Allison batia com o lápis em sua prancheta enquanto observava o movimento do refeitório. As entregas daquela manhã já haviam sido feitas, seu café estava frio e suas costas doíam. Se não fossem pelas caixas que teria que empilhar depois do almoço, a Número Três arriscaria dizer que o Centro Comunitário conseguia se organizar por conta própria, como se coisas e pessoas encontrassem seus lugares sem que ela precisasse orientá-las ou movê-las. Era entediante e Allison adorava.

Assistia a um pequeno garotinho se alimentar na frente da mãe. Com os pequenos dedos unidos, apanhava as ervilhas do prato, uma a uma, enquanto a jovem mulher o observava, orgulhosa e alegre. Ali, no espaço em que as refeições eram servidas, cenas assim se repetiam de vez em quando, e de seu balcão de recepcionista, Allison desejava guardá-las para sempre. Eram comuns, e o comum a deixava mais perto de quem era. Ou de quem costumava ser. Mas, principalmente, a deixava mais perto de Claire.

Ela sentia saudades da filha todos os dias. Ás vezes, a dor de sua ausência conseguia transformar noites em dias, e Allison só se dava conta de que não havia pegado no sono quando já estava em frente ao espelho, se arrumando para outro dia de trabalho.

Na semana passada, Cinco a flagrara em um de seus episódios de insônia. O menino estava numa das escuras e empoeiradas poltronas de Reginald, com um livro no colo e um copo de whisky na escrivaninha ao lado. Estava estudando outra vez. As sobrancelhas unidas acompanhavam o dedo indicador pela página aberta, sussurrando as frases como se o murmúrio pudesse, quem sabe, transformá-las em palavras mágicas. Um feitiço, uma solução. Allison permaneceu em silêncio, foi para cozinha e, quando voltou, o irmão chamou por ela quando a viu passar pela porta.

— Tenha um bom dia — Ele disse, sem tirar os olhos do livro. Allison não o respondeu, mas depois daquilo, pegou no sono e dormiu profundamente, em paz, como jamais acontecera em nenhuma outra noite até então.

Allison voltou a olhar para o garotinho. Agora, as ervilhas haviam acabado e ele saboreava o suco de laranja igual mãe, satisfeito como ela. O Centro Comunitário contava com instalações de primeira. A ajuda aos mais pobres vinha de todos os lados, as doações eram frequentes e não faltavam. As refeições eram fartas, os funcionários bem pagos. Possuíam uma creche, uma farmácia, dois alojamentos e o grande refeitório. E, como tudo naquela cidade, o lugar pertencia a John Perseus. O detalhe nunca chegou a ser dito para os irmãos. Para a Número Três, o novo emprego era uma distração dos dias em que voltava para casa e o próprio reflexo a lembrava de Ray, da filha e de suas histórias apagadas, soltas como poeira em algum lugar no tempo. Se os irmãos descobrissem, outro plano seria construído, expectativas seriam criadas e, no fim, Allison se veria novamente no chuveiro, abraçada à tristeza pela incerteza de ter a filha nos braços outra vez.

O pensamento fez seu o estômago doer. Ela largou o lápis e se afastou do balcão para enxugar as palmas das mãos na saia do conjunto azul claro, que lhe dava uma aparência hospitalar e cansada, como a de uma enfermeira. Depois, fechou os olhos e alongou o pescoço, mas parou quando a porta principal se abriu. A visitante se chamava Nova, e Allison sorriu quando a jovem tentou acenar para ela, um pouco atrapalhada, enquanto trazia consigo uma pequena caixa de papelão. Quando chegou no balcão, Nova colocou a caixa sobre ele e enxugou a testa com o moletom que estava vestindo. No centro do casaco, o emblema de Princeton era escrito em vermelho e, de acordo com o que Alisson sabia, Nova nunca tinha ido para a faculdade.

— Parece que precisam de ajuda — A jovem disse, olhando para as caixas atrás de Allison, que balançou a cabeça, ainda risonha.

