Muitas coisas podiam ser aprendidas ao crescer sozinha numa dimensão paralela. Uma das principais, sem sombra de dúvidas, era descobrir que dias ensolarados - diabolicamente ensolarados - eram tortuosos quando vividos o tempo todo. Em recorrentes crises de revolta, Johnny havia olhado para cima, para o céu límpido e claro, e xingado, quem quer que estivesse lá no alto escutando, quando não encontrara nenhuma nuvem fora do lugar que lhe desse esperança. Já a outra outra lição era que esses mesmos dias se tornavam ainda piores quando ela estava bêbada. Johnny adorava beber; suas habilidades fluíam muito melhor com o álcool, e dependendo da quantidade certa, conseguia ficar distante o suficiente para não se lembrar do quão solitária era. Mas então as primeiras horas se passavam e as lágrimas vinham, acabando com a sua diversão.

Ela balançou a cabeça para Klaus. Já havia tentado matar seus irmãos, falhado e desistido. Sua honra não era mais a mesma, e preferia não desperdiçá-la com um copo de rum.

─ Eu fui cuspido em 1968 uma vez ─ explicou ele, erguendo o copo de dose com três dedos. ─ Fiquei um tempo por lá e depois apareci aqui de novo, na porra de um ônibus, com uma baita dor de cabeça e uma vida que antes não era minha.

Johnny franziu as sobrancelhas.

─ E beber rum te ajudou?

Uma risada sarcástica e aguda foi bufada por Klaus.

─ Não. Eu continuei me sentindo um merda depois, mas fez a dor de cabeça passar ─ E, depois de dar uma piscadela, o Número Quatro levou o pequeno copo até a boca, engolindo a dose numa golada, que escorreu garganta abaixo num rastro quente e ardido. Depois de um ah satisfeito, bateu o copinho de vidro no balcão. ─ Quer outra?

─ Pega leve, você mal tem bolsos ─ Ela respondeu, sabendo que sua dedução não estava completamente enganada. Johnny analisou a figura magra no banquinho e concluiu que Klaus não parecia ser o tipo de pessoa que andava com muito mais do que notas de dinheiro amassadas nas calças, algo que também o classificava como perda de tempo, no ponto de vista de uma especialista em colecionar (roubar) carteiras.

O gato miou para ele, e Johnny lançou um olhar conspiratório para o animal, apertando um sorriso. Klaus, por sua vez, ficou imediatamente ofendido, sacudindo um dos pés para que o bichano se afastasse dele.

─ Ei, eu tenho dinheiro ─ disse, olhando por cima dos óculos. Depois, pensou um pouco, e a imagem dos cigarros que comprara no posto de gasolina na noite anterior o fez mudar de ideia. ─ Tá, não comigo aqui agora, mas tenho. Pode acreditar. Na verdade, estava esperando que você fizesse aquele seu bibidi-bobidi-boo e transformasse um pouco de palha em ouro.

─ Você fala como se fosse fácil ─ Johnny tentou parecer modesta. Já havia feito algo parecido uma vez. Não tinha transformado palha em ouro, mas conseguiu fazer com que um cara acreditasse que uma caminhonete enferrujada era, na verdade, um possante da Ford. ─ Me surpreende você não ter pedido pra sua irmã controlar as pessoas pra te embebedarem.

─ Ah, eu tentei isso uma vez ─ Ele se lembrou, um ar nostálgico e humorado invadindo o seu rosto. ─ Ela ficou zangada e eu mijei nas calças por uma semana por culpa do rumor ─ Klaus semicerrou os olhos. ─ Sabe, se eu conseguisse controlar mentes igual a vocês, ninguém me veria de novo ─ Então, virou-se com um dedo levantando, tentando chamar a atenção do barman, que continuou olhando para a televisão, imóvel. Klaus assoviou, e, quando não obteve resposta, bufou, frustrado. ─ Deveríamos ter entrado naquele restaurante turco, aposto que o atendimento seria melhor.

─ Eu não controlo mentes, Séance, eu engano elas. Hipnose.

Klaus voltou a encará-la.

─ Allison comentou sobre as abelhas que você a fez imaginar. Ela tinha picadas reais no corpo.

Johnny olhou para a televisão, mordendo a bochecha. Uma jovem bem vestida, de cabelos ruivos e voz suave, apresentava a previsão do tempo ao lado do âncora. Haveria uma tempestade naquela semana, o tempo ficaria abafado e quente. Ela já estava suando.

─ Algumas pessoas são mais suscetíveis do que as outras ─ explicou. ─ Posso fazer você imaginar que sua mão está pegando fogo e, dependendo do que tem dentro da sua cabeça, ele pode queimar de verdade ─ A meteorologista agora apontava para um canto do mapa do estado. Preparem seus guarda-chuvas, e o âncora riu como uma idiota. ─ Eu nunca entendi como funciona. ─ Como eu funciono, ela queria dizer.

