Glory and Gore

You’ve got your demons and darling they all look like me.


Clove suspirou profundamente enquanto observava a praça da Arvina se estender a sua frente através da brecha na porta de madeira. Àquela hora da madrugada, ela ainda estava vazia. Mesmo assim, aquele aperto insistente assolava o peito de Clove, que decidiu se voltar para dentro do cômodo, onde Cato estava terminando de ser preparado. Ele tinha o mesmo broche que o dela e o mesmo preto dominava suas roupas.

Ele ergueu as sobrancelhas e ensaiou uma espécie de sorriso quando a viu olhando em sua direção.

O combinado era simples: ele ia dizer algumas palavras bem ensaiadas e Clove ficaria ao seu lado, em silêncio, até a hora de finalizar a coisa. Eles mostrariam o apoio a causa. Rapidamente, eles sairiam de lá. O 13 ficaria satisfeito, ele veria que Cato estava dobrando o distrito, e tudo daria certo.

Mas Clove sabia mais. Mais do que o 13 jamais poderia realmente entender. Ela sabia que Cato ainda não estava exatamente preparado para voltar para a vila vizinha da sua. Ela sabia que aquela se tratava da vila que entedia melhor todo o trâmite com Cato nos Jogos e seu pai em um caixão, uma das vilas que entendia bem a lealdade entre eles e as traições muito casualmente cometidas.

Na Curia, ela era a deusa. Na Arvina, Cato era o traidor.

Clove rumou em sua direção, mordendo os lábios.

— Você está pronta? – Cato perguntou, se levantando. Clove suspirou um risinho porque ele vinha tentando muito, vinha tentando de qualquer forma apagar o que a Capital tinha feito, o que ela tinha feito. Mas ele não estava pronto, não para assumir o papel que Clove tinha dito que ele assumiria.

Em meio ao ar abafado, então, Clove passou a enxergar a expressão perturbadora de Gregor Hadley. Seu sorriso cheio de dentes, seus ternos, suas três crianças perfeitas. Como se um fantasma tomasse o quarto, ela sentiu a ira desesperada dele, mal contida em seus olhos que pareciam queimar tudo em que pousavam.

— Se você ver alguém pegando uma arma, não fica parado esperando, ok? – foram as palavras apressadas que deixaram os lábios de Clove. Ela se lembrava da Curia, da leveza em sua mente, da maneira com a qual as palavras escorregaram de seus lábios porque ela estava pronta para ir.

Cato tornou a olhar para ela, seu semblante carregado de seriedade até ser cruzado por um sorriso leve.

— Claro.

Eles ficaram lá, sustentando olhares, e Clove pensou, por alguns minutos, o quão melhor tudo seria se Cato jamais houvesse a conhecido. Talvez ele teria guardado aqueles olhares para outra garota, uma que os merecesse. Quando ele sorrisse daquele jeito, talvez a outra garota pudesse devolvê-lo o sorriso do jeito certo. Se tudo desse certo, ele não teria encostado em seu pai e seu distrito não o odiaria e ele não teria que estar discursando em favor de causa nenhuma. Cato era do tipo que devia se casar, morar em uma casa grande, carregar seus bebês nas costas. A outra garota talvez pudesse fazer tudo funcionar.

Mas Clove...

— No segundo que eu terminar, a gente some de lá.

Porque Cato gostava um pouco das promessas que Clove fazia naqueles tempos, e ele estava tentando, ele estendeu a mão em sua direção e entrelaçou seus dedos enquanto eles esperavam pelo sinal.

— Eles vão te receber de volta. A Patrus me recebeu – Clove murmurou.

— Você é especial— foi o que Cato respondeu e, apesar do sarcasmo amargo em suas palavras, tudo em seus olhos parecia certo.

Clove sorriu.

Então eles discursaram na Arvina. Com olhos selvagens, os moradores de lá surgiram das trevas e assistiram Cato falar como se observassem uma entidade de outro mundo; indignação e fascínio e adoração flutuando nos olhos deles todos. Cato devia estar morto, e Cato parecia estar com sua pele pálida e todas aquelas veias e Clove parada bem ao seu lado, o observando com o pesar que se dedica aos mortos.

Por favor por favor por favor (aceitem ele).

