Johnny sentiu as costelas estalarem quando ela tentou se levantar da cama naquela manhã. Também havia algo dolorido em sua cabeça. Um zunido agudo e desconfortável, que a fazia desejar nunca mais abrir os olhos novamente. O gosto amargo em sua língua também não ajudava. Era como se um cadáver tivesse sido colocado ali dentro e terminado de ser engolido durante o sono. Ela se deixou afundar no travesseiro, mais e profundamente, desejando que as bolas de algodão dentro dele pudessem invadir suas orelhas, por fim, o cérebro, e amortecessem os pontos doloridos que latejavam como pequenos tambores em seu organismo.

Ainda por cima, havia a luz. Estava em algum lugar do cômodo, era possível sentir. Para Johnny, era um sinal de que a sua centésima tentativa de manter as janelas daquele maldito trailer fechadas tinha sido tão em vão quanto as noventa e nove primeiras.

O edredom foi puxado para cima da cabeça numa tentativa de bloquear os raios solares que davam às boas vindas àquela terça-feira - ou seria quarta? - quando um conjunto de quatro patas pousaram ao seu lado no colchão. Um miado preguiçoso as acompanhou quando roçaram a superfície do tecido, num pedido para que o ser humano embaixo dele despertasse.

Johnny xingou. Alto. Mas o gato vira-lata não era o verdadeiro alvo de seus insultos. Um ronco em seu estômago e a temperatura particularmente elevada do quarto a fizeram perceber que estavam prestes a alcançar a hora do almoço, e isso era um mal sinal. O meio-dia marcava o único compromisso que trazia algum sentido às semanas de Johnny.

E ela estava atrasada.

De repente, o gato se viu envolvido por um emaranhado de tecidos com texturas as quais, apesar de confortáveis, conseguiam ser particularmente incômodas quando arremessadas em seu focinho. Ele passou a se desvencilhar delas enquanto observava a humana ser engolida pelo guarda-roupa, o desespero pelo atraso sendo a primeira peça colocada sobre seus ombros e se manifestando através de suspiros exaustos pela busca por roupas de verdade.

No ponto de vista do felino, não havia nada de errado com as que ela havia acordado - e que agora descansavam debaixo de suas patas. Afinal, Johnny sempre amanheceria com elas. Mas isso parecia motivá-la ainda mais a centrar sua escolha nas peças mais humilhantes que poderia encontrar dentro daquele cubículo empoeirado. Um miado de desgosto escapou de sua pequena boca assim que a explosão de cores de uma calça foi somada às estampas de uma blusa de linho, por fim, colocadas debaixo de um colete marrom completamente inútil, que ao invés de esconder, parecia acentuar tudo aquilo.

Céus, como ele odiava os anos sessenta.

Logo que foi para a cozinha, Johnny chamou pelo gato, e o barulho de ração sendo colocada numa vasilha fez o coração dele saltar um pouco. Ela estava terminando de posicionar seus óculos no rosto quando o animal voou sobre o alimento. O gosto permanecia velho, insosso e industrial, e Johnny sabia disso, mas havia um traço de humor e melancolia em seu olhar quando o bichano ergueu a cabeça para encará-la. Não era como se ele tivesse alguma escolha.

O espaço oferecido pela pequena cozinha acoplada às paredes fez com que Johnny pudesse encontrar seus cigarros com rapidez, em cima de um dos armários. Ela não perdeu tempo procurando por suas chaves, no entanto. Haviam desaparecido há tempo o suficiente para que a porta não precisasse mais delas.

Quando passou pela sala de jantar improvisada - um sofá típico de lanchonete, com estofado de couro rasgado em uma das pontas, também acoplado à parede junto com uma pequena mesa -, seus pés pararam. Ela refez dois passos, e de frente para a mesa, se agachou. As carteiras em cima dela pareceram olhá-la de volta. Eram oitenta e seis no total. E uma delas estava desalinhada. Johnny a reposicionou cautelosamente com o dedo e apertou os olhos para checar as outras.

Aquela devia ser a ração de Johnny, pois seu coração também saltou.