— Nova, a sua agenda...

— Eu sei, eu sei. Mas sabem que estou aqui dessa vez. Bom, sabem que eu estou indo para lá, na verdade. Essa é só uma missão que apareceu no meio do caminho — Disse, se apoiando no balcão. — Não posso negar.

Nova era um pouco mais alta que Vanya e, apesar de nunca ter perguntado, a Número Três deduzia que deviam ter a mesma idade também. Mas em momentos como aquele, ou quando a jovem aparecia com copos de café em dias frios e passava tardes organizando prateleiras e armários, Allison a enxergava menor, mais frágil - mesmo quando sua realidade era outra.

Nova precisava de pessoas por perto, e nem sempre isso era dado a ela.

— As caixas vieram mais pesadas, realmente. Estamos em apuros — Allison foi até o arquivo na parede, abriu a gaveta de número 06 e retirou um prontuário de papel creme. — Não quero que se meta em encrenca — Ela apanhou o lápis novamente e, na primeira página, escreveu o nome da última pessoa que havia se hospedado em um dos alojamentos.

Owen Bayle, 62 anos, ex-usuário de drogas.

— Eles me tratam como se eu fosse uma criança — Nova confessou.

— Quem? — A testa da Número Três se enrugou. Os olhos dela correram pelo papel e quando chegaram na última linha, o sobrenome Hargreeves foi assinado no espaço destinado ao supervisor daquele turno.

— Todo mundo. Me julgam por eu pensar que acabar com a fome é mais importante do que me exibir num assalto televisionado. Querem estar o tempo todo comigo, uns com os outros.

— Pensei que gostasse disso — Allison colocou a data. Depois, virou a página.

— E eu gosto! — Nova gesticulou. — Mas não desse jeito. Querem me dizer como devo andar, o que devo comer, aonde devo ir.

— Nova, eles se preocupam com você. Não posso culpá-los por isso.

Nova apertou os lábios. Apesar do cabelo preso, um punhado da franja cacheada lhe caía sobre a lateral do rosto e, mesmo estando de boné, Allison tinha certeza de que qualquer um ali poderia facilmente reconhecê-la.

— Como aguenta os seus irmãos?

Allison voltou a olhar para ela. Havia mencionado a família em algumas das muitas conversas que haviam tido. Para Nova, Allison era apenas a irmã mais velha de uma família grande, com outros irmãos mais velhos, diversos irmãos caçulas, um pai idoso e sua jovem e peculiar esposa. Não havia mencionado os poderes, nem a vida passada, nem todas as coisas malucas que cercavam a Umbrella Academy. A história de Allison os desenhava como uma família normal, repleta de problemas e personalidades.

— Quartos separados. Os mais tranquilos no meio, os mais estressados na ponta. Uma agenda cheia e com horários diferentes. Faz a casa parecer maior e até agora ninguém se matou.

— É fácil dizer, vocês são uma família.

Os olhos de Allison caíram sobre o papel novamente. Se uma afirmação como essa fosse feita há alguns anos, a Número Três certamente não mediria esforços para refutá-la. Depois que deixou a casa do pai ainda jovem, sempre considerou que os Hargreeves eram apenas uma parte triste e conturbada da história que, com a fama e a maternidade, tentava esquecer. Em sua vida pública, soube esconder bem seus traumas e eles permaneceram ocultos e inquestionáveis mesmo depois que Extra Ordinary, o livro que Vanya havia escrito sobre a família, passou a estar nas vitrines das livrarias da cidade inteira. Mas muitas coisas haviam mudado desde a morte do Reginald original. A relação entre ela e os irmãos estava diferente. Ainda com algumas dificuldades e farpas ocasionais, mas diferente. E Alisson gostava de pensar que não existia mágoa familiar incapaz de ser superada depois de dois apocalipses.

— O que tem na caixa? — A Número Três apontou com o lápis para o objeto, mudando de assunto, e as sobrancelhas de Nova pularam, como se só então tivesse se lembrado daquele detalhe.