Cato terminou. Ele não parecia tão seguro quanto ela. Mas teria que funcionar.

No final, eles sustentaram um olhar breve de pânico e, no segundo seguinte, suas mãos estavam erguidas no alto. Eles conseguiram registrar a realização no olhar de alguns moradores.

Tudo estava certo. Eram as mesmas divindades de sempre.

Nos minutos seguintes, a praça explodiu em gritos. Eles clamavam por libertação, por alguém deles pra seguir, por sangue. Então um nome.

Cato.

Ele era um deus e um povo como aquele seguiria as ordens do filho de um Pacificador. Ele tinha tudo, afinal. A vida trágica, a raiva desesperada, o sangue em suas mãos (o arrependimento corroendo seus olhos e a musa traiçoeira ao seu lado).

O 2 se curvou pro seu garoto de ouro e o 13 planejou mandar o próprio Tordo para terminar o serviço.

E tudo correu bem por uma semana.

Eles tinham medicação na base, e Cato não era muito de se opor a qualquer coisa que pudesse diminuir sua dor. Às vezes tudo ainda parecia meio embolado, mas ele conseguia dormir mais e ele estava vendo um médico diferente uma vez por semana, geralmente depois que ele voltava da reunião na Patrus. O médico achava que ele pararia de ver coisas e de sentir toda aquela dor de cabeça eventualmente, e Cato era bom em acreditar em verdades confortáveis, ele era muito bom naquele tipo de fé insana.

Ele acreditava que tudo estava ficando menos insuportável, menos ensurdecedor, menos doloroso.

(Quando Cato era mais novo, ele costumava acreditar em mágica).

Cato passou a caminhar pelo distrito quando sua cabeça ficava muito confusa. Teo às vezes ia com ele, naquele silêncio esquisito de sempre. Depois de um tempo, depois de ver o que a Capital tinha feito, ele passou a frequentar as reuniões e foi mandado para ajudar na Dardelia. Um dia, Cato viu Gaia perguntar a Clove se ela podia trançar seu cabelo. Eles todos comiam juntos no refeitório da base.

Eles já tinham juntado as peças depois de muitas tempestades, reconstruído muitos impérios, forçado muitos recomeços, então talvez fosse dar certo.

Clove apertava a mão de Cato o tempo todo e dizia “não é sua culpa”. (Talvez fosse uma mentira, mas tudo valia). Em um dia estranho, Cato disse de volta as palavras proibidas, enquanto Clove o ajudava a decorar um discurso na sala de reunião. (Ela pareceu mais alarmada do que deveria, mas não era momento de se atentar aos detalhes).

Eles esperaram o Tordo chegar com aquela expectativa temerosa porque tudo podia desabar de novo em segundos.

Levou uma semana.

Até que medo encheu os olhos de Clove quando ela terminou de vomitar pela terceira vez no dia. E, de um jeito estranho, ela não demorou muito pra saber. Seu coração ameaçou abandonar sua caixa torácica, mas ela permaneceu sentada no chão, suas costas apoiadas contra o vaso.

Clove sempre sabia.

Não havia nada passando por sua cabeça. Havia uma mão passando por seu estômago e uma certeza de que ela nunca mais sairia daquele banheiro. E uma memória de uma noite específica forçando passagem em seus olhos. Havia raiva e desespero e incerteza se eles deviam mesmo estar se tocando; nada bom podia sair de noites assim.

De repente, uma batida na porta.

— Clove?

A Capital tinha empurrado em sua garganta todo tipo de coisa por muito tempo, tudo para que sua criação não parasse de funcionar em seus termos. No entanto, Clove sabia. Ela sabia que nunca tinha se sentido assim antes. Tinha alguma coisa errada, e já fazia um tempo.

Suor começou a se acumular em sua testa fria e ela deixou uma pequena palavra escapar de seus lábios secos:

Porra.

Talvez se ela só ficasse ali, quieta, a coisa toda deixaria de acontecer. Seu estômago não cresceria. Cato jamais saberia. Aquela porra de bebê jamais existiria e ele não seria metade Cato metade ela e tudo funcionaria bem e ela não teria que amar mais nada.

Mas.

— Que porra está acontecendo?