Ficaram em silêncio. No fundo do bar, o cara da jukebox xingou a mãe de alguém. De Paul McCartney, Johnny imaginou. Eleanor Rigby começou a tocar outra vez.

Klaus estalou a língua.

─ Eu odeio toda essa merda ─ admitiu, e Johnny olhou para ele antes de voltar a prestar atenção na televisão. Eram mais coloridas do que ela se lembrava. ─ Os mortos e tudo mais. ─ Ele apoiou um braço no encosto do banquinho e olhou para dentro do copo vazio, balançando a cabeça. Johnny concordou preguiçosamente. Entendia o que Klaus queria dizer, havia pensado muito sobre isso nos últimos anos, mas a perspectiva parecia mais deprimente naquela pocilga de bar. Suspirou para a televisão. O âncora havia retornado para a sua bancada elegante e estava prestes a anunciar a próxima manchete. ─ Ser normal, sabe? Eu não me importaria em ser apenas um problemático. Mas, porra, um problemático com poderes? Merda, isso é demais.

Johnny deixou que Klaus continuasse falando. Fazia tempo que não ouvia alguém tagarelar daquela forma, imprevisível, sem que pudesse prever qual seria a próxima palavra que seria dirigida à ela. Estava tão acostumada com diálogos repetidos, que se surpreendeu pela facilidade com que o Número Quatro oscilava sua atenção entre uma frase e outra, entre o gato e ela. Olhou de soslaio para a TV. O âncora parecia preocupado. Uma imagem familiar assumiu a tela, e Johnny obrigou seus olhos voltarem para ela antes mesmo de terem alcançado completamente o rosto de Klaus. Ela franziu a testa, assimilando as informações e, quando as pequenas letras da manchete se juntaram com as imagens exibidas pelo noticiário, sentiu a voz do Número Quatro se distanciar, lentamente, até desaparecer.

─ Klaus ─ Ela o chamou, sem desviar os olhos da tela.

─ Celine era uma velhinha ótima, mas eu odiava quando ela surgia no pé da minha cama e…

Com o cotovelo, Johnny cutucou o braço do Número Quatro depressa, e Klaus afastou o corpo, dramático, enquanto engasgava uma reclamação sobre a brutalidade da jovem, que revirou os olhos, cutucando-o com um dedo.

Merda, Klaus. Olha! ─ Johnny pediu, sussurrando por entre os dentes num tom de quem precisava ser ouvida, mas não pelas pessoas erradas.

Como se os mínimos dos movimentos pudessem lhe custar anos de vida e com uma chateação nitidamente esboçada em seus lábios frisados, Klaus cedeu aos pedidos de Johnny e olhou para a tela com expectativa de encontrar algo fascinante ao ponto de fazer com que todos aqueles cutucões valessem a pena. Ali, porém, deparou-se com algo muito mais interessante e, enquanto deslizava os óculos pela a ponte do nariz para enxergar melhor, se lembrou do quanto detestava telejornais.

Ainda não temos informações concretas sobre o paradeiro desses criminosos, mas ao que tudo indica, eles são os principais suspeitos de serem os responsáveis pelo ataque que causou a morte de um homem na Avenida Principal, ontem à noite, o âncora dizia de modo eloquente. Sua imagem havia sido colocada no lado direito enquanto no esquerdo, imagens de câmeras de segurança exibiam os registros do ocorrido. Tudo estava lá: os carros desgovernados, a instabilidade estática dos postes de luz, o momento exato em que o homem foi morto e, como também era esperado, as imagens dele e de Johnny, que depois da grande descrição do jornalista, não se pareciam mais com as de dois idiotas que tentavam, do modo mais desastroso possível, não serem transformados nas próximas vítimas.

Ao seu lado, Johnny se encolheu quando as imagens pixeladas e em preto e branco de seu rosto ganharam mais qualidade, ocupando o lado esquerdo da tela.

Sabemos ainda que o segundo arruaceiro possui certas semelhanças com um famoso líder religioso e agitador dos anos 60.

Foi a vez de Klaus se encolher, e, enquanto Johnny o encarava com as sobrancelhas franzidas e com um esforço surpreendente para não rir, ele se convencia de dois detalhes importantes. O primeiro era que, definitivamente, ele era o mais fotogênico de seus irmãos. Afinal, ninguém que ficava tão bem num retrato falado como aquele poderia ser considerado feio ou pouco atraente.

As autoridades recomendam que a população fique em alerta. Eles estão em liberdade e são perigosos. Caso você saiba de algo, não hesite em procurar ajuda.

O segundo, e não menos importante, era que ele e Johnny estavam ferrados.