Quando tinha doze anos, Lila foi ensinada a não encarar as pessoas. O rosto, principalmente, devia ser evitado a todo custo, e ela já havia presenciado longos e autoritários sermões sobre como trocas de olhares prolongadas podiam ser perigosas. Ainda criança, ela imaginou quais temores místicos poderiam estar por trás de tais avisos. Afinal, os olhos eram a janela da alma. Talvez sua mãe só estivesse tentando proteger a sua.

Um ano depois, com aparelho nos dentes e um talento nato para descarregar e recarregar uma semiautomática em questão de segundos, só então as orientações que recebera da Gestora passaram a ter algum significado. Quando Lila tinha o corpo da primeira pessoa que havia matado caído aos seus pés e tentava se convencer de que aquilo que molhava as suas bochechas eram gotas de chuva, e não lágrimas. Nunca encare as pessoas, querida, a voz da Gestora a sondava em sua memória. Ou elas farão com que você sinta pena delas.

Espremida no banco daquela lanchonete fajuta, no entanto, tudo o que Lila conseguia fazer era encarar. Olhava e olhava, como uma criança apresentada a um brinquedo cuja funcionalidade era complicada demais para decifrar. Ela não sabia dizer exatamente o que fazia a tarefa de desviar os olhos daquela mulher sentada em sua frente ser tão difícil. Se eram aqueles óculos, chamativos e grandes demais para o seu rosto, ou o tique que a fazia coçar a cabeça de tempo em tempo, como se estivesse tendo uma ideia ou tentando tomar uma decisão. Talvez fosse o sotaque arrastado com que ela resmungava para si mesma sobre a demora do atendimento ou... aquilo era um gato?

Lila olhou para o animal sentado em uma posição quase humana, apoiado nas patas traseiras enquanto as dianteiras descansavam sobre a mesa, a encarando com um par de olhos amarelos assustadoramente expressivos. O grande problema, porém, era que ela sequer estava surpresa. Por alguma razão, Lila vinha se mantendo indiferente a tudo de incomum que se apresentava á ela naquela atmosfera impregnada pelo cheiro de fritura e tempero, envolvendo-se cada vez mais num ceticismo embriagante, uma hipnose da qual tinha total controle. Por um instante, Lila se preocupou. Ela só lembrava de se sentir assim em seus sonhos.

Então, tentou juntar as informações que tinha mais uma vez. Ela não estava mais em 1963, isto era óbvio. Também tinha certeza de que não havia viajado o suficiente no tempo para que aquele tipo específico de tatuagem em formato de guarda-chuva pudesse existir no pulso de alguém. Graças a última conversa que ela e Diego haviam tido, e a verdade sobre o dia do seu nascimento lhe foi revelada, Lila podia afirmar que faltavam alguns anos para que aquilo se tornasse possível. E era naquele ponto que toda a sua linha de raciocínio se atrapalhava e era refutada por detalhes antes não notados, alternativas soltas que a lançavam em um labirinto no qual a única certeza que ela conseguia ter, era de que estava presa nele.

Uma garçonete se aproximou da mesa com um bloquinho e uma caneta equilibrada entre os dedos. Além dos itens que tinha em mãos, também carregava consigo uma carranca típica de qualquer funcionário que trabalhava demais em troca de um salário miserável, cabelos louros sem muito o que oferecer e - talvez fosse pelas entradas profundas que se abriam debaixo de seus olhos ou pela fantasia espacial exagerada demais para a sua idade - um desconforto contagiante.

— Senhora, animais não são permitidos no local — Rebecca - Lila pôde ler o nome no crachá em forma de disco voador - apontou para uma placa presa na parede atrás do balcão, e Johnny deixou seus óculos deslizarem um pouquinho pelo nariz para observá-la.

Ela empinou o rosto e o acessório retornou para sua posição original enquanto se reacomodava no assento e voltava a ler o cardápio.

— Que gato?

Se Rebecca já andava tendo suspeitas de que o trabalho puxado estava começando a afetar sua sanidade, aquele foi o sinal que precisava para se convencer de que realmente precisava de férias. Não havia nada ao lado de Johnny além de um estofado acinzentado, particularmente gasto e - o que deixava os olhos de Rebecca ainda mais arregalados - vazio.

Ao notar, Lila se espantou tanto quanto a garçonete. Ela olhou ao redor discretamente, conferiu as janelas e se certificou de que não havia nada de suspeito encostando em suas botas debaixo da mesa. Como era possível? Ele estava ali, não estava? Fedorento, amedrontador... Lila sabia que saltos temporais podiam ser acompanhados por alguns sintomas como fadiga e coceira, mas ela não se lembrava se alucinações também estavam inclusas.

— Certo, já me decidi — Johnny colocou o cardápio na mesa. Não era como se ele fosse realmente útil. Ela seria capaz de recitar todos aqueles pratos por ordem alfabética, numérica, e até mesmo por porcentagem calórica caso fosse preciso. Mas Johnny sabia que entre perder seu tempo analisando fotos de porções de frango frito e dar ouvidos ao mal entendido que a imaginação fértil de Rebecca havia provocado, a primeira opção tinha muito mais eficácia em mantê-la longe de problemas do que a segunda. — Vou querer um copo de leite puro e um prato só com carne grelhada, mas quero ela em tiras. Em tiras, entendeu?

Rebecca parou de anotar e lançou um olhar desconfiado para Johnny.

— Tenho dentes sensíveis — Ela sorriu, um gesto mecânico que não se espalhou pelo rosto.

— E quanto a você, querida? — A garçonete virou-se para Lila, a pergunta lhe puxando de volta à realidade e a obrigando a se orientar, balançando a cabeça negativamente enquanto abria a boca para responder e...

— Oh, não. Ela está bem assim.

E era interrompida por Johnny.

Rebecca voltou a encará-la. Estava claro que os modos daquela cliente lhe desagradavam, mas ela preferia guardar tais queixas para si mesma caso ainda quisesse ganhar alguns trocados. Trocados que Johnny faria questão de entregá-la, como em todas as outras vezes em que as duas haviam se encontrado naquela mesa e se alfinetado por algum motivo idiota até seguirem com os seus caminhos. Johnny não confessaria, mas sentia-se um pouco melhor com os seus pecados toda vez que tinha a oportunidade de assistir aquela garçonete sorrir de emoção ao contar simples punhados de moedas. Mas enquanto o pedido era anotado, e Johnny permanecia sendo apenas mais uma na dezena de esquisitões que seria atendida naquele dia, Rebecca parecia bem confortável com a sua tarefa de crucificá-la com os olhos.