Ela sentiu a bile queimar sua garganta no tempo certo para apenas se curvar sobre o vaso e expelir pânico e desespero e... que diabo era aquilo no fundo da sua mente? (ela teria os olhos de Cato e o cabelo dela e tudo poderia funcionar também).

Cala a boca. Você não vai fazer isso.

— É melhor você não estar com a porra da cabeça enfiada na pia, Kentwell, porque aí já vai ser demais.

Clove não conseguia, ela só não conseguia.

— Clove, se você não quer falar, só avisa.

— Eu já vou sair – ela finalmente respondeu, a voz fraca.

Não era hora para aquilo.

— E não dá pra você abrir o caralho da porta?

— Eu já vou sair – Clove prometeu, tentando se levantar mais uma vez. Ela apertou a descarga, lavou sua boca e abriu a porta para encontrar os olhos desconfiados de Cato.

— Que porra está acontecendo? Você está doente?

Ela não contaria nada, não articularia nenhuma palavra. Eles nunca precisaram desse tipo de coisa. Cato saberia cedo ou tarde, a simbiose estava quase completa. Não seria ela quem iria jogar a última pá de terra no seu rosto bonito. Era isso que isso seria, certo? A última pá de terra no rosto de um garoto que ela ainda estava tentando remendar. E não era justo, nada daquilo era justo.

— A comida daqui é uma merda – Clove respondeu, entrando no compartimento. Ele a seguiu, fechando a porta atrás deles. Levou um tempo. Clove quase pôde ver o questionamento se formando na cabeça de Cato.

Você come a mesma comida desde sempre.

— Você está bem, agora? – Cato perguntou de novo. Ela se sentou na ponta da cama, desamarrando os cadarços da sua bota.

— Sim.

— Clove.

— Hum?

— Usa a porra das palavras.

Clove estava com muito medo do que veria nos olhos de Cato. Ela estava muito consciente sobre o tom firme de sua voz e do quão perto ele estava de sua figura e dos seus olhos quase queimando sua pele. Ela se livrou do elástico que prendia seu cabelo e levantou os olhos pra ele.

Alguma coisa voltou a perfurar o peito de Clove. Porque, brevemente, ela assistiu o brilho nos olhos de Cato.

— Eu estou enjoada ultimamente – ela murmurou, e, apesar de suas palavras não carregarem nenhuma emoção, o significado por detrás delas foi apreendido por Cato muito rapidamente. Ele permaneceu em silêncio por alguns segundos, a observando, seus braços cruzados.

— E você acha que pode ser o quê?

Clove sacudiu a cabeça e respirou profundamente, desejando encontrar coisas diferentes nos olhos de Cato. Se ela estivesse realmente vendo esperança e aquele traço ridículo de contentamento que eles deviam ter afogado há anos, eles estariam condenados. Todos eles.

Só havia um jeito de lidar com isso. Ela encarou os olhos cheios de coisas de Cato e garantiu que os seus estivessem vazios.

— Está tudo bem, você não precisa se preocupar com essa porra. Eu vou resolver isso – Clove emitiu firmemente. Cuidadosamente, ela assistiu o semblante de Cato ser atravessado por confusão.

— Como assim?

Ninguém dizia futilidades no Distrito 2. Eles eram proibidos de dizer certas palavras. Ainda. Depois de tudo. Quando o silêncio ficou muito comprido e a única coisa que Clove fazia era encarar o chão, Cato se sentou na beira da cama com um ar exausto de uma criança que cansou de brincar.

— Você está grávida – ele constatou, esperando que as palavras se alojassem apropriadamente no entendimento de Clove. E no seu. Contudo, era uma daquelas imagens que não se formavam. Nada devia crescer no ventre daquela garota ao seu lado. Clove era muito divina para carregar qualquer coisa além de seu próprio corpo. Mas Cato continuava a olhando, fixamente, porque sua pele estava muito pálida e ele nunca havia visto aquela confusão de coisas em seus olhos.

E ele sabia, também.

Cato se perguntou se Clove queria gritar. Se ela queria estapear seu rosto ou amaldiçoar toda sua existência por alguns minutos. Ele imaginou que deveria estar sendo uma tarefa complexa, a dela, se ela estava realmente tentando consertar tudo. Durante as últimas semanas, as coisas estavam diferentes, mas ter aquele tipo de coisa acontecendo agora parecia uma piada perfeita porque, a despeito de suas atitudes mais calorosas de agora, eles ainda eram eles e ninguém podia esperar que Cato e Clove dessem conta daquilo.

