Guizos Ao Vento

Flores e um fugitivo


Já fazia uma semana e Gale se acostumara ao cheiro, ou melhor, fedor. O coração da menina gritava de saudades, e seus pensamentos mostravam uma certa cena na Colina do Pinheiro, e na plantação de morangos, quando Thalia veio avisá-los sobre Ártemis, e a garota percebera que eles tinham as mãos entrelaçadas. Gale balançou a cabeça, afastando os pensamentos e as lágrimas. A lua parecia censurá-la, como Ártemis fizera com Nico na Casa Grande. O vento gélido, vindo do sul, bagunçava os cabelos da deusa, e parecia querer congelar suas lágrimas, o tempo, suas lembranças, e trazer de volta para si aquele que dominava seus pensamentos.
- Por que choras pequenina? - Andalonte surgiu em meio aos arbustos gigantes do Labirinto da Mansão. Gale encontrava-se sentada no banco branco, ainda encarava a lua.
- Eu... eu não sei. Tem um aperto aqui no peito. - Ela não mentia, mas não tirou os olhos da lua. O monstro sentou-se ao seu lado, e o banco arriou. Duas lágrimas do tamanho de poças de chuva tocaram o chão.
- Não se preocupe, tudo vai ficar bem, pequenina. - E com isso Gale adormeceu encostada ao monstro que a tratava mais como filha que seu próprio pai.

A garota corria com seu vestido pêssego, a cor favorita de Scylla, pela Mansão, e o vento lá fora se agitava. Ela dava alegria à casa.

Foi quando uma reunião na sala do chão de mármore negro, era assim que Gale a chamava, a fez estatelar no corredor, e adentrar o cômodo, que não tinha móvel algum, apenas um círculo dourado no centro, com um símbolo estranho. Sala talvez seja um eufemismo, afinal, com o teto de quinze metros de altura, e o tamanho de um campo de futebol... Tudo bem, para os monstros era uma sala. Eles falavam sobre o ritual, e ela se assustou ao saber que este seria dali a dois dias, ao entardecer. Os monstros nem se importaram com a presença da menina, e falavam abertamente sobre o local e o que era necessário. Foi quando uma luz forte irrompeu no centro do círculo dourado, e Gale sentiu que era um deus quem estava por vir.

A mulher de cabelos negros presos num coque nem teve tempo de olhá-la, pois Gale escondeu-se atrás de Andalonte, gritando como uma garotinha assustada.
- Nêmesis! Que bons ventos a trazem aqui? - Gale sentiu seu estômago embrulhar. Os ventos não a trouxeram ali.
- Vim ver como estão os preparativos para amanhã.
- Está tudo certo, falta apenas a...
- Alguém faz essa pirralha calar a boca? - A deusa da vingança berrou.
- Andalonte, leve-a para o seu quarto. - O monstro de três olhos pegou Gale no colo, e a garota afagou o rosto no ombro dele, deixando o cabelo cair sobre a sua cara, e impedindo a deusa de reconhecê-la.

Andalonte a pôs sobre sua cama, e ajoelhou-se.
- Por que choras pequenina? - O monstro de três olhos a encarou compreensivo.
- Não gostei daquela mulher, papai! - O monstro hesitou. Gale às vezes agia como se pudesse ver através da Névoa, como se...
- Como você me vê, Maria? - Gale ainda tinha o medo dançando por suas veias, quase fora descoberta. E Nêmesis parecia tão... Vingativa. Sabe se lá o que iria fazer se a descobrisse. Não que a deusa da vingança tivesse algo contra a ànemoi, mas ela sempre fora severa demais, e isso assustava Gale, a forma como seu olhar faíscava de ódio, sedenta por vinganças, algumas inúteis... A pequena deusa falou sem pensar:
- Como um monstro, oras. - Ela deu de ombros, o medo deixando sua visão turva, e fazendo o vento lá fora agitar as árvores de forma brutal.
- O quê? - Os três olhos de Andalonte se arregalaram, e Gale percebeu a besteira que tinha feito.
- Mas pode tirar essa fantasia. - Ela brincou com o nariz do gigante fazendo vóz de neném, Sua imaginação fértil a salvara.
- Como sabe que é uma fantasia? - Ele tinha a voz hesitante.
- Porque estou vendo a sua cara feiosa dentro da boca do monstro. - Ela uniu as mãos e as abaixou, levantando os ombros e fazendo cara de dengo.
- E como você sabe que eu não sou o monstro feioso que comeu o seu papai, e que vai te matar de fazer cóssegas? - Andalonte ergueu as mãos e preparou-se para atacar Gale com cóssegas, quando Scylla abriu a porta do quarto da garota.
- Também quero! - Disse ela. A criatura marinha se jogou na cama quando Gale e Andalonte a sufocaram com cóssegas. A ànemoi nunca sentira que tinha uma familia, como naquele momento com Scylla e Andalonte.