— Eu estou bem — Lila disse, atraindo a atenção da garçonete, e a afirmação foi a deixa que Rebecca precisava para dar fim a sua postura de funcionária prestativa e se afastar, rápido o bastante para que nem mesmo o tímido agradecimento de Johnny chegasse aos seus ouvidos.

— Não leve para o lado pessoal — Johnny observou os passos da garçonete até perdê-la de vista atrás da porta articulada que dava acesso à cozinha. — Mas sei como viagens no tempo podem deixar o estômago sensível — Ela olhou para frente e um sorriso idiota invadiu seu rosto quando Lila se movimentou discretamente no banco, suas pernas se cruzando de uma maneira protetora ao redor da maleta que Johnny havia deliberadamente ignorado até então. — Vai me dizer que estava só passeando pela cidade?

Lila estreitou os olhos para a pergunta. Existia algo de familiar em toda aquela petulância e cinismo que a divertiam em certo ponto, mas seus instintos continuavam gritando em sinal de alerta, um aviso que circulava por sua mente desde que havia deixado aquele celeiro e parado no meio daquela avenida. Ela não sabia onde estava ou - o mais importante - com quem estava. Lila tinha certeza de que mesmo se não tivesse todos aqueles anos de treinamento e um poder excepcionalmente útil ao seu favor, ela ainda assim teria certa vantagem sobre aquela criatura letárgica, que parecia muito mais interessada em sentir o peso dos saleiros do que em atacá-la. Por outro lado, tal fragilidade não anulava o fato de que aquela mulher carregava o mesmo símbolo que o assassino dos seus pais também carregava. Por isso, Lila tratou de aproximar suas mãos um pouco mais dos talheres posicionados em seu lado da mesa. Uma faca sem ponta não lhe era muito atrativa, mas ela não se importaria de usar o garfo caso precisasse.

— Como veio parar aqui? — Johnny insistiu mais uma vez.

— Peguei um trem na cidade vizinha.

— Para Roswell? — Johnny soltou uma risadinha incrédula, pois a ideia de uma visita proposital àquele lugar conseguia ser tão hilária quanto absurda.

Na cabeça de Lila, por outro lado, as coisas finalmente começavam a ganhar algum sentido.

Roswell. Então era para lá que aquela estúpida maleta havia a enviado. Lila se lembrava de ter se deparado com o nome da cidade algumas vezes, quando registros ocasionais iam parar nas mãos da Gestora e acabavam sendo esquecidos despretensiosamente ao lado de um copo de whisky. Ao menos agora, a decoração alienígena do lugar tinha alguma explicação além do óbvio espírito interiorano caricato.

Johnny se inclinou um pouco sobre a mesa e respirou profundamente. Seus olhos passeavam pelo rosto de Lila com o mesmo interesse que os outros clientes encaravam seus hambúrgueres e batatas-fritas, e ela fez questão de apoiar o queixo sobre uma mão para observá-la melhor assim que teve a certeza de que a sua companhia estava começando a se incomodar.

— Me pergunto como você chegou até aqui...

— Eu já disse. Peguei um trem.

— Então quer que eu acredite que se eu der uma olhadinha na sua maleta, vou encontrar meias, e não uma viagem de graça direto para o Antigo Egito ou algo assim?

Os dedos de Lila se enrolaram pelo corpo do garfo.

— Eu não quero problemas — Ela disse, sua voz tomando um tom de advertência.

— Bom, se não queria problemas, não teria trago essa merda pra cá — Johnny deu um pequeno chute no objeto protegido pelos pés de Lila.

— Não faça isso! — Ela abandonou o talher para esticar uma mão numa tentativa ineficaz de aumentar a distância que as separavam. Não era o bastante para manter a maleta em segurança, mas tudo era válido quando se queria evitar uma viagem acidental para outra época. De novo.

Lila precisou se conformar. Ela não esperava que seu estado de apreensão causasse algum efeito na mulher também acomodada naquela mesa. Na verdade, aquilo só parecia diverti-la ainda mais, seu rosto mantendo uma expressão satisfeita de quem estava recebendo exatamente o que havia pedido, quando sequer havia dito uma palavra em voz alta. Seus lábios permaneciam travessos, apertados em um sorriso como se estivessem à espera de uma piada melhor para que finalmente pudessem gargalhar. Sorrir. Ela fazia muito isso, Lila percebera. Até arriscaria descrevê-la como o tipo de pessoa com alegria quase epidêmica, em que os lábios se abriam e te incentivavam a acompanhá-los. A diferença era que, no caso dela, eles pareciam te obrigar.

— Está vendo? Não ficaria desse jeito se fossem só meias — Ela se divertiu, os braços se cruzando sobre a blusa de algodão. — Eu sou Johnny, a propósito.

— Lila. Lila Pitts.

— Lila Pitts — Johnny estalou a língua, parecendo degustar o nome. — E de onde você veio, Lila Pitts?

A pergunta fez os ombros de Lila caírem. Se estivesse em uma missão importante, ela não se importaria em continuar seguindo com estratégias de persuasão para o bem de sua segurança, mas era difícil manter o calculismo quando seu peito pesava uma tonelada, e estava esperando para sentir dores de cabeça quando sobrasse algum espaço dentro dela além das perguntas que já a preenchiam. Ela sabia, no entanto, que nenhum de seus desconfortos eram verdadeiramente físicos, mas preferia ter um olho arrancado por um gato imaginário do que admitir que o único peso que realmente caía sobre si era o que a Gestora havia colocado em suas mãos quando lhe dissera que se infiltrar naquela clínica psiquiátrica para espionar o número dois da Umbrella Academy seria bom para as duas.

Lila suspirou.

— Dallas — O nome da cidade fez algo se contorcer dentro de si, mas o sentimento foi dispensado antes mesmo que ele pudesse aborrecê-la. — 22 de novembro de 1963, para ser mais exata.