Cato levantou as sobrancelhas para ela, para avisar Clove que ela já deveria estar tendo alguma reação.

Eles conseguiam ouvir a respiração um do outro perfeitamente. Cato tinha uma estável, calma. A de Clove era irregular, apressada de um jeito muito pouco característico.

— Eles interrompem no hospital. Algum médico da base deve fazer – foi o que Clove finalmente disse, sua sentença cheia de ar.

Levou um tempo, mas ela finalmente juntou a coragem para voltar encarar Cato. Cato coçou o nariz. Clove voltou a olhar pra baixo.

— É isso que você quer fazer? – ela o ouviu dizer, o tom parecendo mecânico, ensaiado.

Deveria ser. Interromper era a última chance que o distrito dava àqueles que não queria doar seus filhos para a Capital, a que era de fato a última escolha antes daquela criança virar um terceiro monstro. Com o pânico cruzando todas as suas fronteiras, a voz de Clove se tornou apenas um fio aterrorizado, frenético.

— Eu não sei se é seu, eu não sei que porra aconteceu. Só não... Isso não está certo, não queira mexer com isso, Cato, isso não vai dar certo.

Clove esperou ansiosamente a resposta de Cato. Ele, contudo, ignorou metade do que ela disse. Ele sabia bem. Não havia nenhum jeito daquele bebê não ser dele, ele sabia bem como as coisas funcionavam entre Clove e seus clientes. E ele também sabia que era diferente do que acontecia entre eles, do que acontecia centenas e centenas de vezes até aquela ocasião.

Cato se perguntou por quanto tempo suas mentes estavam planejando aquela última transgressão.

Qualquer coisa que fosse dela era inevitavelmente dele. Sangue e veias e pecados e bebês, aparentemente.

— Está tudo bem, Clove. Se você não quer, tudo bem.

Mas o tom dele ainda tinha muita dor, seus olhos ainda estavam muito cheios, seu toque ainda era muito suave e Clove... Clove via muitas coisas. Os olhos azuis e o cabelo escuro, seu legado sendo carregado e as mãos gordinhas que Gaia tinha possuído uma vez.

— Por que porra essa merda tinha que acontecer agora?

— Eu sei lá – Cato ainda respondeu. Ela mal podia acreditar nele, na sua calma, na sua tranquilidade frente àquele tipo de tragédia. Devia ser os remédios, porque Cato andava muito calmo naqueles dias.

— Não! Cato, se liga! Você viu a merda que eu fiz com você, você consegue imaginar...?

— Eu fiz merda com você, também – Cato disse, em tom de consolo, erguendo as sobrancelhas. Contudo, a verdade brutal era que Clove não era ruim com crianças, não do jeito que as pessoas esperavam que ela fosse. Claro, ela não ficava exatamente confortável ­ao redor delas, mas ela também não era um desastre anunciado, porque ele tinha visto todas as vezes que ela tinha conversado com garotinhos quando era uma celebridade da Capital e o jeito que ela era muito cuidadosa com Gaia desde sempre.

Mas Clove ainda estava em pânico e ela só pôde olhar para ele por algum tempo, respirando profundamente. Ela queria outra pessoa com aqueles olhos, ela queria que Cato cumprisse seu destino, porque ela podia vê-lo fazendo isso com muita clareza. Mesmo assim...

— É diferente – Clove quase rosnou. Ela queria que Cato soubesse que ela ia adorar qualquer coisa que fosse uma metade deles dois porque eles dois, juntos do jeito certo, eram perfeitos, e que ela não ia suportar que essa metade perfeita não adorasse ela de volta. Respirando profundamente em suas mãos suadas, Clove pensou que se Cato soubesse de verdade que ela não merecia adoração, muito menos amor, ele iria entender o porquê daquele medo estar assolando sua garganta.

Clove sabia que eles estavam tentando, mas que certas coisas não poderiam ser apagadas. A metade perfeita teria metade dos genes de cada um deles e os genes deles contavam todas as histórias erradas. E nada que pudesse ter mãos gordinhas e pequenas que nem as que Gaia teve um dia devia saber nada sobre coisas erradas.