— Eu tô tão animada com isso — Ela começou a manusear o quadrado de papelão, os lábios abertos num sorriso empolgado enquanto Allison se levantava. — Não é sempre que acatam as minhas ideias, você sabe, mas imaginei que fosse uma forma criativa de ajudar a população — A caixa foi aberta, e Nova usou a mão direita para apanhar o que estava dentro dela. — E, bem, eles acharam que pode ser um bom tipo de propaganda. Aqui, fique com um — Ela lhe entregou o papel.

Não foi preciso que Alisson analisasse o panfleto para que ele a atraísse. O material era de uma qualidade notável, brilhante e bem diagramado, e as informações nele atingiram o cérebro da Número Três como se uma pequena cordinha fosse puxada e uma lâmpada acendesse, iluminando seus pensamentos.

Venha nos visitar!, o anúncio convidava. Faça sua doação e conheça as acomodações da Sparrow Academy, e, acima da frase, o imponente hotel usado como QG para o grupo de heróis era ilustrado.

Allison ficou séria. Se sorrisse, provavelmente gargalharia e não gostaria de explicar a Nova o porquê. Ao invés disso, alisou o papel e deixou que os olhos se enrugassem, encenando uma comoção.

— Isso é muito bonito, Nova — Disse, e o sorriso de Nova se espalhou. — Vocês vão ajudar muitas pessoas.

— Eles provavelmente vão estar muito ocupados tirando selfies e coisas assim, mas vou esperar por você lá. Será minha convidada de honra.

Allison balançou a cabeça, lisonjeada e levemente culpada. A bondade em Nova era genuína, soube disso quando a amizade das duas começou a crescer. Tinha um coração heroico, que não precisava de um uniforme ou de uma máscara para começar a bater, e esse era um dos detalhes que fazia a Número Três tanto admirá-la. Olhar para Nova era como olhar para trás e, pela primeira vez em anos, a imagem não lhe desapontava. Mas Allison ainda tinha um compromisso com os irmãos. Acima daquela amizade, queria retornar para sua vida antiga e, caso Cinco estivesse certo, a oportunidade naquele panfleto poderia ser a abertura para que ela conseguisse isso.

Em sua frente, o celular de Nova tocou, e a garota o desbloqueou com uma careta.

— Estão atrás de você? — Allison perguntou enquanto voltava para o registro dos alojamentos.

— Só estão enviando atualizações sobre o ataque da madrugada — Nova apertou o botão lateral e bloqueou o aparelho.

— Ataque?

— Parece que foi um latrocínio. A avenida principal ficou uma bagunça — Ela deu a volta no balcão, e Allison revirou os olhos, sorrindo, quando ela foi até as caixas. — Vou me juntar a eles depois que eu te ajudar com isso aqui. Nosso almoço chique no refeitório ainda tá de pé amanhã? — A jovem já empurrava as mangas do moletom.

— Marcado — A Número Três sorriu.

[...]

Hotel Oblivion.

Sala de reuniões da Sparrow Academy.

Horas antes.

Nova prendeu a respiração quando entrou na sala. O ar preso era sua capa de invisibilidade, e ela temia que se o soltasse, sua presença fosse tragicamente anunciada aos demais enquanto caminhava até o seu lugar na mesa. Nova também se concentrou no som dos próprios passos até que estivesse nele. Se ficasse quieta o bastante, o ir e vir dos pés no chão se tornaria alto o suficiente para abafar os cochichos e as risadinhas que, hora ou outra, costumavam cercá-la. Nova até desejava que os ruídos estivessem lá. Se rissem dela, ao menos não teriam tempo para culpá-la por sua impontualidade outra vez.

Ela se sentou na quarta cadeira da mesa, lembrando-se de respirar novamente. Quando Sacha e Nadja passaram pela porta, olhou para as mãos e soltou o ar com mais vontade. Ela não havia sido a última a chegar.