— Ah, não fode! — As palavras escaparam dos lábios de Johnny em um tom não muito bem definido entre o êxtase e a lamentação. De qualquer maneira, havia soado alto o suficiente para que fosse escutado por Rebecca, que sussurrou uma breve prece ao seu Salvador enquanto se aproximava da mesa com uma bandeja nas mãos. Johnny não se preocupou em pedir desculpas, estava acostumada em ver a garçonete repreendendo apenas o que lhe era conveniente, e seus palavrões, sem dúvida alguma, ocupavam o topo da lista.

Lila fechou a boca decididamente quando Rebecca as alcançou e o copo de leite e o prato de carne fatiada foram colocados com cuidado na frente de Johnny. Ela já havia chamado atenção o suficiente para quem estava tentando desaparecer do mapa. Suas roupas - a jaqueta de couro e o conjunto de malha preta - podiam até ser um bônus na hora de se camuflar em missões especiais, mas ela estava sentada diante de uma explosão de cores ambulante e cercada por balões com o formato de cabeças alienígenas, que transformavam qualquer tentativa de discrição em um show à parte para olhares curiosos. A última coisa que Lila precisava naquelas circunstâncias era que mais alguém descobrisse sobre sua visitinha ao dia do assassinato de John F. Kennedy.

— Eu te chamo se precisar de mais alguma... E ela se foi — Johnny franziu os lábios em indignação quando Rebecca rapidamente lhe deu as costas e partiu para atender uma mesa marcada com o número 12.

— Que ano é esse? — Lila perguntou após alguns segundos. Johnny estava arregaçando as mangas e havia suspendido os óculos para apoiá-los no topo da cabeça. Seu rosto, Lila percebera, não tinha tanta cor assim sem eles.

Johnny mordeu um dos cantos de sua bochecha, pensando.

— Eu diria que 1968, mas não tenho certeza — Falou e depois aproximou o rosto do prato por um segundo, o vapor exalado pela carne recém grelhada serpenteando em frente ao nariz. Quando apanhou os talheres, Lila a encarava com um rosto retorcido e confuso.

— Como assim não tem certeza?

— Bem, eu sei que esse é o ano de 1968, mas não sei dizer exatamente em que ano eu estou. Ou deveria estar - Johnny enfiou o garfo num pedaço de bife e se esforçou para cortá-lo. — Enfim, faz algum tempo que estou nesse aqui e todos os outros ficaram confusos desde então — Ela deslizou uma fatia de carne recém cortada para se juntar às outras no canto da porcelana e bufou para si mesma. — Que parte do "quero ela em tiras" eles não entenderam?

— Isso é possível?

— Bem, até você aparecer e quase arrancar o meu nariz, eu pensava que muitas coisas não eram — Johnny parou de olhar para o prato por um minuto para encará-la com uma expressão sugestiva.

Isso possibilitou que Lila prestasse um pouco mais de atenção em suas feições. Era jovem, assim como ela, e possuía olhos claros e arredondados, de ar infantil, o que talvez explicasse a malícia constante neles. Suas sobrancelhas os acompanhavam a todo o momento, dançando a cada risada, frase ou som que escapavam de sua boca como uma espécie de ponto de exclamação particular. Abaixo do nariz, a pele ainda estava consideravelmente vermelha, bastando olhar com mais atenção para que pequenos pontos de sangue seco fossem notados por ali. Se ela se importava com a própria aparência, Lila não sabia dizer. Sem dúvida alguma, era uma mulher extravagante, perdida entre todas aquelas texturas e estampas, mas que ainda assim conseguia apresentar uma harmonia que tornava sua presença confortável aos olhos. Talvez até demais.

Lila lembrou de desviá-los quando o prato de carne e o copo de leite foram arrastados para o lado. O barulho provocado pela louça ao arranhar superfície de madeira fez um arrepio escalar as suas costas, mas a sensação não foi nada comparada com a que atingiu seu corpo inteiro quando seus olhos voltaram a enxergar o gato.

Ele miou e Lila não retribuiu o cumprimento.

— De novo! Você fez de novo! — Ela anunciou, eufórica como se tivesse finalizado uma cartela de bingo, e Johnny sugou a ponta do polegar para se livrar do molho de churrasco que havia esbarrado. — Você tem poderes, é claro! Eu sabia que não estava enlouquecendo — Lila disse, mas a alegação lhe soou um tanto quanto mais pretenciosa do que havia imaginado que soaria.

Se pudesse olhar para si mesma naquele momento, Lila certamente teria dificuldade em afirmar algo positivo sobre sua estabilidade mental. Em poucas horas, ela não só havia participado de uma batalha, como também viajado de um ano ao outro sem que ao menos pudesse fazer uma pausa para respirar e assimilar tudo aquilo. Logo, ela não estava surpresa pelos sinais de exaustão que seu corpo começava a apresentar, além da paranoia e exaustão que haviam sido carregados junto com ele como uma bagagem a mais à tira colo. Lila também podia sentir a franja se tornar cada vez mais pegajosa, agarrando-se em sua testa e a incomodando tanto quanto suas roupas amarrotadas. Por outro lado, ela não podia negar que existia certa satisfação em saber que nada do que estava presenciando se tratava de alguma alucinação causada pela adrenalina. E aquilo era demais para ser controlado.

— O gato desapareceu ou você que parou de enxergá-lo? — Johnny perguntou, tranquilamente. Havia voltado a ler o cardápio, os olhos indo de um lado para o outro como se aquela chapa de plástico fosse tão interessante quanto uma revista numa sala de espera. — Talvez tenha algum problema de visão. Eu conheci um cara que—

— Desista — Lila a interrompeu. — Eu já vi a tatuagem.

— Consegui ela numa gangue.

— Assim como eu peguei um trem pra essa cidade.