— Vamos dormir – Cato decidiu dizer. Clove o seguiu, com o mesmo semblante franzido, o mesmo olhar distante. Ele não disse mais nada. Eventualmente, Clove se virou e o encontrou encarando o teto, sem nada no rosto.

Depois de algumas horas, eles dormiram.

Cato sonhou com Clove e seus dois rabos de cavalo enquanto eles cresciam na Academia e seu sorriso de outro mundo e ele pensou que gostaria de ter outra pessoa com tudo aquilo que ela tinha. A pessoa seria como ela conseguia ser às vezes e ela conversaria com ele mesmo sabendo que ele estava destruído. Ela nunca teria medo dele. Ela teria sardas.

Quando Cato acordou no meio da noite, ele ficou triste por tê-lo feito antes de conhecer essa pessoa. Na vida real, no meio do quarto escuro, ele sacudiu a cabeça, coçou o nariz. Ele encarou o teto, se forçando a não encarar o estômago de Clove porque ela estava sempre certa e eles ainda estavam fodidos demais para mexer com aquilo.

Clove sonhou com um lago muito claro. Às vezes, durante as noites difíceis, ela mergulharia nele antes de acordar e ver que tudo estava tão certo quanto o possível. Naquela noite, ela permaneceu na margem. Ela tocava o colar e ouvia uma voz infantil (Gaia?) (a outra pessoa?) que perguntava de novo e de novo “você não me ama?”. Ela respondeu “eu amo”. Uma mão pequena apareceu e Clove acordou ensopada de suor.

Quando Clove acordou, ela não sentiu nada ruim.

Ela sabia que não devia fazer isso, que ela poderia estragar aquela criança e transformar ela em um terceiro monstro, mas Clove era egoísta e Clove sempre tinha querido tudo aquilo que não podia ter.

Ela se virou para Cato, que já estava a observando.

— Eu quero ela.

Seu tom era seco, quase exigente. Clove estava com um pouco de raiva de si mesma porque aquilo ali sim era um desastre anunciado.

— Você quer? – ela perguntou objetivamente, na esperança de que sua intransigência fosse esconder a hesitação.

— Quero – Cato respondeu, muito rapidamente, assentindo com a cabeça. Um sorriso se insinuou em suas feições porque ele também via algumas coisas. Para alguém, eles seriam novos e certos. Ele tinha certeza que Clove jamais iria ignorar o bebê como seus pais haviam feito com ela e Deus proibisse que ele tivesse qualquer coisa parecida com seu pai. Ele iria repetir tudo certo que sua mãe havia feito. Ele ia cantar e ensinar e colocar ela em suas costas.

Cato ainda queria alguma criança que fosse sair do corpo dela, todo cheio de pecado e o toque errado de muitas mãos. Clove pensou que era melhor que aquela criança tivesse aquela fé louca dele e que ela pudesse às vezes a olhar como Cato olhava. Ela nunca iria a deixar saber que ela tinha traído seu pai mais vezes do que podia contar e perfeição iria ser criada à força, à custa de mentiras bem planejadas e impecáveis. Cato iria amar ela como se estivesse acabando de descobrir o amor e ela ia se esforçar. Ela iria ensinar como falar a verdade e como o pai dela gostava de ser abraçado quando tudo estava caindo aos pedaços e talvez como cozinhar.

Teria que funcionar. Era a última chance deles. Talvez tudo pudesse ser bem remendado, bem amarrado. Cato e seus olhos legais e ela e seu cabelo perfeito e força e perfeição e eles iam aprender a amar de uma vez e tudo ficaria certo.

Eles nunca tomavam jeito, nunca teriam juízo e sempre tomariam as decisões erradas, aparentemente, porque Cato ainda ficava fora de órbita, às vezes, e eles estavam muito fodidos desde sempre e, mesmo assim, eles iriam ter a porra de um filho.

E havia mais uma coisa errada, uma que não podia ser consertada ou escondida: eles estavam no meio de uma guerra e guerras não combinavam muito com ícones que por um acaso estavam grávidas.

