Guizos Ao Vento

Família em proporções monstruosas


Nunca vira nada igual. O quarto era enorme. E quando digo enorme, não é grande, ou muito grande, é enorme mesmo. O quarto de Rachel E. Dare era um kitnet perto daquele. As paredes eram cor-de-rosa, havia um tapete branco felpudo, que cobria metade do minusculo quarto, um closet, uma suíte praticamente presidencial, com duas hidromassagens, dois boxes, dois banheiros, duas pias, poltronas, ofurô, TV para assistir enquanto se banha, e tudo o mais que se pode caber num banheiro do tamanho do meu apartamento. Uma TV tela plana de cinquenta polegadas, pufes espalhados à frente dela, um Nintendo Wii, uma coleção de DVD's, uma janela com parapeito acolchoado em rosa, com vista panorâmica para o jardim, com uma linda fonte que gorgolejava. E o mais empolgante, que fez os olhos da garota de tranças e tornozeleira de guizos de arregalarem e soltar um gritinho... Uma cama king size com dossel.
- Você gostou, minha pequenina?
- DEMAIS! - Ela correu e pulou na cama, rindo à toa.
- Fico feliz. Preparamos com carinho para você. Vou deixar as sacolas aqui, depois as har... empregadas arrumam. Vamos comer, pequenina. - O monstro tinha um sorriso largo, sincero e terno que esticavam seus enormes lábios de ponta a ponta no rosto.

A lua brilhava no céu. Gale sentia o perigo correr em suas veias. Estava em uma casa infestada de monstros, e, ao invés deles fugirem dela, ou a dedurarem, ou a usarem para planos malignos, eles sorriam, como se fossem da sua família.
- Já está com sono, minha pequenina? - Gale coçava os olhos. Acabaram de chegar do passeio pelo labirinto/jardim, algo que cansaria até mesmo os deuses... o.k eu disse que ia parar com as piadinhas.
- Acho que sim. Vou me deitar agora, papai. - Assim a garota levantou-se do sofá macio cor de ébano, e seguiu pela escada. Ao chegar no quarto, colocou o pijama, e verificou que não haviam tocado na sua mochila, que havia escondido em baixo da cama, por mais que as roupas estivessem arrumadas no closet, e o quarto impecável. A garota pegou o livro com capa preta de couro. Dentro haviam cinco rosas brancas. A lua parecia querer lembrá-la de seus amigos, pois enquanto olhava para ela, os dias no Acampamento borbulhavam em suas lembranças. Será que Josh e Sibila estavam gostando de seu novo lar? Será que eles, e seus amigos, tinham conseguido chegar lá, sãos e salvos? E então sua mente parou no mais importante, naquilo que deveria ter parado desde o inicio. Nico di Angelo. Onde ele estava? O que estaria fazendo? Com quem estaria? Gale suspirou, pousou o livro sobre a cama, e foi até a janela, sentou-se entre as almofadas, e colocou o prisma de Sibila aos seus pés. A garota o havia deixado para a deusa. A lua formou um fraco arco-íris. Gale jogou seu último dracma, e fez sua oferenda. Thalia surgiu na névoa.
- Pelos deuses, quase nos matou de preocupação! - A filha de Zeus exclamou.
- Não tenho muito tempo, e esse era o meu último dracma de ouro. Já fui adotada, estou bem... apenas numa mansão lotada de monstros... E aí, Sibila e Josh estão se adaptando?
- Eles vão sobreviver. - Thalia sorriu. - Estou mais tranquila de saber que você está bem. Avisarei à todos que você mandou um sinal de vida.
- Mande um beijo, e diga que estou com saudades. Tenho que ir dormir agora, tchau.
- Tchau. Se cuida!
- Você também!
- Mas não sou eu quem estou numa casa cheia de monstros né! - As duas riram, e então a névoa se dissipou. Gale ficou mais uns minutos olhando pela janela. Gostaria de ter falado mais. Mas já estava aliviada só por aquele pouco tempo com Thalia. A ànemoi estava quase dormindo no sofá acolchoado, acoplado à janela, quando a porta se abriu, e dela veio um gigante com três olhos. Se a casa não fosse em proporções monstruosas, e o teto não fosse de quase quinze metros de altura, ele teria de andar meio curvado, ou então teria vários galos na cabeça.
- Papai? - Ela perguntou, a voz sonolenta.
- Eu trouxe seu leitinho. Pensei que... talvez você pudesse querer...
- Ah, obrigada papai. - Ela pegou o copo das mãos do gigante, e bebeu o leite morno. - Conte uma história para eu dormir? - O monstro se empertigou.
- Então vamos para a cama. - Gale entregou o copo vazio ao monstro. Ele o pôs sobre um criado-mudo, a garota deitou-se na cama, e ele a cobriu. - Gosta de... hum... mitologia grega? - A menina assentiu. - Mas deve gostar dos heróis, como todos os outros...
- Na verdade, não. Prefiro os predadores, ou, os monstros. Consigo entendê-los. - Os três olhos de Andalonte encheram-se de àgua. - Que foi papai?
- Nada, pequenina. Pois bem, contarei a história de um monstro não muito conhecido.
- OBA! - Gale exclamou sorrindo.
- Era uma vez um ciclope muito mal, chamado Polifemo, e uma lestrigão malvada chamada Bouvet. Os dois tiveram um filhinho chamado Andalonte.
- Como você, papai? - Gale lutava para manter os olhos abertos, mas passara o dia passeando pela mansão, em completa tensão, rodeada de monstros. Sua forma mortal estava cansada.
- Sim, como eu. - O monstro sorriu. - Quando Andalonte era ainda muito pequeno, seu pai foi embora, deixando-o com sua mãe e seus tios e parentes lestrigões, na ilha onde moravam. Mas até mesmo para os monstros, Andalonte era uma aberração. - A voz do monstro se tornou distante, como se estivesse lembrando da história, e não apenas criando-a. Como se fosse ele mesmo a criança da história, e não apenas o narrador de tal história para ninar. - Ele possuía dois olhos, dois como sua mãe, e um no centro do rosto, como seu pai... E aquilo era... estranho... até mesmo para um monstro. - Sua voz tremeu, como se ele fosse chorar a qualquer instante. - Um dia, na ilha, aportou um barco de humanos, que estavam perdidos. Estes ficaram presos para a hora do jantar. Andalonte, que era apenas uma criança, pensando que eles eram convidados para o banquete, fez amizade com aqueles mortais. Era ainda muito menino, e não compreendia. Quando acenderam a fogueira, e o ritual começou, Andalonte percebeu que eles não eram convidados para o jantar, e sim, o jantar, o pequeno ciclope-lestrigão revoltou-se e matou todos os viventes monstros daquela ilha, que hoje chamam de Bouvet, em homenagem à minh... sua mãe. Está é a ilha mais isolada do mundo, e é desabitada. Quando o monstro viu o que havia feito, e que estava sozinho no mundo dali por diante, sua amiga mortal o abraçou e disse: "Não se preocupe, tudo vai ficar bem, pequenino." - Andalonte pensou que Gale já dormia, e então levantou-se, pegou o copo de leite vazio, e caminhou até a porta. Encostou-a, deixando uma brecha de luz vinda do corredor, para que a menina não tivesse medo do escuro, pois medo de monstros seria outra piadinha inútil, e eu disse que pararia com elas... é, eu disse... - Não sei como, mas você me lembra ela, pequenina. - O monstro sussurrou, fitando a pequena garota deitada em sua cama de dossel, ressonando.