Quando Johnny engoliu a saliva e o barulho de carne sendo mastigada no prato ao lado - estranhamente - parou, Lila soube que havia vencido. Ela guardou para si a vontade de sorrir para celebrar sua vitória, elevando uma sobrancelha e deslizando a língua sobre os dentes ao invés disso. A algumas mesas dali, Rebecca e mais duas garçonetes se reuniam ao redor de um garotinho loiro, que vibrou quando a funcionária mais velha apareceu em seu lado segurando um bolo com velas e morangos vermelhos. A mãe do menino começou a entoar os primeiros versos de Parabéns Pra Você junto com as outras mulheres, e Lila olhou para o movimento a tempo de ver o aniversariante segurar o fôlego e soltá-lo sobre as faíscas acesas. E aquilo foi o suficiente para que todo o seu prazer em desmascarar Johnny fosse assoprado para longe também. Sua descoberta sobre a tatuagem não era menos extraordinária, mas lembrava Lila de que também fazia parte dela. De repente, começou a desejar que outras coisas pudessem ser apagadas além da chama de velas, mas precisou franzir a testa, desapontada, quando o ar escapou de seus pulmões e percebeu que o inevitável ainda permanecia dentro de si. Antes de dizê-lo, no entanto, procurou por um par de olhos que pudesse ajudá-la a digerir a verdade, mas tudo o que encontrou foi olhar cabisbaixo e distraído de alguém que preferia ignorar o que vinha pela frente. Lila se contentou com ele.

— Não sei como, mas acho que eu e você dividimos a mesma data de aniversário — Ela disse, tratando de repetir a frase mais uma vez no interior de sua mente, pois se a ideia de pertencer à uma data já lhe parecia ridícula, saber que poderia compartilhá-la com outros sete - agora, oito - estranhos apenas intensificava os nós em seus neurônios.

E, ao que parecia, Lila não era a única que pensava daquela forma. Johnny permaneceu olhando para baixo, sua atenção presa àquele pedaço de papel com uma necessidade muito mais nítida e determinada do que antes.

— De onde você os conhece? — Ela murmurou, tão silenciosamente que seus lábios mal se moveram, e Lila precisou de um momento para ter certeza de que havia entendido corretamente a pergunta.

— A Umbre—

Um chiado irritante cortou sua frase ao meio.

— É melhor não sair dizendo esse nome por aí — Johnny alertou, finalmente erguendo o rosto para encará-la. Então, espiou por cima dos ombros e regulou seu tom de voz cuidadosamente quando voltou a olhar para Lila. — Vamos, como os conhece?

A insistência em sua voz fez os lábios de Lila se abrirem, mas ela reconsiderou imediatamente antes que a primeira sílaba pudesse escapar por eles. Existiam duas maneiras de responder aquela pergunta. Ela poderia contar uma longa história, iniciada num hospital psiquiátrico ao lado de um homem por quem ela acabara se apaixonando enquanto o usava para ter acesso a outro membro da Academia, o qual - graças à sua boca grande de pré-adolescente de meia idade - acabara destruindo todos os planos de sua mãe adotiva, não dando outra alternativa a ela senão encurralá-lo numa luta em que, além de sangue, revelações tão doloridas quanto também foram derramadas. Ou ela poderia ser estúpida.

— Fui enviada para 1963 para garantir a segurança de um deles. As coisas começaram a sair do controle e eu pensei que seria melhor escapar antes que fosse tarde — Lila forçou uma voz confiante em busca de credibilidade. Não precisava que aquela mulher acreditasse em suas meias-verdades, apenas que ela parasse de fazer perguntas e lhe desse algum tempo para ter certeza aonde estava pisando antes de dar o próximo passo para respondê-las.

Um vinco se formou no espaço entre as sobrancelhas de sua interrogadora, e Lila se encostou no banco o máximo que pôde quando Johnny decidiu se inclinar para analisá-la nos olhos, um de cada vez, enquanto mantinha-se em um profundo e analítico silêncio - algo que, curiosamente, conseguia ser mil vezes mais perturbador. Então, Lila decidiu acabar com ele.

— Como você pode estar aqui? Diego não tinha certeza se existiam mais de nós — Lila limpou a garganta, corrigindo-se rapidamente. — Deles.

— Diego? — O nome soou estranho para Johnny e todo o seu corpo pareceu se encolher institivamente em aversão a ele. Quando enfim se deu conta do motivo, porém, sentiu como se seus olhos estivessem prestes a saltar das órbitas. — Você — Ela engasgou uma risada incrédula que representava tudo, menos humor. — Está dizendo que interagiu com um deles?

— Depende do que você chama de interação — Um sorriso involuntário surgiu no canto da boca de Lila quando seus pensamentos voaram para longe, para o quarto do apartamento de Elliot, mas ela o impediu antes que ele terminasse de escorregar pelos seus lábios. Ao invés disso, ela se concentrou nos movimentos de Johnny, que repetia para si mesma uma sequência de Porra! Porra! Porra! enquanto se esticava pela mesa para alcançar o saleiro e o suporte de guardanapos.

Do seu lado, o gato também abandonara o prato parcialmente vazio para assistir, e Lila procurou ignorá-lo quando suas pupilas afiladas caíram sobre si como se perguntassem a ela o que estava acontecendo.

Johnny deslizou um braço pela mesa, afastando cardápios e decorações inúteis para ganhar mais espaço. Então, posicionou o saleiro de frente para o suporte de guardanapos, de onde retirou algumas folhas para fazer uma bolinha de papel, por fim, a colocando entre os dois objetos numa posição um pouco mais afastada para esquerda.

— Muito bem, de onde esse seu Diego é? — Elas se encararam, e Lila hesitou. Uma parte, por temer que a revelação pudesse colocar a vida de Diego em perigo, e, por mais que tivesse desejado a cabeça dele em uma bandeja de prata por alguns instantes, odiaria que isso se concretizasse por outras mãos além das suas. Já outra, por estar particularmente irritada com o fato de "seu Diego" ter lhe incomodado menos do que deveria. Ela olhou para a distância entre o saleiro e a bolinha de papel e mordiscou o lábio, decidindo o que fazer.

— Só me dê o ano, está bem? — Johnny incentivou, vestindo sua impaciência com o tom mais amigável que havia conseguido encontrar. — Eu sei que nenhum de vocês estavam rodando pela década de sessenta só em busca de um casinho à moda antiga.

— 2019 — Lila praticamente empurrou a informação para fora e tentou não ligar quando sua consciência enviou uma leve onda de arrependimento para o seu peito.

