Dia vinte e quatro de julho: Com o pó nas mãos de Santeri, Wang voltou, satisfeito, para sua sala. Em breve o problema seria solucionado, mas assim que chegou a sua sala, Brian virou-se para ele e contou-lhe:

— Wang, tem mais uma coisa que aconteceu lá na China.

— Pode falar.

— Uma criança sobreviveu a toda essa história.

— Como?

— Um menino, aparentemente russo, de menos de dois anos, sobreviveu ao envenenamento. Não deve ter ingerido pó suficiente.

— Onde está essa criança, Sanders?— Wang quase gritava com seu subordinado.

— Em um hospital de Kunming, a cidade mais próxima da pedreira.

— Ele está lá na China AINDA?

— Está. Como poderíamos trazê-lo pra cá?— questionou Jonathan.

Wang ficou alguns minutos remoendo o que acabara de ouvir. Havia uma criança sobrevivente e ela ainda estava na China. Se permanecesse lá, talvez os responsáveis pela matança na pedreira a localizariam e a matariam. “Esse menino precisa ser retirado de lá agora”. Decidiu Wang levantando-se da cadeira.

— Rapazes, vou resolver um negócio com a presidência e já volto.— disse a Brian e a Jonathan.

¨¨¨¨¨

Feito isso, dirigiu-se à sala onde estava o delegado de polícia mais poderoso do mundo. O presidente da Interpol, que, no momento era um simpático inglês chamado Richard David Jacobson. Ocupando o posto de secretário geral da instituição estava o canadense Bradley Lee Harrell. Os dois dividiam a mesma sala por questões de praticidade (ideia de Harrell) e se tratavam pelos apelidos “Rich” e “Brad”. Conversavam sobre amenidades quando ouviram batidas na porta da sala.

— Pode entrar.— autorizou Jacobson. Ao reconhecer quem entrava, perguntou, animado.— Wang! O que o traz aqui?

— É coisa séria, Jacobson.

— Hum. Sente-se, Wang. Conte-nos o que é.— disse Jacobson.

Wang contou tudo o que ouvira de seus agentes sobre a pedreira, o que Santeri dissera sobre o pó e por fim a história do garoto sobrevivente. Dissera temer pela integridade física do menino.

— Por mim, tiraria ele de lá agora.— finalizou.

Jacobson virou-se para Harrell, perguntando se o canadense tinha alguma sugestão sobre o que fazer. Logo, o secretário apresentou sua ideia, imediatamente aprovada por Jacobson e por Wang. Então, Harrell colocou-a em prática. Viajou para Paris no dia seguinte, retornando a Lyon três dias depois, com boas notícias na bagagem. Entrou na sala de dividia com Jacobson.

— Olá Brad! Deu certo?— perguntou-lhe o presidente da Interpol.

— Felizmente sim, Rich. Consegui o acordo. Mas há uma condição, nada exagerada.

— Certo. Que condição seria essa?

— Nós poderemos trazer o garoto para a França desde que indiquemos alguém como seu guardião, tutor. Sabe como é, alguém que se responsabilize por ele pelo período que ele ficar aqui. Enquanto isso, o governo Francês tentará devolver o menino à Rússia. Se eles não o aceitarem de volta em dois meses, a criança irá para um abrigo local até ser adotada por uma família francesa. Ou pode ficar com seus tutores, se estes assim o quiserem.

— Perfeito, muito justo. Vamos, primeiramente, usar, no bom sentido, um de nossos agentes nessa tarefa. Amanhã cedo falarei com todos eles a esse respeito. Por favor, comunique isso aos chefes de todos os setores.

— Boa ideia.— aprovou Harrell já enviando as mensagens.

¨¨¨¨¨

No dia seguinte cedo os agentes se dirigiram para uma sala de reuniões pouco utilizada, todos se perguntando qual seria o motivo da reunião. Logo, Jacobson começou a explicar o que a Interpol estava fazendo. Contou a história testemunhada pelos agentes de Wang e no fim, lançou a proposta:

— Decidimos trazer o garoto para cá, por temermos por sua integridade física. O governo francês aceitou abrigá-lo aqui, desde que nós indiquemos alguém para ser o guardião do menino. Harrell e eu decidimos que esta pessoa será um de vocês. Os interessados deverão falar com seus supervisores e Harrell e eu escolheremos o melhor candidato. Vocês terão cinco dias para se manifestar.