Mesmo assim, tudo foi muito bem escondido. Nem Gaia e Teo ficariam sabendo até aquela coisa ter fim. Clove era toda sorrisos escusos e empenho para colocar um fim rápido àquela história. Saber que um segredo estava crescendo em seu ventre era uma coisa poderosa; Clove criou estratégias mirabolantes e apareceu em todos os vídeos que o 13 pedia. Cato fez visitas e discursou para muitos grupos.

E o Tordo aterrissou na base acompanhada de toda uma comissão. Lyme os recebeu na porta e Cato e Clove deviam fazer o mesmo, estendendo braços rígidos para cumprimentá-los e mantendo seus maldizeres bem guardados na ponta de suas línguas. Clove reconheceu alguns rostos de sua breve estadia no 13 e assistiu friamente enquanto Ivory Callowell sacudia vigorosamente a mão de Cato, todo grato por não precisar se sentir culpado por sua morte.

Não havia nenhuma função real para suas presenças ali. O distrito já havia sido conquistado pelos dois deuses parados ao lado de Lyme, jogando olhares frios para a comitiva estrangeira. Contudo, o relacionamento entre o Tordo e seu amante telessequestrado estava dificultoso e Coin precisava mandar uns dos seus para garantir que o 2 não estava apunhalando suas costas.

E, claro, havia o problema da Montanha.

Por uma semana, então, Katniss caminhou a esmo pelo 2, acompanhada de guardas e de câmeras e dos olhos desdenhosos de Cato e Clove, que eram chamados a estrear nos pontoprops vez ou outra, se saindo muito melhor na frente das câmeras do que Everdeen, que não conseguia realmente parecer confortável ao redor deles, se virando bruscamente toda vez que via um deles adentrar um cômodo.

— O que vocês costumam fazer aqui? – ela perguntou, um dia, enquanto eles passeavam pela Arvina no mais absoluto silêncio.

Katniss não era realmente a presença perigosa e espiã que a presença do 13 ali anunciava, mas eles também não confiavam demais em ninguém que havia saído viva de duas arenas.

— Um monte de coisa – Clove respondeu, calculadamente. – A gente faz discursos, convence as pessoas a lutarem pra você... Esse tipo de coisa.

O outro que deveria estar ali, Clove ponderou, enquanto Katniss mais uma vez caía em um silêncio desconfiado. O Mellark seria melhor naquilo tudo. Pelo menos seria menos constrangedor.

— Por quê, Katniss? – Cato perguntou, de repente, quase rindo. Clove o dispensou um único olhar frio porque a última coisa que eles precisavam era que ele voltasse com suas gracinhas depois que Katniss tinha o dado a porra da imunidade. – A gente não está te entediando, está?

Contudo, para suas surpresas, a garota só deu de ombros, sem sequer se dar ao trabalho de negar. Clove se viu forçada a rir um pouco, sacudindo a cabeça para a transparência sonsa e descarada de Katniss Everdeen.

Eles apresentaram Katniss para os rostos admirados dos aldeões e assistiam enquanto ela caçava na floresta em que eles haviam conseguido seus postos como voluntários nos Jogos. Katniss disparava flechas e derrubava coelhos e Cato encarava o estômago de Clove. Eles testemunharam a silenciosa mudança de postura do Tordo para com eles. Ela passou a ficar de costas para eles. Ele sorriu suavemente quando ouviu Cato xingar baixinho um dos secretários de Coin. Ela se sentou junto com eles na hora do almoço para que pudessem partilhar uma refeição absolutamente silenciosa e constrangedora, Gaia encarando Katniss de canto de olho o tempo inteiro.

E Katniss observou com olhos atentos Cato deixar sua porção de sua comida para Clove, que a devorou muito rapidamente para alguém com suas compleições. Ela assistiu enquanto Cato balbuciou algumas palavras para o estômago de Clove antes de ter seu rosto empurrado pra longe.

E então chegou o dia em que um dos secretários de Coin pontuou a demora na conquista da Montanha. Outra comissão foi mandada. Uma mais estranha, uma mais dominante. Uma que pisou no solo do 2 como se possuísse todas as respostas. Uma que trouxe um garoto do 12 com ela, um que os olhava com muito desprezo para ser ignorado, puxando Katniss sempre que ela se aproximava deles.