Johnny suspirou um "okay" quase inaudível e olhou para as peças em cima da mesa com a mesma concentração de quem estava prestes a iniciar uma partida de xadrez. Atenta, Lila inclinou o corpo ligeiramente para se aproximar, aos poucos se contagiando por uma curiosidade que até então não era capaz de compreender.

— Aqui é 1963, onde você e Diego estavam — Johnny depositou batidinhas na tampa do saleiro com o indicador — E esse é 2019, o ano do presente original dele. O ano que Diego pertencia antes de viajar para o passado — Sua mão direita levantou o suporte de guardanapos e o sacudiu. Depois, o colocou na mesa e apontou para a bolinha de papel. — E isso aqui é a realidade em que você está agora. O ano de 1968.

— Por que ele está desalinhado com os outros dois?

Johnny pareceu surpresa, e Lila não conseguiu identificar se seu espanto era motivado pela pergunta ou pela desinformação presente nela. Afinal, era comum que aquele tipo de maleta fosse acompanhado por algum idiota metido a especialista, com a prepotência de quem acreditava ter sido o responsável pela descoberta do fogo e uma antipatia natural. Normalmente, Lila conseguia ser tudo aquilo, mas para Johnny, ela não passava de uma pequena criatura de olhos elétricos, maquiagem borrada e uma testa - a qual a própria havia experimentado - absurdamente dura.

— A maleta não te fez viajar no tempo, Lila. Ela fez você atravessar por ele.

De repente, os papéis se inverteram, e era Johnny quem agora procurava por algum tipo de reação no rosto de sua ouvinte. Ela observou, tão apreensiva quanto antes, os olhos da morena vacilarem enquanto seus músculos faciais ficavam indecisos entre o ceticismo e a confusão. Um miado preguiçoso ecoou banco acima, mas acabara sendo prontamente repreendido por Johnny, que sacudiu uma mão para enxotar o barulho. Ela pressionou os lábios e hesitou uma ou duas vezes antes de fazer com que Lila se afastasse de suas conspirações interiores.

— Você esteve perto de um campo de energia ou algo parecido? Eles costumam interferir no funcionamento dessas coisas, deve ter sido isso que acabou te trazendo pra cá.

Vanya. O nome foi puxado dentre o turbilhão de pensamentos de Lila e seus olhos se iluminaram imediatamente com a descoberta. Satélites artificiais, raios e antenas sempre foram considerados grandes empecilhos por agentes da Comissão. Ela tinha perdido as contas de quantas queixas chegavam ao gabinete da Gestora por culpa de desvios ou atrasos nas rotas de missões. Seu caso, no entanto, não se tratava de um pequeno defeito causado por uma parabólica. Ela não só havia exposto uma centena de agentes aos poderes da Número Sete, como também copiado e os potencializado. Se a maleta que roubara havia apresentado anomalias, Lila estava aliviada por não ter sido transformado em uma.

— Estamos em uma linha temporal paralela?

— Dimensão. Ou como gosto de chamar, a máquina de doces de Reginald Hargreeves — Johnny achou graça, deixando uma risada amarga sair da garganta enquanto gesticulava desgostosamente para o redor.

Lila também riu. Genuinamente, desta vez. Mas o senso de humor sarcástico de Johnny não tinha nada a ver com o aperto doloroso em seu estômago ou com a agressividade em que suas bochechas se esticavam, tanto quanto pudessem rasgar seu rosto ao meio. Ela ria porque um cenário no qual se era possível ver um gato desaparecer e reaparecer, cercado por garçonetes em fantasias vintages de tripulação alienígena e ao lado de uma hippie quase especialista na ferramenta de serviço primordial da Comissão, não poderia ter sido arquitetado por outra pessoa no mundo senão pelo patriarca dos Hargreeves. O absurdo, Lila começou a perceber com a convivência que tivera com Diego, era algo tão orgânico naquela família quanto o Dia de Ação de Graças era para as outras. Ela também se sentia envergonhada. Conseguia visualizar - uma lembrança tão clara e irritantemente fresca - a Gestora lhe lançando um olhar ácido e caçoador por seu deslize, por ter se deixado levar por suas fraquezas e não percebido o que havia estado o tempo todo debaixo de seu nariz. No mais, sorridente por saber que dentre as variadas habilidades que sua filha possuía, não estar à altura continuava sendo a mais evidente delas.

— Desculpe, mas o que você disse? — Lila apertou os olhos, voltando para o presente.

— Uma máquina de doces.

— Não isso — Ela sacudiu a cabeça. — Você mencionou Reginald.

— Oh sim, ele criou esse lugar — Johnny falou com naturalidade, como se estivesse lendo as informações de uma caixa de leite. — Foi com a mesma tecnologia destas belezinhas de couro — Ela apontou na direção da maleta com o queixo. — Elas também deram a Reginald a oportunidade de testar quais crianças poderiam beneficiá-lo e voltar no tempo para escolher outras caso alguma delas não fosse de seu agrado. Ele fez isso até encontrar a equipe perfeita. A que o seu Diego faz parte.

— Está me dizendo que realmente existiam mais bebês? — Lila tentou entender, sentindo suas mãos gelarem antes mesmo que a confirmação fosse feita.

Johnny se mexeu para cruzar as pernas embaixo da mesa enquanto a lançava um olhar que dizia "olhe só para nós duas", como se a resposta fosse clara.

Existem — Johnny corrigiu. — Apesar que "bebês" é um termo um tanto quanto inapropriado para descrevê-los agora. De qualquer forma, todos nós fomos testados e falhamos, então acabamos sendo... — Suas sobrancelhas se juntaram, tentando se lembrar — Qual era o termo que aquele velho gostava de usar mesmo? Ah! — Então, estalou os dedos — Deletados! Alguns espalhados entre décadas, outros com memórias apagadas e outros, como é o meu caso, ironicamente castigados.

Lila piscou algumas vezes. Àquela altura, seu cérebro havia feito suas pálpebras tomarem um ritmo que ela já não tinha mais autonomia para controlar. Johnny agora a encarava com uma expectativa escancarada, o pescoço inclinado de maneira singela para frente para garantir que olhos e ouvidos estivessem bem posicionados e atentos a qualquer tipo de comentário que Lila pudesse fazer a respeito de tais informações. Lila, por sua vez, não tinha certeza se conseguiria realizar tal feito satisfatoriamente, por isso, preferiu sacudir a cabeça e se esforçar para esboçar a sua mais pura expressão de entendimento, o que fez Johnny revirar olhos.