Se você cruzasse a avenida principal, passasse pela lavanderia semi-falida da Donald & Filhos, pelo campo de baseball repleto de viciados assustadores e pelo playground cheio de crianças tão assustadoras quanto, por fim, atravessando a antiga estação de rádio da cidade, chegaria a um grande estacionamento de trailers, montado provisoriamente para gerar lucros à dona do terreno enquanto a construção de um hipershopping não era retomada. Lá, se depararia com modelos singelos de furgões, trailers e vãs, que se rodeavam numa organização mal calculada, mas que ainda assim conseguia formar uma estranha e silenciosa comunidade, na qual tudo podia ser visto, mas eram poucos os que realmente arriscavam-se a enxergar.

E o bom de conviver no meio de pseudos astros do rock, artistas complexados e psicóticos metidos a predadores sexuais, era que Johnny não precisava de muito esforço para se camuflar. Não que ela tivesse a necessidade de esconder algo. Mesmo quando esse "algo" se tratava de uma extensa coleção de carteiras de couro, 132 relógios de pulso, 237 canetas esferográficas azuis, 24 rádios de pilha, 49 almofadas redondas e amarelas, 12 chaves de fenda e 7 pinguins de geladeira.

Ela certificou que as carteiras estavam alinhadas uma última vez antes de se levantar e partir em direção à porta, obrigando o gato a dar duas lambidas apressadas na vasilha de metal para poder segui-la.

Os vizinhos de Johnny não eram exatamente o tipo de pessoas que poderiam ser descritas como amigáveis, mas também não era como se eles tivessem os melhores adjetivos guardados para ela. Harry já estava do lado de fora, os pés gordos suspensos em cima da mesa, ouvindo uma partida de futebol pelo rádio de seu motorhome com uma atenção catatônica. Sua regata branca era marcada por respingos do molho do taco parcialmente mastigado que descansava embaixo de moscas varejeiras num prato.

O transe causado pelo esporte foi quebrado assim que Johnny passou por Harry, e ela pôde observá-lo vibrar fervorosamente quando o anúncio do ponto do time local foi feito. A comemoração se tornou ainda mais interessante quando a sua esposa saiu para fora e o atingiu no braço com uma frigideira, informando, por entre os dentes, que o filho deles havia finalmente pegado no sono.

Johnny procurou abandonar a discussão o mais rápido possível. As coisas costumavam ficar mais intensas depois do segundo ponto, e ela havia prometido para si mesma que nunca mais cometeria o erro de esperar para assisti-las. Ela conseguiu alcançar a entrada principal do estacionamento assim que o Cadillac de Pearl fez uma curva perigosa para estacionar violentamente na frente da guarita de Trevor, o cara que deveria ser o administrador do lugar, mas mal conseguia administrar as próprias drogas.

A placa onde se lia PAUSA DO PARAÍSO foi chutada pela mulher e ela ficou nas pontas dos pés para encarar Trevor através da proteção de vidro artificial de seu escritório de dois metros quadrados. Lá dentro, o homem se encolheu quando Pearl sacou um revólver em busca dos duzentos dólares que ele a devia.

Quando Johnny cruzou seu caminho, porém, Pearl se permitiu sorrir. Ela adorava gatos, e presenciar um, seguindo uma pessoa obedientemente, lhe dava uma satisfação que nem mesmo a melhor heroína da cidade conseguia oferecer.

Aos pés de Johnny, porém, o gato não parecia nutrir a mesma simpatia pela mulher, encolhendo o corpo numa posição de ameaça enquanto o barulho ruidoso de sua garganta dava conta do recado. Pearl, ainda encantada, tentou chamá-lo mais uma vez, seus dedos estalando compassadamente enquanto recitava variações de apelidos carinhosos com uma voz infantil.

Quando o pelo do animal se arrepiou e um miado estridente foi lançado na direção da mulher, Johnny se abaixou para ajeitar a barra da calça no mesmo instante em que um disparo acidental foi feito pela arma. Ela ergueu os olhos a tempo de ver o gato fugindo, deixando o cheiro de pólvora queimada como prova do triunfo de sua brincadeira. A palavra 'paraíso' na placa havia perdido metade das letras I e S, deixando a frase numa estética estranha e inacabada.