Enquanto Jacobson falava, um casal de agentes ficou particularmente interessado na proposta: Santeri e Sofia. Mas não se precipitaram falando com Carlson. Teriam que pensar nas conseqüências de ficar com a guarda do garoto. Em casa, discutiram a ideia.

— É um menininho de menos de dois anos, que sobreviveu àquela loucura toda que você já havia me contado, San. Será que era ele que apareceu no meu sonho aquele dia?

— Vai devagar, Sofia. Não temos ideia da condição de saúde dele, nem de mais nada. Esse encargo pode ser mais pesado do que parece.

— Acho que ele vai ficar no hospital por muito tempo. E talvez ele vá embora em dois meses. Acho que poderíamos sim.

— Eu também, mas e se ele tiver que voltar pra Rússia?

— TALVEZ ele volte pra lá.— Sofia enfatizava o “talvez”.— Aonde você quer chegar, San?

— Se nós nos apegarmos a ele e ele voltar pra lá, vai ser difícil pra nós aguentarmos isso. Queremos ter um filho, estamos quase que obcecados com isso. Ele vai “tapar esse buraco” por um tempo e, depois, quando ele for, o buraco pode ficar bem maior.— filosofou Santeri.

— Entendi. Mas algo me diz que isso não vai acontecer.

— O que não vai acontecer? Nos apegarmos a ele ou ele voltar pra Rússia?

— A segunda alternativa.

— Por que diz isso? E não vem com esse papo de intuição feminina que não cola não.

— Palhaço. Não sei.

¨¨¨¨¨

Quatro dias depois, o casal finalmente decide se oferecer. Comunica a decisão a Carlson.

— Ótimo, venham comigo, vamos falar com o Jacobson.— disse Carlson. No caminho, o chefe do setor de narcóticos pensava no que levou o casal a aceitar o encargo. Quatro anos antes, ao assumirem que namorava, o casal confessara a ele que já pensava em ter um filho. Quatro meses após o fim do “Caso Mackintosh”, Carlson se viu em Gênova, Itália, a terra de Sofia, na cerimônia de casamento dos dois, ocasião em que eles reforçaram a ideia de ter um filho, mas até o presente momento, sem sucesso. Talvez Santeri e Sofia tivessem visto no menino a última alternativa, a saída para a realização do sonho. Queriam adotar o garoto, mas teriam que conviver, por dois meses, com a provável volta do menino para a Rússia, seu país de origem. A frieza de Santeri talvez os ajudasse a superar o fim da convivência. Mal sabia Carlson que Santeri estava mais interessado no menino que Sofia. Logo chegaram à sala de Jacobson e Harrell. Lá dentro, Carlson disse aos dois que seu casal de agentes estava interessado na guarda do russinho.

— Ótimo. Vocês sabem da responsabilidade que estão assumindo. Serão, ainda que por tempo determinado, os pais do menino devendo representá-lo até que se decida o destino final dele. O governo da França está contatando o russo para resolver essa questão e, depois de algum tempo, o menino voltar para lá. Vão procurar por parentes dele, suponho. Estão realmente interessados na custódia do garoto?— disse Jacobson, mais parecendo um juiz da vara da infância e juventude que o presidente da Interpol.

Santeri olhou para Sofia. Então se voltou para Jacobson e confirmou o interesse deles. Feito isso, Jacobson entregou alguns papéis para o casal assinar.

— Temos que enviá-los a Paris para podermos trazer o menino.

— Vai ser a gente mesmo? O senhor não iria selecionar os interessados?— perguntou Santeri pegando os papéis.

— Eu faria isso se existissem outros interessados. Vocês foram os únicos que se apresentaram. Os demais que quiseram assumir esse papel, não tiveram aprovação em casa.— disse Jacobson, chateado.

Depois dessa, Santeri sentiu-se ainda mais interessado no menino. Leu os papéis com Sofia, assinaram-nos e Carlson também o fez, como testemunha. Jacobson e Harrell conferiram a papelada e o segundo remeteu-os a Paris. Logo a resposta chegava: um avião da força aérea francesa fora disponibilizado (com direito a dois médicos para monitorá-lo na viagem) para buscar o menino em Kunming, o governo Chinês, alheio à história da pedreira, autorizara a retirada do menino de seu território. Jacobson passou essa informação a Carlson e a Wang, que, respectivamente, avisou o casal responsável pelo garoto e mandou seus agentes de volta à China.