Frustrada, Johnny deslizou um pouquinho para o lado e apoiou o braço no encosto do banco para ampliar o campo de visão de Lila. Mas a invasão repentina daquele corpo humano no espaço do felino, no entanto, o fez protestar. Ela se desculpou, lhe prometendo que aquilo seria rápido, e virou a cabeça para olhar para trás.

— Está vendo aquele homem sentado ali? — Johnny empinou o nariz, apontando-o discretamente para um senhor idoso num paletó marrom. Quando Lila assentiu, Johnny continuou — Ele se chama Eric, é um bombeiro aposentado, um dos últimos da brigada de incêndio que participou. Bem, ele está prestes a se levantar e notar que esqueceu a carteira em casa. Madeline, uma das garçonetes, vai deixá-lo partir, pensando que é um problema de idade, mas não é. E se você se olhar pela janela, poderá ver a cara de satisfação dele pelo sucesso de mais um golpe aplicado.

Então, como se estivesse atento a conversa durante todo o tempo, o ancião se levantou, trêmulo e indefeso, enquanto era amparado por uma garçonete ruiva, a qual Lila assimilou imediatamente se tratar de Madeline. Depois de vasculhar o bolso do paletó algumas vezes, Eric foi confortado pelo olhar compreensivo da mulher, que com a troca de poucas palavras, deixou que ele partisse em direção a porta, envergonhado. Lila concertou sua postura e esticou o pescoço para olhar através do vidro a tempo de ver o idoso endireitar as costas com uma disposição antes não apresentada, um sorriso muquirana invadindo seu rosto repuxado enquanto acenava com a cabeça para outra mulher tão jovem quanto Madeline.

— Sabe a confusão com os policiais que tivemos agora pouco? Eu estive presente em 98 delas — Johnny disse, fazendo Lila virar a cabeça para encará-la, um pouco confusa. — Olhe ali — Ela encostou um dedo no vidro, apontando para um ponto mais adianta na rua. — Se não me engano, a viatura de Malore passará por aquele cruzamento nesse exato momento à minha procura.

E com a mesma pontualidade que o golpe daquele octogenário acontecera, sirenes anunciaram a aproximação de um carro da polícia. Luzes vermelhas e azuis cortaram o fluxo de veículos, abrindo caminho para que Malore pudesse vasculhar o centro da cidade mais rápido do que as pernas de Johnny conseguiriam escapar caso ela estivesse lá fora, em mais uma de suas fugas habituais. Ela se afastou da janela e voltou a se sentar normalmente, as costas buscando apoio no estofamento para que pudesse relaxar com o corpo. Seu rosto, porém, nunca estivera tão tensionado.

— E — Johnny suspirou, coçando a cabeça — Sabe a garçonete que nos atendeu? Hoje, às quatro horas, dois homens bem arrumados, em trajes oficiais e rostos de comedores de merda, entrarão por aquela porta, olharão no fundo dos olhos dela e dirão que seu filho foi abatido na Guerra. Eu já assisti a Rebecca receber essa notícia mais do que conseguiria contar nos dedos das mãos, é por isso que não venho aqui tanto quanto costumava.

— Reginald prendeu você em um looping temporal — A afirmação escapara dos lábios de Lila num murmúrio, muito antes que ela terminasse de digerir a história.

Durante a infância, ela havia lido sobre o assunto por algum tempo até sua mãe a convencer de que técnicas militares de como neutralizar o inimigo eram um tópico muito mais interessante para a hora de dormir. De qualquer forma, loopings temporais faziam parte de um breve capítulo no treinamento da Comissão e eram encarados como uma erva daninha por muitos agentes. Terrivelmente comuns e igualmente irritantes, mas inofensivos. Meros sintomas acidentais de viagens feitas entre épocas com grandes distâncias durante um curto período, que nasciam e se destruíam por conta própria após algumas horas. Mas aquilo era outra história, pois a precisão com que Johnny narrara os acontecimentos dos últimos minutos deixava claro que aquele lugar poderia ser muitas coisas, menos um acidente.

— Minha sentença foi essa, acordar em 7 de março de 1968 todos os dias pelo resto da minha vida — Johnny encolheu os ombros e seus dedos brincaram com a bolinha de papel. — Eu fui uma criança difícil, mas não era a pior delas. Odiava aqueles babaquinhas de uniforme e sei que Reginald os odiava também, por não conseguirem ser uma equipe. Erámos extraordinários, mas quando nos juntávamos tudo era caos - Ela se divertiu com a lembrança. — Por isso, quando fizemos oito anos, Reginald decidiu que era hora de nos ensinar uma lição. Do seu jeitinho, é claro. Mas ele era ganancioso demais para não encontrar uma forma de ainda nos manter sob o seu controle. Você não ganha crianças especiais e as joga em qualquer lugar sem mais, nem menos. Éramos tesouros defeituosos, mas ainda assim, tesouros. Ele precisava garantir que estivéssemos ali caso precisasse de nós algum dia. Então, enquanto o seu Diego e os queridos irmãos dele cresciam cercados por fama, conforto e liberdade, Reginald nos mantinha isolados como troféus trancados em um armário.

— Mas se você está presa aqui, como pode saber o que aconteceu com a Umbrella Academy depois de todos esses anos?

— Quando você esconde algo por muito tempo, uma hora ou outra irá acabar se esquecendo daquilo. Com Reginald foi a mesma coisa. Ele estava muito ocupado mantendo seus escolhidos na linha para ficar de olho no restante de nós, e isso permitiu que alguns usassem as habilidades que possuíam para burlarem seus castigos, se organizando, criando alianças uns com os outros. Foi uma questão de tempo até que as notícias começassem a chegar naqueles que eram mais isolados, como eu. E quando Reginald morreu, as coisas só melhoraram.

— Mas você conseguiu ser aceita — O olhar de Lila recaiu sobre a tatuagem no pulso de Johnny, e ela o ergueu para deixá-lo à mostra.