Johnny se levantou com pressa, o novo acerto de contas entre Pearl e Trevor ficando para trás junto com o debate sobre qual dos dois deveria consertar o bem da propriedade. Ela contornou o acostamento e virou na primeira esquina que dava acesso ao posto de gasolina, que também servia de ponto clandestino para apostas, muito popular entre as pessoas de meia idade que só "davam uma passada" pelas bombas de combustível. Em uma delas, um senhor de permanente e quase carente de pescoço xingava Antony - um jovem ruivo com um palito preso nos lábios - por tê-lo feito perder uma bolada. Antony desviou os olhos para Johnny quando ele a viu passar. O que ele não viu foi o gancho de direita do outro homem indo em direção ao seu queixo.

Johnny atravessou a rua novamente, passou pelo prédio de advocacia dos Irmãos Pucket e tomou cuidado para não ser barrada mais uma vez por usar a cerca do estabelecimento como atalho para alcançar a avenida principal. Já do outro lado, ela diminuiu os passos assim que passou pelos fundos da boate Sparkles.

— Eu só estou dizendo que aquela vadia da Rue tem roubado minhas gorjetas a semana toda — Donavan, um dos dançarinos do lugar, ia dizendo.

Leslie apertava os olhos para o amigo enquanto suas bochechas encolhiam, tragando o cigarro.

— Cherry nunca confiou nela. É por isso que foi banida daquela discoteca no Colorado. Quem é que consegue ser expulsa de uma merda daquelas?

A fumaça presa na boca de Leslie foi jogada de volta ao ar suavemente, envolvendo o rapaz numa nuvem acinzentada. Os dois estavam encostados na parede, ao lado dos enormes latões de lixo do lugar, ambos vestidos com macacões justos e super cintilantes. Na verdade, o brilho estava por todos os lados: cabelo, pálpebras, unhas. Era como se dois globos de discoteca tivessem ganhado vida e se materializado na forma humana.

Se Johnny não tivesse atrasada, ela teria ido até eles para repartirem um maço de cigarros. Costumavam ser simpáticos na maioria dos dias, a convidando para tomar alguns drinks enquanto a boate mantinha as portas fechadas e precisavam aguardar até o horário das atividades começarem por lá, durante a noite. Quando estava em busca de outro tipo de diversão, normalmente, nas vezes em que acordava de mau humor ou apenas com uma energia a mais para o caos, Johnny apelava para a carta de Leslie. Era ela quem roubava as gorjetas de Donavan, não Rue. E sempre que trazia isso à tona, Johnny presenciava a dupla cintilante atingir os níveis mais baixos de desentendimentos de um lugar privilegiado, quase como um reality show particular arquitetado por suas próprias mãos. Com o passar dos episódios, Johnny conseguia coletar mais informações sobre as partes envolvidas, segredos revelados na hora da raiva e detalhes cochichados pela plateia - geralmente formada por barmans, que assim como ela, eram completamente entretidos pela discussão -, que permitiam que um arsenal de munições comprometedoras fosse montado para a próxima confusão.

Johnny se afastou sem ser notada e alcançou a rua movimentada do centro a tempo de quase ser atingida por uma lata de tinta. Se não fosse pela rapidez com que se esgueirara para debaixo da escada do pintor desastrado, ela provavelmente seria um corpo desacordado tingido de azul agora. As pessoas que caminhavam ao redor xingaram, cobrando pela atenção do profissional. Lá do alto, praticamente agarrado ao letreiro do cinema, Ethan Manson ajeitou o boné na cabeça e fez uma reverência, se desculpando.

Johnny terminou de passar pela escada e colocou a mão em concha sobre os óculos redondos para mirar para cima. Era possível ver as letras em relevo de Romeu e Julieta seguidas por um longo e irregular rastro de tinta, um vestígio do desequilíbrio de Ethan. Ele tentou dizer algo para Johnny, algo sobre sete anos de azar, mas ela decidiu ignorá-lo intencionalmente, indo para o meio-fio e esperando até que a velocidade dos carros diminuísse para que pudesse atravessar.