O Número Três e a Número Sete sentaram-se de frente um para o outro. No ombro da jovem, uma de suas aves se aninhou no seu cabelo dourado, piscou os olhos escuros e, deixando um rastro de penas para trás, desapareceu. O truque, apesar de impressionante, não atraiu muito mais do que alguns olhares desinteressados, alheios ao incomum.

Finnley, o Oráculo, vibrou no ar quando as penas caíram sobre o assoalho, e Nadja o encarou com uma sobrancelha levantada, mas nenhuma queixa foi feita. A limpeza - assim como tudo o que não se dizia a respeito ao papel de benfeitores, famosos e superdotados - não era problema deles. Tinham certeza de que se derramassem propositalmente uma taça de vinho, seis empregados brotariam debaixo dela apenas para impedir que o líquido não alcançasse os seus sapatos.

Faziam cinquenta anos desde que aquele prédio havia sido construído. E vinte e dois desde que ele havia sido destinado para o serviço de hotelaria. Como lar para a Sparrow Academy, o grande Hotel Oblivion estava sendo utilizado há apenas seis, e a excelência de suas cinco estrelas ainda continuava sob a direção de John Perseus. Nos duzentos e trinta e sete quartos, haviam dormido celebridades como Diana, John Lennon e Frank Sinatra. No luxuoso bar, chefes de Estado haviam comemorado juntos, completamente bêbados, a vitória em partidas de pôquer. Caminhar pelo carpete indiano, que se estendia por aqueles corredores amplos e impecavelmente limpos, era como passear pelas páginas de um livro de história. E, a cada andar alcançado pelo elevador, era como se ela ainda acontecesse, bem ali, como um eco numa caverna.

O último a entrar na sala foi Benjamin. Marlí se sentou ao lado de Nova quando o viu e Sergei, que estava sentado em cima da mesa, usando o dedo como isqueiro para queimar a pontinha das lavandas que a decorava, desceu do móvel rapidamente e tomou o seu lugar ao lado de Nadja. A sala, antes movimentada, se silenciou, e Ben permaneceu de pé em frente às grandes janelas que iluminavam o prédio, dando-lhes as costas. O Número Um se apoiou sobre o peitoril de madeira, os braços afastados, as costas curvadas, os olhos mirando o horizonte. Atrás dele, rostos preocupados se entreolharam, culpados por algo que não sabiam ter feito. Os segundos se passaram, e com o silêncio de Ben, Nova suspeitou de que não era a única que prendia a respiração.

— Por que não devemos rejeitar um fã? — Ele perguntou, a voz rouca e confiante percorrendo a sala como um pequeno terremoto.

Rostos se levantaram. Silêncio novamente.

— Para sermos gentis? — Sergei arriscou, e Ben esfregou os lábios.

Marlí chutou Sergei por baixo da mesa. O rapaz fez uma careta, e ela o encarou com olhos descrentes por tamanha ingenuidade. Ben não se importava com suas opiniões e não as solicitava sem que uma armadilha estivesse montada para elas.

— Porque sempre tem alguém olhando — A resposta veio de Finnley, que flutuava ao redor da mesa.

De costas, Ben apenas balançou a cabeça, lançando outra ponta de ansiedade em seus parceiros. Finn ficou curioso para saber o que o rapaz estava pensando. Podia ler mentes e, se quisesse, conseguiria ler a de todos ali presentes, mas mantinha-se dentro dos limites quando se tratava do Número Um. Não gostaria que Ben ultrapassasse a barreira que inconscientemente haviam estabelecido em relação ao uso de seus poderes em integrantes do grupo e ter que lidar com dois monstros ao mesmo tempo. Se isso acontecesse, um deles acabaria destruído, e isso seria uma pena, pois Finn gostava de ter o líder como um aliado.