— Isso? Foi uma piadinha de mal gosto que os outros fizeram em mim há alguns anos. Acharam que seria engraçado — Ela acariciou o desenho, pensativa. — Duas coisas que não suportavam em um só lugar.

Na pele pálida de Johnny, Lila notou que a figura desenhada era consideravelmente mais desbotada do que a de Diego. Ela ergueu o rosto e a encarou com pesar. Não era preciso muito esforço para perceber que aquela arte não havia sido feita nas mesmas condições que as dos Hargreeves. Quando percebeu sua comoção, Johnny balançou a cabeça como se aquilo já não lhe afetasse mais.

— Eu te disse que eles eram uns babaquinhas de uniforme — Ela sorriu de forma maliciosa, e Lila não pôde deixar de rir, pois a descrição também poderia ser aplicada à muitas pessoas em sua vida.

Ela se permitiu se deixar levar pela dinâmica que acontecia diante sua presença - com Johnny sendo recebida por um rugido irritado do gato depois de se arriscar a tomar um gole do copo de leite - até que a maleta escondida entre suas pernas voltou a lhe lembrar como havia parado ali. Agora mais calma, Lila conseguia raciocinar claro o suficiente para se convencer de que sua fuga talvez não tivesse sido a melhor das últimas escolhas que tinha feito. Não sem um plano. Mas ela também não negava que havia certo mérito em ir para uma dimensão paralela quando o seu desejo era se afastar da morte de sua mãe, do temperamento de Diego e de todas as mentiras do Número Cinco. Acidentalmente ou não, nisso ela tinha certeza de que havia mandado muito bem.

Johnny acabou desistindo de disputar a bebida com o felino, olhando ao redor à procura de Rebecca para que pudesse pedir uma exclusivamente sua. O olhar da garçonete cruzou-se com o dela, mas logo foi lançado intencionalmente para o outro lado do restaurante, fazendo Johnny grunhir com a boca fechada, e Lila podia jurar que aquela era sua estratégia para não entoar um palavrão a plenos pulmões pelo restaurante.

Johnny não explodiu, mas algo a alguns quilômetros dali, sim.

Lila não teve certeza do que escutara. A princípio, o barulho pareceu distante, denso como o vôo de um avião muito próximo ao chão. Depois, transformou-se em algo mais concreto, um som alto e ruidoso, semelhante ao de uma avalanche, que se tornou ainda mais apavorador quando gritos de pessoas desesperadas se juntaram a ele. A luz do restaurante começou a piscar, lustres temáticos balançando de um lado para o outro enquanto Johnny se apressava para segurar o copo de leite. Ela não se preocupou em conter a língua dessa vez, no entanto.

— Johnny, o que tá acontecendo? — Lila perguntou em estado de alerta, olhando ao redor.

Clientes abandonavam seus lugares para olharem pelas janelas, aflitos, em busca de algum sinal de perigo, enquanto outros partiam em direção à saída, rumo ao fluxo de pedestres que corriam nas mais variadas direções pelas ruas e calçadas. Uma nova explosão foi escutada, agora, vinda de uma loja de televisores em frente ao restaurante. Segundos depois, um pequeno grupo de pessoas saiu pela porta. Suas roupas estavam ensanguentadas, cobertas por fuligem e sujeira, e ferimentos podiam ser notados em diversos pontos de seus corpos. Todos completamente desorientados, em choque.

Mas quando o céu escureceu, tomado por nuvens corpulentas e amedrontadoras, eles souberam que era hora de se mover e entrar em pânico. Foi então que Lila se perguntou por que diabos nenhuma das duas estavam os acompanhando.

— Johnny! — Ela a chamou, implorando por respostas.

Johnny, por sua vez, estava se segurando na mesa, o corpo tenso para se manter no lugar e a sobrancelhas franzidas, mas não existia nenhum sinal de medo em seus olhos. Ela parecia zangada, tão frustrada quanto alguém que acabara de flagrar uma mosca em sua sopa após dias sem se alimentar.

— Reginald era um velho perfeccionista — Johnny falou alto, se esforçando para que sua voz ultrapassasse o barulho de escombros e choros horrorizados.

— Deixe para implicar com ele depois — Lila se encolheu quando dois carros do lado de fora colidiram um no outro, obrigando motoristas a abandonarem seus veículos para fugirem do congestionamento a pé. Dentro do restaurante, o tremor causado nas paredes começava a derrubar copos e garrafas no chão.

— Não, estou dizendo que ele odiava falhas. Quando elas apareciam em seu caminho, em seus projetos, Reginald achava fundamental que fossem eliminadas — A fala de Johnny foi cortada por um estrondo que fez os vidros das janelas racharem. Ela sacudiu a cabeça e fechou um dos olhos para apertar o ouvido esquerdo com a mão numa tentativa de fazê-lo parar de chiar. — Você — Johnny tossiu, uma decepção visível fazendo sua voz falhar enquanto seu rosto se enchia de culpa. — Você é uma falha, Lila.

Por um instante, Lila travou. Ela parou de se concentrar em sua volta para levantar uma sobrancelha para si mesma, e Johnny não soube dizer se o cheiro de fumaça no ar pertencia ao caos das ruas ou ao que acontecia dentro do cérebro dela. Um segundo depois, as duas voltaram a se entreolhar, mas antes mesmo que Johnny pudesse dizer algo, Lila retirou a maleta debaixo da mesa e se deslizou pelo banco.

— Espera, aonde você está indo? Lila? — Johnny girou o corpo, seus olhos acompanhando a mulher enquanto ela passava pela mesa e começava a marchar pelo corredor. — Lila! — Johnny gritou, mas sua voz foi envolvida por uma sinfonia ameaçadora de cacos de vidro que voaram pelo ar quando as janelas enfim se quebraram. Ela tentou chamá-la mais uma vez, mas Lila já havia cruzado a porta. — Merda!

Johnny olhou para o lado e não ficou surpresa quando tudo o que encontrou foi o olhar insistente de um gato com pelos arrepiados. Quando ele escalou o assento e se lançou no mesmo caminho de Lila, Johnny bufou, incrédula com a traição. Ela se levantou, pronta para segui-los, mas não sem antes recuar e apanhar o saleiro, enfiando-o despretensiosamente no bolso de seu colete.