Acompanhada por buzinas e braços colocados para fora das janelas dos motoristas, ela conseguiu, e, do outro lado, o gato estava a sua espera na frente de um hidrante. Ele se juntou à caminhada de Johnny assim que as botas dela alcançaram a calçada, seus passos começando a tomar um ritmo que o animal se esforçava para acompanhar sem ser pisoteado pelos transeuntes que viam e iam, hipnotizados pelo aglomerado de lojas e restaurantes.

Não demorou muito para que o som inconfundível de alto-falantes e gritos de guerra encontrasse os ouvidos da dupla, apressando-os. Eles seguiram em frente, enquanto um congestionamento começava a se formar e os donos dos estabelecimentos davam as caras para fora de seus escritórios, um pouco atordoados, a procura de alguma alma infeliz que pudessem culpar pelo barulho. Ou melhor, almas. E além daquelas que já haviam se juntado ao grupo em algum lugar naquele quarteirão, outras começavam a surgir em meio aos pedestres, segurando placas pregadas em talas de madeiras e cartazes empunhados orgulhosamente nas mãos. Também carregavam consigo o cheiro característico de baseado de baixa qualidade e da falta de banho, causada pelas longas peregrinações na estrada.

Johnny observou a marcha dos novos integrantes, homens e mulheres sendo atraídos pelo som como formigas no açúcar. Ela olhou para baixo e o gato parecia estar esperando por sua atenção, os olhos amarelos a encarando esperançosamente. Quando entendeu o recado, Johnny girou os calcanhares contra o fluxo de pessoas e entrou em um beco ali perto.

Ela voltou a se abaixar, exatamente como havia feito com Pearl minutos mais cedo, e o gato se sentou, apoiando-se em três patas enquanto levava uma até a altura do focinho para lambê-la, esperando pelo próximo movimento de Johnny.

— Faremos a mesma abordagem. Você sabe, somos amigos, não ameaça. Aja como se todos fossem tão culpados quanto você e fique tranquilo — Ela estava puxando o couro da bota esquerda para acessar o conteúdo de dentro de suas meias. — E nada de gracinhas, tá legal? Você sempre mete a gente em encrenca quando tenta improvisar, então siga o plano — Seus dedos afundaram em direção ao tornozelo — Ah, e pelo amor de Deus, fique longe dos cachorros! — Com um solavanco, uma faca foi retirada do calçado.

O gato parou de lamber sua pata imediatamente para encará-la.

— Exagerei?

Ele inclinou a cabeça para o lado e Johnny encolheu os ombros.

— Nós saímos com pressa, não deu tempo de pegar nossas coisas — Ela explicou com a voz baixa, como se não fossem as únicas duas almas naquele beco. — Não, não é improviso quando estamos numa emergência.

Então, olhou em direção à rua, ansiosa. Os minutos estavam passando e seus planos tendiam a se sair muito melhores quando eram pontuais, mas ela começava a ter dúvidas se conseguiriam sequer chegar na metade dele caso o gato continuasse a reprovar seus métodos. Johnny suspirou fundo, devolveu a faca para dentro da meia e se levantou com urgência. Sua cabeça, no entanto, permaneceu inclinada para baixo, os olhos procurando por qualquer coisa que lhe fosse útil naquela situação. Eles pararam em uma tampa de garrafa e Johnny se apressou para apanhá-la.

— Isso é coisa de amador — Ela comentou, sua voz contrariada enquanto segurava a pequena rodela de alumínio entre os dedos.

Ela voltou para a rua e cruzou a esquina mais próxima, e o gato esperou pacientemente na frente da roda de um Sedan até que seus "negócios" terminassem. Quando retornou, Johnny carregava um pedaço de papelão nas mãos. Nele, a escrita em letras maiúsculas e tinta verde gritava o pedido DEIXEM O VIETINÃ! A GUERRA É UM VÍRUS!, que apesar do erro ortográfico, parecia bastante determinado.