Então eles se sentaram em lados opostos de uma mesa comprida, como se estivessem sendo inquiridos pelo resto de Panem. Muito defensivamente, Lyme listou o progresso que haviam feito. O sangue de seu próprio povo que havia sido derrubado como prova de suas conversões.

— Então eu afirmo que é uma questão de tempo até conseguirmos conquistar a Montanha. A Noz, como vocês se referem – ela concluiu, pousando suas mãos sobre a mesa.

— Tempo que não temos – um deles pontuou arrogantemente.

— Nós temos evidência de que a cada dia o poder da Capital sobre a Montanha é enfraquecido. Nós recebemos a cada dia mais trabalhadores de lá – havia um pouquinho de orgulho na voz de Lyme e um pouquinho de afeição quando ela jogou um olhar na direção de Cato.

— Manter a Capital afastada dos distritos demanda muito esforço dos nossos. Nós precisamos tomar a Noz imediatamente ou corremos o risco de perder nosso avanço – Beetee Latier argumentou.

— É claro – Clove disse, sua voz muito firme. – Mas nós temos gente infiltrada lá e nossa melhor chance é esperar e confiar que eles sabem o que estão fazendo. Eles sabem sobre nosso prazo curto, eles estão trabalhando duro para incapacitar a influência do Snow lá dentro.

— E é pra gente acreditar nisso? – o garoto do 12 finalmente dirigiu a palavra a ela depois de horas a encarando. Clove cravou o olhar em sua figura desafiante, que a fitava com olhos de cor cinza idênticos aos de Katniss. Olhos cheios de ódio. — Vocês querem que a gente acredite que a Noz vai simplesmente se render por conta de um discurso que um de vocês fez? Como que a gente sabe que isso não é uma estratégia para enfraquecer o nosso lado? Já tem um tempo que vocês estão esperando.

Alguns segundos de silêncio penderam, enquanto todos reconheciam a tensão de semanas ser colocada em palavras bruscamente. Cato suspirou um riso, se espalhando mais na cadeira.

— A gente está do mesmo lado – Clove sibilou. – Então é, é pra vocês acreditarem nisso.

— Eu voto por incapacitar a Noz. A gente provoca uma avalanche, bloqueia as saídas e coloca fim nisso – o garoto declarou para a sala silenciosa.

— Com licença, como é seu nome mesmo? – Clove disse, a voz se alteando levemente. – Que porra é essa, você quer matar todo mundo lá dentro?

— Gale Hawthorne. E eu quero justiça. Não é a mesma coisa que a Capital fez com o 12?

— Eles deveriam ter uma chance de rendição, ao menos – Lyme pontuou, tensa.

— Isso é um luxo que ninguém nos deu quando bombardearam o 12, mas vocês todos são muito mais simpáticos com a Capital aqui.

— Hawthorne, não é? – Cato perguntou, entredentes. – Porra nenhuma que você vai mandar matar esse tanto de gente do meu distrito à toa. Foda-se o que a Capital fez com você, a gente não é a Capital, moleque. Isso já devia ter ficado claro.

— Você fala isso agora, mas não teve problema nenhum matando aquele tanto de gente pro Snow, não é, Hadley?

Katniss soltou um grito abafado; uma cadeira foi derrubada, o punho de Cato acertou o rosto de Gale e os dois foram ordenados a se retirarem da reunião por Lyme, altivamente se levantando de sua cadeira para fazê-lo. Katniss seguiu seu amigo. Clove trocou um olhar com Cato e lá permaneceu, a despeito dos olhares estranhados dos demais.

— A gente não devia fazer isso. Se as pessoas nos verem bombardeando os nossos, nós colocamos em risco a lealdade que conseguimos até agora. Eles vão virar as costas para nós e voltar para a Capital.

— Nós levaremos isso em consideração quando formos deliberar sobre a ideia, Clove, fique tranquila quanto a isso – Beetee disse, suavemente, coçando a testa. – Eu acho que deveríamos apresentar a ideia a Coin. Deixar que ela a aprecie e tome a decisão final.

Todos os outros concordaram, temerosos com o poder da tirana sutil que dominava o 13. Clove percebeu quando Lyme suavemente fez que não com a cabeça quando ela abriu a boca para protestar mais uma vez.