Assim que saiu do estabelecimento, Johnny franziu o nariz. Fumaça e o cheiro de combustível derramado eram arrastados pelo vento, que soprava cada vez mais forte, fazendo os postes de luz que ainda não haviam sido derrubados se balançarem numa dança macabra. Ela abaixou os óculos e garantiu que eles estivessem bem rentes ao seu nariz enquanto se desviava das pessoas para localizar Lila. Logo que a enxergou, se afastando com a maleta nas mãos, Johnny apertou o passo e contornou os carros paralisados no meio da rua para diminuir suas distâncias. Enquanto tentava alcançá-la, o fato de ambas terem nascido no mesmo dia, na mesma hora, se tornava cada vez mais óbvio para Johnny, pois só um evento sobrenatural como aquele poderia explicar como uma mulher com pernas tão curtas como as de Lila conseguia se mover tão rápido. Mas Johnny precisou frear seus passos quando um homem inesperadamente entrou em seu caminho. Quando percebeu que se tratava de Ethan, o pintor que ocasionalmente tentava acertá-la com uma lata de tinta na cabeça, seus lábios se enrugaram. E, puta merda, ela tinha que admitir que daquela vez ele estava péssimo.

— Por favor, me ajude. Meus olhos estão feridos — Ele gemeu com uma das mãos apoiadas no lado esquerdo do rosto numa tentativa de conter o sangramento do lugar que deveria abrigar um olho.

— Pois é, deu pra notar — Johnny respondeu, levemente enojada, a situação do homem não lhe comovendo tanto quanto ele esperava. Ela decidiu deixá-lo a sós com seus próprios problemas e voltou a andar com passos firmes e rápidos, tomando cuidado para não ser arrastada pela multidão que ziguezagueava ao seu redor. Quando Louis voltou a bloquear seu caminho, porém, ela quase mordeu a língua.

— Eu não consigo enxergar nada! — O pintou chorou, agarrando a manga da blusa de Johnny como se ela pudesse curá-lo, mas tudo o que sua ação provocou foi um calafrio irritado seguido por um puxão violento que quase arrancou o seu olho bom.

— Toda geração tem seus males — Johnny disse por fim, terminando de se esquivar enquanto aumentava sua velocidade para abandoná-lo. — Lila! Lila, espera!

Quando finalmente a alcançou, a morena não se preocupou em erguer os olhos para encará-la. Ela e o gato haviam parado em um Opala clássico, estacionado passivamente junto à calçada, e Lila agora tentava arrombar o capô dele, arfando com pressa.

— Preciso sair daqui. Tenho que encontrar o Diego — O compartimento do carro se abriu e ela comemorou com um gritinho.

— Pensei que quisesse ficar longe dele — Johnny lembrou, tentando acompanhar o ritmo das mãos de Lila passarem pelas peças do automóvel, indo de um lado para o outro em busca de algo.

— As coisas mudaram — Lila afundou o braço entre duas delas. — Ele precisa saber sobre os outros, sobre o que Reginald fez — E, então, retornou com um fio grosso na mão. Ela o puxou com força para arrancá-lo, e pequenas faíscas voaram pelo ar quando conseguiu. — E você vem comigo.

— O que? — Johnny recuou como se uma arma tivesse sido apontada para si junto com a proposta. — Não, eu não posso.

Então, mais um fio foi puxado para fora. De repente, Johnny percebera quais eram as intenções que cercavam aquele arrombamento, e a ideia foi o suficiente para tornar sua respiração ainda mais acerelada. Foi a energia que tinha levado Lila até ela, logo, se encontrasse uma nova fonte, talvez conseguisse escapar da mesma maneira. Johnny engoliu seco com a possibilidade.

— Se ficar, você vai morrer.

— Não é como se fosse a primeira vez. É só uma autodestruiçãozinha, estarei bem amanhã.

— Não tem amanhã, Johnny — Lila fez questão de lembrá-la sobre sua situação, segurando a maleta com mais firmeza com um braço enquanto enrolava os fios com o outro, as pontas desencapadas sendo deixadas propositalmente para cima. — Não pode viver assim para sempre, como uma prisioneira.

Mas Johnny não pareceu se incomodar, dando de ombros, conformada.

— Talvez eu tenha merecido.

— Você era a porra de uma criança, caramba! — Lila então rosnou, sua voz saindo uma nota mais alta do que o planejado.

As duas se entreolharam, compartilhando um breve silêncio, pois não era preciso que alguém dissesse alguma coisa para saber que o lembrete de Lila possuía um significado muito maior do que uma simples indignação momentânea. Ela podia não ter tido Reginald como pai, não crescido em uma academia problemática ou tido sua identidade substituída por um número, mas Lila também havia brincado com facas quando deveria estar se preocupando com o dever de casa, desperdiçado horas analisando inimigos quando deveria estar caindo de bicicleta, e chorado por ter uma bala alojada na perna quando só queria ter ralado o joelho. E, acima de tudo, havia passado tempo demais tentando encontrar meios para culpar uma garotinha escondida num duto de ventilação quando ela sequer havia desejado existir. Aquele, sem dúvida alguma, era o verdadeiro castigo.

Johnny endireitou os óculos, o vento fazendo algumas mechas de cabelo baterem em suas lentes.

— Eu sinto muito — Ela deu um passo para trás e assistiu o semblante de Lila se encher com uma decepção que fez seu coração encolher.

Ainda contrariada, Lila franziu a testa e segurou os fios com mais força. Ela os espiou por um instante, engolindo seco enquanto torcia profundamente para que aquela ideia a levasse até Diego, de preferência, viva. Quando voltou a olhar para Johnny, se sentiu um pouco melhor quando um desejo de boa sorte fugira dos lábios dela, acompanhado por um sorriso. A comoção pela despedida, no entanto, teve fim assim que o gato atravessou as pernas de Johnny e correu para os seus pés. Apertando os fios entre os dedos, Lila viu Johnny se lançar em sua direção e pôde sentir o toque dela recair sobre seu ombro uma última vez antes que seus corpos fossem invadidos por uma corrente elétrica.

Quando os três desapareceram, Roswell terminou de explodir.