A poucos metros dali, um homem parecia comemorar a reviravolta de sua vida graças a uma pedra preciosa encontrada. O entusiasmo quase neurótico foi se tornando cada vez menos audível à medida que Johnny se aproximava da multidão de manifestantes e ela garantiu que o gato ficasse fora dela antes de ser lançar na aglomeração.

Atrás de uma faixa quilométrica - que exigia o retorno das tropas americanas aos Estados Unidos -, bocas de sino e bandanas marchavam decididamente pela avenida. Em situações como aquela, toda a atenção de Johnny parecia triplicar. Ela mantinha seus ouvidos atentos a cada som que pudesse crescer ao seu redor, as mãos erguidas apenas o suficiente para não ter o seu comportamento destacado das outras pessoas e os olhos concentrados por detrás das lentes amarelas ao máximo de detalhes que conseguia. A maneira como as pessoas agiam era o principal deles. O ritmo em que respiravam, a altura em que seus ombros eram mantidos, se estavam chapados ou não, a velocidade em que andavam, tudo devia ser levado em conta, e Johnny passara a maior parte de seu tempo se esforçando para decorá-los. Por isso, quando uma estudante foi empurrada acidentalmente em sua direção, Johnny sabia exatamente em qual braço se segurar para ajudá-la a retomar o equilíbrio e - ao mesmo tempo - arrancar o relógio de seu pulso sem que ninguém notasse.

—— Não foi nada — Johnny disse, devolvendo o sorriso.

Ela esperou até que a garota lhe desse as costas para se afastar dali, indo para onde um homem de colete de couro buscava alguém para ajudá-lo com o seu cartaz enquanto amarrava os cadarços. Johnny se colocou em seu lado prontamente, apanhando todo aquele ABAIXO AO SISTEMA rabiscado com giz de cera e o colocando debaixo do braço. Quando o rapaz se levantou para recuperá-lo, Johnny teria dado ouvidos aos seus flertes se não estivesse mais determinada em alcançar o bolso de seu colete. Ela aproveitou a virada da passeata em uma nova via para se jogar sobre o roqueiro e o deixou falando seu número de telefone sozinho quando se certificou que a carteira dele havia sido bem colocada atrás de suas costas.

Desta vez, Johnny decidiu ir para a linha de frente, junto aos megafones e regentes do movimento. Ela permaneceu murmurando rimas e frases de efeito - hora engraçadas, hora quase ofensivas, mas sarcásticas no ponto certo, o que também as deixavam engraçadas - até que a caminhada levou a multidão para o ponto principal, em frente ao prédio que servia de sede para a redação do jornal diário de Roswell. Sempre diziam que aquele tipo de gente vivia para chamar atenção, ao menos agora, estavam indo propositalmente atrás dela.

Mas não era a possibilidade de ter seu rosto estampando a capa de alguma matéria sensacionalista e fajuta que estava fazendo as mãos de Johnny suarem. Parado a certa distância de onde ela estava, o chefe de polícia Malore olhava analiticamente para a manifestação, acariciando o cavanhaque bem barbeado enquanto trocava algumas palavras com o seu encarregado, o jovem Ernest, que parecia cada vez mais amedrontado com o crescente coro do grupo diante de seus olhos.

Quando Malore levou as mãos até a cintura, Johnny pôde jurar que salivou um pouquinho. Ela sonhara com aquele momento tantas vezes que nem sabia dizer. Ele havia ocupado parte de seus banhos, a maioria de suas refeições e ainda permanecia lá antes de cair no sono. As coisas não poderiam dar errado. Não dessa vez. Estava bem ali, no bolso da frente do uniforme militar. Ela podia ver bem a protuberância. Couro legítimo de crocodilo, cerca de 125 gramas, compartimento duplo para cédulas, zíper tão macio que sequer fazia barulho. Johnny se lembrava da primeira vez em que havia visto a carteira, numa troca de dinheiro rápida no balcão da lanchonete da senhorita Blossom na passagem religiosa de Malore pelo local para o primeiro café de seu turno, às oito. Sua coleção já estava num tamanho considerável àquela altura, mas um modelo sofisticado como o de Malore certamente somariam uns pontos a mais para o seu acervo. Além disso, o desafio que envolvia a tarefa deixava tudo mais interessante. Roubar a carteira do policial de maior escalão daquela cidade de merda fazia os olhos de Johnny brilharem como estrelas, e só a ideia de estar a poucos passos de seu santo graal deixava a sua respiração um pouco acelerada.