O Oráculo deslizou para o fundo da sala, em direção ao assento que, caso fosse humano, se sentaria. De lá, assistiu quando o silêncio de Ben se transformou em repúdio e, numa súbita reação, fez com que o horror acontecesse. Os mortais da sala se encolheram quando os tentáculos saíram do abdômen do Número Um e acertaram as janelas. O barulho de tecido se rasgando se uniu ao ruir dos vidros e, depois, ao dos vasos e das cortinas arremessados para longe pelos oito braços animalescos comandados por Ben.

Não estavam surpresos com a ira do líder. Seu temperamento há muito tempo não lhes causava o espanto que haviam tido nas primeiras vezes em que se depararam com corpos dilacerados e civis severamente machucados. De vez em quando, ex-presidiários e usuários de drogas desapareciam em ruas escuras, e quando a polícia recorria à Sparrow Academy para solucionar tais casos, todos se esforçavam, mas nenhum deles mencionava as vezes em que Ben escapava durante a madrugada e reaparecia pela manhã, sonolento e coberto de sangue. O sigilo havia sido acordado entre a academia como um pacto implícito, seguido rigorosamente por cada um de seus integrantes desde que haviam se conhecido. E, dada a facilidade com que Ben conseguia partir um crânio ao meio, nenhum deles se arriscaria a quebrá-lo.

Quando se virou, o Número Um ainda estava irritado. O pescoço e as orelhas estavam vermelhos e uma veia protuberante era irrigada um pouco abaixo do maxilar. As mãos ainda tremiam quando ele se aproximou da mesa para observar seus companheiros.

— Há sempre alguém olhando, porra! — Ben fez com que um dos tentáculos se chocasse contra a superfície da mesa.

Outro susto. Nova se encolheu com o barulho, mas Sacha sequer piscou.

— Essa cidade é cercada por câmeras, sempre vai haver um babaca com a merda de um celular na mão querendo registrar o momento. A imprensa nos persegue como uma prostituta persegue o cafetão — Ele olhou para Marlí e lambeu os lábios, contendo a saliva. — O que eu preciso fazer para vocês entenderem que não podem sair por ai bancando os espertinhos? — O tentáculo se ergueu e rodeou Nadja. — Arrancar seus olhos?

A jovem loira engoliu seco. Não era vulnerável, tampouco fraca, mas ainda que soubesse cada extensão de seu poder, precisava conter o instinto de seu corpo. Enquanto tentava se manter calma - o queixo empinado, a respiração devagar –, lutava contra o medo que fazia suas mãos tremerem. Quando Ben ergueu outro tentáculo e o enviou para perto de seu pescoço, Nadja sentiu os olhos esquentarem e precisou morder a língua para não perder o controle.

O tentáculo a circulou devagar até finalmente enrolar-se sob sua pele como um colar, uma cobra enrolada ao tronco de uma árvore. Nadja arfou quando sentiu o aperto de Ben, encarada por rostos pálidos e impassíveis. Seus olhos se arregalaram, e ela tateou o estranho braço que a enforcava, implorando, contra os seus instintos, para ficar viva.

Use seus poderes, eles gritavam. Faça-o pagar. Mas tudo o que Nadja se permitia fazer era contentar-se com o próprio sofrimento.

— Nós conseguimos o sangue de um deles — Sacha finalmente disse, fazendo com que o Número Um parasse e o aperto ao redor do pescoço de Nadja diminuísse. Os tentáculos pararam no ar como se um feitiço fosse quebrado, e Ben virou a cabeça lentamente para olhá-lo.

Naquela enorme cadeira, Sacha parecia ainda mais frágil do que o Horror costumava vê-lo. A clavícula protuberante debaixo do fino tecido da regata branca, os olhos cinzas, cercados por olheiras escuras e profundas, o maxilar afiado e magro. Ben não duvidava que, se encostasse nele com um pouco mais de força, conseguiria desmontá-lo como um castelo de areia.

— Não sabemos exatamente a quem pertence, mas conseguimos durante a confusão da madrugada — O pálido rapaz disse rapidamente, seus olhos passando rapidamente por seus companheiros como se pedisse por ajuda. — Finn nos ajudou.