Já passava da meia-noite, e a garota não conseguia dormir. Ela teria de fugir. Avisar o Acampamento.

Gale obrigava-se a fechar os olhos, se fosse fugir, teria de estar descançada. Algo se moveu fora da visão da garota, e uma rosa branca surgiu em seu travesseiro. À tempo de uma piscadela. A ànemoi deu um salto, e teria gritado por isso, se uma mão segurando um ramo de pequenas flores amarelas não tivesse surgido no parapeito da janela. Ela gritou, mas o grito estatelou no vácuo, sem som, após um garoto loiro se erguer e pular para dentro, caindo no sofá acolchoado. Josh.
- O que... O que você está fazendo aqui? - Sussurrou a garota de pijamas, colocando a rosa branca debaixo das cobertas e saltando da cama.
- Vim buscá-la. - Ele ergueu as flores, sorrindo. O sotaque tipicamente britânico encheu os ouvidos da garota, e ela se sentiu alegre, gostava daquilo.
- Mas eu pensei que tivesse ido para o Acampamento com os meus amigos. - Ela pegou o ramo e cheirou as flores. Seu rosto, um misto de sorriso e pânico. Mas ela estava feliz por ter alguém conhecido ali. Um cheiro familiar, um perfume masculino marcante.
- Eu fugi. Precisava vir buscá-la. - Ele sorriu, passando as costas da mão pelo rosto da menina.
- Mas como me achou? - Ela o encarou, os olhos preocupados.
- O vento me trouxe até aqui. - Josh se aproximou, seu rosto a poucos centimetros do da ànemoi, o coração acelerado. Gale se afastou, sem perceber o que o garoto pretendia fazer. Não o leve a mal, ele não sabia sobre Nico, e os olhos de Gale o enfeitiçaram desde o primeiro dia, no orfanato.
- E agora? Eles vão sentir o seu cheiro! Sabe por que estou aqui?
- Não falam de outra coisa lá no Acampamento. - Ele riu.
- Eu... eu posso segurar o seu cheiro - Ela disse apreensiva. Aquilo a cansaria demais. Gale prendeu a respiração, e o cheiro do garoto se esvaiu. Ela voltou a respirar, pequenas quantidades de oxigênio, calmamente, e com dificuldade. - Você deve estar com fome. - Ela o pegou pela mão, enquanto ainda segurava as flores amarelas com a outra. Desceram as escadas, escondendo-se das harpias e das dracaenae, sem falar no gigante cão infernal deitado no tapete da sala, em sono profundo.
- Nossa, muito obrigado. - Josh disse com a boca cheia de sanduíche. Gale cheirava as flores, rindo.
- Vamos antes que alguém resolva fazer um lanchinho noturno. - Os dois subiram, e Josh acomodou-se no acolchoado da janela, e, após alguns minutos, já ressonava.

Gale pegou o livro de capa de couro preto, e colocou a rosa branca, que estava perdida em suas cobertas, e o ramo de minusculas flores amarelas que Josh a presenteara.

Ela passou algum tempo encarando o garoto que dormia em sono profundo à sua janela. O cabelo louro caído sobre as almofadas.