A multidão vibrou com a saída de um dos jornalistas para fora, mas um desapontamento assolou suas vozes quando o homem de suspensórios caminhou até a dupla de policiais, parecendo tão inconformado quanto eles. Johnny sabia que dali em diante, o cenário ficaria cada vez mais intenso, e se ela quisesse se dar bem naquela tentativa, as coisas teriam que acontecer rápido, mas Malore precisava que explodir junto.

O bom de estar num protesto, no entanto, era que tudo poderia ser transformado num barril de pólvora, bastava se certificar que o palito certo seria riscado. E Johnny havia testado a maioria deles. Até aquele momento, seus planos já haviam se baseado nas mais variadas abordagens, algumas humilhantes - como os quinze minutos mais longos de sua vida com Ernest no banco de trás de uma das viaturas -, já outras estupidamente ruins - como atrair Malore para a frente de um caminhão numa tentativa de atropelá-lo para roubar a carteira do cadáver -, mas seja lá qual fosse o cenário que Johnny era levada, suas mãos sempre acabavam vazias e a carteira permanecia no bolso de Malore. Mas havia algo de otimista naquela nova estratégia, muito mais simples e objetiva do que o seu histórico mirabolante e ineficaz havia sido.

Johnny esperou até que o jornalista se aproximasse da multidão para se livrar de seu cartaz. Os degraus da escadaria do prédio davam ao homem alguns centímetros de vantagem, uma superioridade quase olimpiana a qual ele não tinha, e nem merecia. Acompanhado pelo policial Malore, ele gesticulou diante a gritaria, pedindo silêncio, e o grupo relutantemente acatou seu desejo. A expectativa de que aquilo pudesse se tratar de uma possível oferta de espaço para se pronunciarem conseguia ser facilmente notada nos rostos dos manifestantes, mas não havia esperança. Não para eles.

O pronunciamento que o jornalista fez a seguir foi claro, e anunciava, com a mesma sensibilidade de quem manuseava uma cadeira elétrica, que todos tinham exatamente cinco minutos para sair dali antes que a força policial começasse a tomar providências. Naquele momento, as buzinas dos carros paralisados graças à manifestação pareceram ganhar mais forças, todas muito mais altas e incômodas do que estavam sendo até ali. Também foi naquele momento que, diante ao breve silêncio que tamanha frustração causara nos que ali protestavam, Johnny ergueu sua perna esquerda, e com um solavanco ou dois, não esperou para arremessar sua bota em direção ao jornalista.

O mundo pareceu parar para assistir a colisão. De repente, os carros haviam ficado mais silenciosos, as crianças mais calmas e os pais mais alertas. Até os pássaros pareceram ter segurado a respiração, e Johnny podia jurar que avistou um cachorro de rua se virando para encarar também. Com o impacto, o jornalista cambaleou para trás, o olho direito, visivelmente lesionado, apertado fortemente com um uivo de dor. E como se milhares de televisões tivessem sido ligadas ao mesmo tempo, a cena voltou a ganhar som, sua trilha sonora sendo regida por um alto e agressivo apito, que só teve fim quando cassetetes e placas pacifistas se chocaram uns nos outros.

Ao redor de Johnny, no entanto, as coisas ainda se moviam em câmera lenta. Aqueles que permaneciam fiéis ao movimento, mesmo em meio a sirenes e gases desorientadores, eram resistentes ao ataque do outro grupo, entoando exigências e se defendendo como podiam. Já os que encaravam suas vidas como a única causa que eram verdadeiramente obrigados a defender, escalavam capôs, saltavam bancos e empurravam qualquer coisa ou pessoa que surgisse em seus caminhos, despistando, sem nenhuma dificuldade, oficiais que até então só estavam acostumados a perseguir rosquinhas.