¨¨¨¨¨

Dois dias depois o avião emprestado pousou e taxiou na pista do aeroporto de Lyon trazendo um menino de quase dois anos como principal passageiro. Ainda inconsciente, foi transferido para a ambulância que já estava esperando-o no aeroporto e logo o menino foi levado para o hospital da universidade de Lyon, onde Harrell conseguiu uma vaga para ele. Brian entregou o prontuário de Alexander em inglês, confeccionado pelo médico que atendeu o menino no resgate, para o médico da ambulância. Lá na instituição, Santeri e Sofia o esperavam, na ala pediátrica quando o viram, deitado em uma maca. O casal apertou as mãos um do outro e seguiram-no pelos corredores até um dos quartos. Santeri falou com uma enfermeira que autorizou a entrada deles. Finalmente o casal pode ver o menino. Pararam, estáticos no meio do caminho ao verem a criança. Sofia, chorando, apertou com mais força a mão de Santeri que lutava para engolir o choro. Alexander tinha o corpo coberto de manchas, estava entubado e ligado a inúmeros aparelhos que monitoravam suas funções vitais e o mantinham vivo. Também parecia ser pequeno para a idade. Media pouco mais de oitenta centímetros e pesava sete quilos. Embora tal visão fosse chocante, o que ocorreu inicialmente com o casal, não trouxe repugnância, nojo pelo menino. Ao contrário, Alexander agora era peça central na vida de Santeri e Sofia. Enquanto isso, alheio ao casal, um jovem médico examinava o garoto. Copiava o prontuário trazido da China e olhava para os monitores. Quando terminou, afagou a cabeça do menino e virou-se. Santeri o achou extremamente familiar.

— Vocês são Santeri Korhonen e Sofia Rossini Korhonen?— perguntou o médico;

— Sim, somos nós.— respondeu Santeri cumprimentando o médico. Sofia enxugou as lágrimas.

— Sou Pierre Lefebvre, pediatra responsável por ele.— apresentou-se o médico cumprimentando o casal.

— Desculpe perguntar, mas você é parente de Thierry Lefebvre?— perguntou Santeri.

— O chefe do laboratório de toxicologia daqui?— perguntou Pierre. Depois da afirmativa de Santeri, terminou de responder.— Sim, sou. Ele é meu irmão.

— Suspeitei. Vocês dois são parecidos.— comentou Santeri.— E o garoto, doutor Lefebvre, como está?

— Sem essa de “doutor Lefebvre”, me chamem de Pierre. Já comentaram isso comigo. Agora, a situação dele ainda está um pouco crítica. Ele está muito frágil. Temos que descobrir o que fez isso com ele. Aqui no prontuário que veio da China fala que ele consumiu arroz com um pó cinza, foi isso mesmo?

— Foi.— disse Santeri.

— E o que havia nesse pó?

— Não sabemos. Estou investigando isso com seu irmão.

— Certo.— disse Pierre.

Nisso, entrou um médico idoso no quarto de Alexander. Olhava com nojo para o menino e perguntou algumas coisas para Pierre em tom repressor. A maioria delas referia-se ao menino, que era a “aberração” “monstrinho” na fala. Santeri teve que se segurar para não bater no médico. Quando ele finalmente saiu, reclamando da Interpol ter internado a criança lá, Sofia e Santeri o olhavam com ódio e o finlandês perguntou a Pierre:

— Quem é ele?

— O diretor do hospital, Doutor François Bouvier, vulgo “Doutor House”. Ele é assim mesmo, sinto muito pelo o que ocorreu.— disse Pierre. Ao ver que Sofia e Santeri começaram a rir, acrescentou.— Não se iludam. Eles só se assemelham na rabugice e no mau humor. Se querem um médico genial, contentem-se com o Doutor House do seriado.— Pierre também ria. Quem apelidara o mal-humorado diretor do hospital de “Doutor House” fora um cirurgião. E agora, todo o corpo médico do hospital, enfermeiros e demais funcionários assim o chamavam pelas costas. Passado esse momento, Pierre virou-se para o casal e disse, sério.— Vou buscar material para coletar o sangue dele, pedir para um neurologista examiná-lo e já volto.