Eles não sabiam nada sobre seu distrito e, mesmo assim, se sentavam em uma sala bem arejada e sentenciavam as pessoas de lá daquele modo asséptico. Clove pensou em procurar o tal do Hawthorne e colocar fim naquilo, pensou em arranjar alguém que pudesse avisar as pessoas na Montanha, pensou em assustar todos aqueles homens fracos e cheios de poder que permitiam que coisas como aquela fossem feitas em nome de uma vingança que sequer devia ser destinada a eles.

Contudo, Clove também pensou naquela pessoa que queria conhecer e que só chegaria a viver de verdade se ela não fosse morta com uma acusação de traição. E ela pensou, por último, no que seria feito se ela nascesse num mundo com aquela cara. Com a Montanha os lembrando da Capital, com Cato sendo ordenado a matar pessoas para todo o sempre e ela vomitando porque se lembrava bem demais de todo mundo que havia tocado nela e pagado para isso.

E tudo aquilo devia ter um fim, independente do custo.

A Montanha significava muito. Sempre havia significado. Ela era o poder da Capital tiranamente se erguendo sobre suas cabeças, justificando suas crianças sendo permanentemente destruídas, justificando a violência estranha que pairava sobre as ruas do distrito, justificando o não uso da palavra amor naquelas terras. Então Clove conseguia se entender quando dizia que eles deviam destruir tudo aquilo, colocar tudo por terra.

Mas Clove também não podia deixar de se entender quando temia que eles também decidissem os colocarem por terra, os símbolos do poder da Capital que eram, todos gloriosos e imponentes e cruéis.

Que nem a Montanha, sem nome por razões muito primitivas.

(Mas eles não podiam mais ser destruídos de verdade, agora. O legado seria carregado).

Clove sabia que odiava seu distrito demais para se revoltar de verdade com toda aquela ideia. Ela acordava ensopada de suor toda noite porque seu distrito tinha cuidadosamente a entregue como oferenda. Seu bebê poderia odiá-la porque suas mãos eram manchadas de sangue, pois seu distrito tinha financiado sua crueldade desumana. Cato provavelmente estava quebrando alguns ossos de sua mão naquele momento porque seu distrito tinha alimentado a besta dentro dele.

Ela se resignou, como sempre, com as vozes que diziam coisas opostas e acenou com a cabeça quando o homem do 13 passou por ela para dar as ordens.

Então Clove silenciosamente assistiu enquanto a Montanha caía por terra, escondida na base para que sua imagem não fosse associada àquela armadilha traiçoeira. Lyme permaneceu ao seu lado. Enquanto as pessoas do 13 apontavam suas armas para as pessoas de casa, Cato se juntou a elas, maxilar cerrado, olhos escuros e consternados.

— É melhor assim – Lyme alegou, desviando o olhar da janela. – É melhor que isso acabe logo.

E era assim que o mundo que eles conheciam acabava, mesmo. Com olhos de vidro, eles observaram seu povo ser condenado, como deuses que puniam os mortais com pesar e um prazer quase sádico.

De qualquer forma, era melhor que eles providenciassem um mundo novo para aquela pessoa nova conhecer.

Katniss os encontrou na margem da floresta no dia em que deixou o distrito.

— Eu sinto muito – ela emitiu, depois de correr uns segundos para alcançá-los.

Tudo que Cato pôde fazer foi dar de ombros e sussurrar um “aham”, mas Clove manteve seus olhos pregados na figura simples do Tordo.

— Você sabe que a gente não é a Capital, não sabe, Katniss? – foi o que ela disse. – A gente se confunde algumas vezes, mas não é assim que funciona.

— Eu sei – Katniss respondeu, sua voz firme, seus olhos consternados. – Eu sinto muito mesmo.

— Eu sei.

— Dê tchau pro Gale por mim – Cato disse, encostado contra o tronco de uma árvore.

— Eu vou – Katniss sorriu daquele jeito desconfiado dela, sacudindo a cabeça.

— Não é pra ele voltar aqui, à propósito, avisa pra ele. E meus cumprimentos pro Mellark. Espero que ele... melhore.

— Claro. Eu vou indo, agora – Katniss girou nos calcanhares e começou seu caminho de volta para a base. Ela virou a cabeça e muito timidamente falou, numa voz baixa: – E parabéns. Tomara que não pareça muito com vocês.