Mas era nos olhos de Malore que a verdadeira confusão reinava. Johnny permaneceu parada, o encarando de onde estava enquanto todo o resto colapsava entre eles. Ela era o isqueiro e Malore odiava fumaça. Por esta razão, ele não esperou até que algum de seus colegas pudesse detê-la para se lançar escada abaixo, movendo-se rapidamente na direção de Johnny e decretando sua prisão. Assim que Malore a atingiu e os seus oitenta quilos prensaram o corpo dela no chão, Johnny teve certeza que um novo par de costelas lesionadas havia se juntado às outras.

— Tem o direito de permanecer calada! Tudo o que dizer poderá ser-

A cotovelada de Johnny no maxilar do homem fez o restante de suas palavras voarem para longe. Ela aproveitou o momento para inclinar a cabeça, e quando seus olhos flagraram a imagem da carteira, quase caída para fora do uniforme, um sorriso vitorioso repartiu seus lábios. Mas as coisas ficaram menos divertidas quando o antebraço de Malore voou para sua garganta. Facas pareceram compor o ar, cortando o interior das narinas de Johnny enquanto seus pulmões tentavam identificar se aquela era mais uma das brincadeiras do corpo que lhes carregavam. Houve um pequeno vislumbre que fez Johnny pensar que talvez aquela seria uma boa hora para fazer Malore encará-la nos olhos, mas eles já estavam pesados demais para isso. Então, quando a correria de pés que cruzavam sua cabeça no asfalto se transformou em um número considerável de patas, ela pensou que estivesse delirando.

Foi só quando os dentes de um vira-lata cravaram no ombro de Malore que as coisas voltaram a se firmar na realidade, e no instante em que um segundo cachorro atacou a perna do policial, o fazendo se levantar em um ato desesperado, as costas de Johnny praticamente se curvaram em um gesto de boas-vindas ao oxigênio perdido. Ela não esperou que um terceiro cão se juntasse à dupla para se levantar e sair correndo.

Depois de passar por um policial que se esforçava para não ter sua algema roubada e uma fogueira feita às pressas em uma lata de lixo, só então Johnny olhou para baixo.

— O que eu te disse sobre cachorros? — Sua voz estava ofegante, mas não o suficiente para que o gato não a compreendesse, controlando o ritmo de suas patas para se manter dentro da corrida de Johnny.

Através do autofalante de uma das viaturas, uma nova ordem de prisão foi dada, mas dessa vez, com um alvo em especial a ser apreendido. Não era preciso olhar para trás para saber que Malore havia enviado subordinados para vingar a mordida em sua panturrilha, o barulho de botas se chocando contra o asfalto quase que sincronizadas com as batidas do coração de Johnny.

Puta merda, como ela estava cansada. Ela poderia acabar com aquilo, se jogar no chão e esperar que algum policial calvo colocasse suas mãos para trás e a arrastasse dali algemada, mas Johnny odiava como a cela da prisão provisória da delegacia ficava quente naquele horário e ela já havia desperdiçado terças-feiras demais nela. Por isso, continuou correndo.

Johnny não soube dizer se fora a dor em seu abdômen ou o sol desnorteante que a impediram de notar quando algo entrou em seu caminho. Seus sentidos, antes tão alertas, pareciam ter adormecido com a adrenalina e só voltaram a exercer suas devidas funções quando ela já estava no chão, fazendo força para se erguer com os cotovelos enquanto sentia o gosto metálico de sangue invadir seus lábios. Sua visão, no entanto, estava perfeitamente normal, mas ela se certificou de piscar algumas vezes e arregalar bem os olhos para ter certeza de que aquela não era mais uma das recorrentes situações em que sua cabeça decidia lhe pregar peças.

Diante da mulher coberta de sangue em sua frente, Lila Pitts pensou o mesmo.