— Tudo bem.— disse Sofia, preocupada. Por que será que Pierre queria que um neurologista o examinasse?

Após a saída de Pierre, o casal se aproximou do leito do menino e ficaram observando-o. Sofia, inclusive, já o chamava de “Alex”. O susto inicial já havia passado. Tudo o que o casal via agora, deitado na cama, era um menininho que precisaria de todo o amor que eles estavam dispostos a dar-lhe para se recuperar.

— Ele é bonitinho, não acha?— perguntou Santeri.

— Bonitinho? Ele é lindo! E se parece um pouco com você, San.

— Você acha, querida?

— Acho, San. Ele se parece com você sim.

O casal se beijou e se aproximou ainda mais do leito do garoto. Agora estava próximo a cabeceira. Sofia pegou uma das mãozinhas dele, começou a afagar seus cabelos, beijou o garoto e aí percebeu a coincidência: Alex vestia uma camiseta amarela.

— Que foi, So?— perguntou Santeri.

— San, olha aqui, ele está de camiseta amarela. Igual ao menino com que sonhei. E ele é loiro, também. A única diferença é que o menino do meu sonho não tinha essas manchas na pele. Espero que elas sumam logo.

— Caramba!— disse Santeri.— Pode ser coincidência, mas...

— Não é, San. Sei que você não acredita nisso, mas pra mim foi, sei lá, um aviso. Esse menino é o filho que tanto queremos.— disse Sofia, debruçando-se sobre o menino, beijando-o de novo e passando a conversar com ele. Disse-lhe que ele era o garotinho mais lindo do mundo e que sempre estaria ao lado dele. Por muito pouco não se intitulou mãe dele. Comovido com o gesto de Sofia, Santeri o repetiu e também beijou o menino. Tal como Sofia, segurou um “papai” ao falar com Alexander.

Pouco depois dessa cena, Pierre entrou no quarto de novo, trazendo um colega, o neurologista. Os dois discutiam se Alexander poderia ser submetido a uma tomografia, o que o neurologista queria, mas Pierre achava que Alexander estava frágil demais para se submeter ao complexo procedimento. Por fim, os médicos acordaram de colocar eletrodos na cabeça de Alexander para monitorar sua atividade cerebral. Quanto à tomografia, essa ficaria para quando o menino estivesse melhor e já tivesse recobrado a consciência.

O neurologista saiu para buscar o aparelho e enquanto isso Pierre retirou o sangue de Alexander para fazer os exames.

— Vou pedir para procurarem por qualquer tipo de substância que cause os efeitos mencionados e também as que estejam fora do padrão, ou com concentração baixa demais ou alta demais.

— Certo. E eu e o Thierry vamos nos empenhar pra descobrir os componentes daquele pó. E assim que conseguirmos o avisaremos.

— Certo, muito obrigado.— agradeceu Pierre.

¨¨¨¨¨

Enquanto isso no laboratório da polícia de Lyon, Thierry, alheio ao que ocorria no hospital, tentava descobrir o que compunha o pó. Já testara diversos compostos e nenhum resultado foi obtido. Ainda estava na estaca zero. “Isso vai dar bem mais trabalho do que eu pensava. Nada reage!” Pensava Thierry chateado.

No hospital, Santeri e Sofia despediram-se de Alexander com o coração apertado. Tinham de voltar a Interpol. Beijaram o menino e disseram que voltariam logo. Ao chegarem ao prédio da Interpol, foram abordados por Harrell:

— Está tudo bem lá no hospital?

— Sim, Harrell. Alexander será submetido a alguns exames, ainda está inconsciente. Lá também tentarão descobrir o que o intoxicou. Enquanto isso, Thierry e eu continuaremos a analisar o pó para descobrir seus componentes.— disse Santeri.

— Ótimo, Korhonen. Venham comigo. Jacobson quer conversar com vocês.— disse Harrell já caminhando em direção a sala que dividia com o presidente da Interpol. Santeri não gostou muito da ideia pois achou que teria que repetir sua última fala para Jacobson, mas não fora esse o motivo que por que Richard David Jacobson queria falar com eles. Era apenas para avisá-los que agora, teriam horário livre e poderiam se ausentar da instituição para ficar com Alexander e também, para que Santeri pudesse analisar o pó no laboratório.

A análise já ocorria há uma semana e os bioquímicos nada haviam conseguido.