O rosto de Ben mudou. Ao olhar para o cubo flutuante, conteve o próprio comportamento, deixando os músculos relaxarem. Quando Finnley começou a falar, os tentáculos já haviam sido contidos e guardados.

— Cuidar dessa cidade sempre foi o objetivo da Sparrow. Fomos ensinados a mantê-la limpa a qualquer custo — Finn voou para o lado de Ben, sua voz robótica num tom amigável. — Precisamos dar segurança aos cidadãos, aniquilar as impurezas para que vivam bem. Não seria diferente agora.

— Poderiam ter sido pegos — O Horror o encarou. Um riso escapou de Finn.

— Fazendo o nosso trabalho? Sim, poderíamos, mas creio que ninguém nos julgaria por isso. Encare isso como um atalho. Cedo ou mais tarde, eles se meteriam em encrenca, nós só antecipamos a confusão. E agora, com o nosso empurrãozinho, eu garanto que toda a cidade verá eles como realmente são: uma ameaça.

Em seu lugar, Marlí lançou um olhar sugestivo para Ben.

— Exatamente como você nos ensinou, Número Um.

A falta de reação do líder fez uma nova onda de tensão pairar sob a sala. Viram quando os olhos dele se movimentaram, tranquilos e escuros, para analisar a figura de Sacha, depois, de Nadja. Quando finalmente seu rosto se moveu para Finnley, a desconfiança já havia o dominado. Ele observou o cubo, as pequenas luzes azuis que o salpicam brilhando, e, então, deixou os lábios se curvarem num sorriso curto.

— Marlí, pode? — Ele pediu, apontando com a cabeça para a bagunça que deixara pela sala, e a mulher de cabelo curto e pele salpicada sorriu. As mãos dela foram para cima, os dedos envergados, e quando eles se mexeram, cacos de vidro e pedacinhos de concreto começaram a levitar. Os fragmentos seguiram obedientemente até os seus lugares de origem e a bagunça começou a se dissipar – os estilhaços pontiagudos voltaram para as janelas, os rasgos nas cortinas se uniram, recuperando o tecido grosso e elegante do objeto, e até os vasos que haviam sido derrubados no meio da confusão estavam de pé novamente. Nas prateleiras, livros empoeirados ganharam um novo brilho. Na pele alva de Nadja, a vermelhidão deixada pelo ataque desapareceu.

Ben assumiu novamente o centro da mesa. Enquanto afrouxava o nó da gravata, parecia satisfeito ao olhar para o grupo.

— Arrumem as coisas de vocês, a avenida principal está um caos e precisam da nossa ajuda para arrumarem as coisas por lá — Sua atenção parou em Sergei. — Fez o que eu te pedi?

O jovem piscou os olhos coloridos – um castanho, assim como a pele, e outro azul -, e assentiu, colocando um papel sob a mesa.

— Como sempre, chefe.

Os dentes de Ben apareceram. Ele foi até Sergei e apanhou a arte de suas mãos. Depois, a apontou para Nova, que se moveu desconfortavelmente no assento.

— Blackout — Ele chamou, e a garota tensionou a testa, confusa, olhando para os lados em busca de uma sósia. E, naquele meio segundo em que esticou a mão para obedecê-lo, desejou realmente que existisse uma outra Blackout naquela cidade que não fosse ela. Outra Nova, mais leve e inconsequente. Quando olhou para o papel, desejou ser outra pessoa, alguém que não se importasse tanto quanto ela.

Venha nos visitar? — Ela repetiu a frase no cartaz.

— Você vive dizendo por aí que gostaria de ser mais útil — Ele colocou o dedo sob o papel. — Creio que essa seja uma boa maneira de começar. — Depois, o levou até o queixo de Nova, empurrando-o gentilmente para cima, para que ela pudesse encará-lo. — Vá e convide seus amigos. A cidade inteira, se precisar. Vamos mostrar que a Sparrow Academy sempre estará de braços abertos para eles.

E, pela segunda vez, Nova prendeu a respiração, desejando desaparecer.