Aquilo não podia estar certo. Bom, para falar a verdade, nada parecia estar certo nas últimas horas - para não dizer dias, ou mais precisamente, nos últimos anos desde o dia de seu nascimento -, mas viajar para outro ponto no passado definitivamente não estava no que Lila imaginava ser uma fuga para toda aquela esquisitice em que a sua mãe havia a metido. Ela tinha um destino muito diferente em mente, mas era de se esperar que cálculos se embaralhassem e que tecnologias falhassem quando a única coisa que você consegue pensar é na cena da mulher que te criou levando um tiro a sangue frio. Lila podia ouvir o barulho do disparo ecoar pela sua cabeça, como se seu cérebro tivesse sido retirado e tudo o que sobrara para trás fosse o mesmo desespero que assombrou uma garotinha por anos depois que ela cruzou com os cadáveres de seus pais biológicos caídos no meio da sala. E a ideia que sua mãe poderia ser quem arquitetara tudo aquilo só piorava as coisas só piorava as coisas. Se fosse verdade, o final que ela tivera talvez fosse merecido, mas ainda assim não era o bastante para apagar tudo o que haviam construído juntas até ali como mãe e filha. Ou era? Lila podia jurar que isso ainda iria fazê-la enlouquecer, mas havia coisas que precisava fazer antes disso. Parar de se referir à Gestora como mãe era a primeira delas.

Oh, e ainda havia os Hargreeves. Seis novos problemas com que ela teria que lidar além dos outros milhares que ela já possuía. Antes de entrar de cabeça em todo aquele plano de ficar presa em 1963, Lila conseguiu listar belas vantagens que obedecer a sua mãe poderia lhe trazer, mas ganhar irmãos postiços definitivamente não era uma delas. E, como se não fosse o suficiente, no meio de tudo aquilo havia Diego. Zangada seria um termo banal para se referir a como Lila estava se sentindo em relação a ele e a sua família, mas ela não podia negar que um gosto amargo lhe subia pela garganta toda vez que pensava sobre o paradeiro do Número Dois. O que era de uma tremenda estupidez, pois não era ele quem estava prestes a ser pisoteado por um bando de hippies e policiais no meio da rua de um lugar desconhecido.

Foi a buzina de um carro atrás de si que fez Lila voltar para aquele presente, mas foi o sangue que escorria pelo nariz da mulher em sua frente que a fez entender o porquê de sua testa estar latejando. A figura ensanguentada, porém, parecia não ter se aborrecido com a lesão. Ela estava mesmo sorrindo? Um vinco se formou na testa de Lila. O que de tão havia de engraçado em ter seu nariz arrebentado por uma desconhecida?

Uma segunda buzinada fez o corpo de Lila se contrair. Sua mente estava funcionando perfeitamente, mas havia um ponto de interferência entre seus neurônios e seu corpo que a impediam de tomar qualquer ação imediata. A mulher em sua frente, no entanto, não parecia partilhar da mesma tranquilidade. Ela passou a manga de sua blusa pelo nariz e limpou o que pôde em menos de três segundos. Quando se levantou, ela arregaçou as mangas e estendeu um braço na direção de Lila. Pitts, por outro lado, pareceu ter levado outra pancada, olhando para a mão de Johnny como se tivesse desaprendido a se mexer.

— Ora, vamos! — Johnny tentou chamar a atenção daquele ser de olhos arregalados. Seus pés estavam a um ponto de se desprenderem do corpo e se arrastarem dali por conta própria, e os gritos do exército de Malore que corria em suas direções não ajudavam em nada. — Vamos, por favor! Veja, é só sangue — Ela virou a palma de sua mão para cima e para baixo algumas vezes.

Mas não era o sangue que fez com que Lila terminasse de perder completamente o seu raciocínio. Ela já havia visto sangue muitas vezes. Era parte da vida dela. De quem ela era. Mas aquilo um pouco acima do pulso de Johnny, não. Na verdade, o que Lila estava tentando fazer durante todo aquele tempo era fugir daquilo. E mesmo se todo o sangue do mundo fosse colocado em cilindros em sua frente, aquela tatuagem em formato de guarda-chuva ainda assim seria a coisa mais aterrorizante que Lila podia estar vendo.

Merda, eles estavam por toda parte?