Fábulas de Sangue
Branca de Neve
Bigby estava falando com ela. Era a única coisa que Branca podia confirmar. Sua voz era distante e ecoante, como se não pertencesse a sua boca, mas a um ventríloquo as costas dele. Mais alguém surgiu em cena e essa pessoa era mais contundente e objetiva em fazer-se escutar. Pegou-a pelos ombros e sacudiu três vezes seu corpo anestesiado.
— Branca! — sua irmã-gêmea perguntava — Branca! Você está bem? — ela repetia, preocupada. — Fale conosco! Fale algo, pelo amor de Deus!
— Eu... — a vice-prefeita tentou se pronunciar, entretanto seus músculos pareciam estar em hipóxia.
Bigby retornou ao foco da conversa. Pediu licença a Rosa Vermelha e se aproximou, tocando-a gentilmente, as duas mãos emoldurando seu rosto. Um gesto carinhoso e direto, que ela nunca se lembrou de ter recebido do Lobo.
— Temos de nos concentrar aqui, tudo bem? Depois terá tempo de digerir tudo isso, mas agora o importante é sairmos íntegros após a morte de Príncipe Encantado.
A morte do Príncipe Encantando. A constatação assentou-se sobre a mente dela igual a uma navalha rasgando a pele: intensa e profunda. E junto com o corte vinha o sangue. Sangue em jorro. Litros e litros de sangue. Impossível de ser contido.
— Não entendo... — finalmente arfou.
— Acho que sei como poderão escapar daqui! — uma terceira voz introduziu-se.
Era Garoto Azul. Ágil e ressabiado, entrou no cômodo e fechou a porta suavemente atrás de si. Branca observou ao redor. Tentando se localizar, reconhecer o lugar, embora soubesse que já havia estado nele em alguma outra vez. Então olhou a si própria, o bustiê do vestido totalmente tingido de vermelho. Náuseas subiram até sua garganta e ela sentiu-se zonza.
— Como vai ser? — Bigby deixou de lhe dar atenção para falar com Garoto Azul. O rapaz ergueu o braço, mostrando à gaiola prateada e seus dois canários de estimação lá dentro.
— Passarinhos? — o Lobo franziu o cenho, incrédulo. Rosa deu uma risada debochada — Sabe em que situação Branca de Neve e eu estamos enfiados para você vir com gracinhas?
— Xerife — o assistente ainda o chamava pelo seu respeitoso título — Não são passarinhos. É mágica. Na verdade trata-se de grifos voadores! — revelou orgulhosamente.
— Porque haveria de fugir? — Branca conseguiu dizer. Usou um tom de voz enérgico o suficiente para que sua irmã, Bigby e o seu assistente voltassem à cabeça para ela.
— Estamos encrencados. — Bigby foi enfático.
— A comunidade toda das fábulas de Nova York acabou de ver o prefeito morrer. — Rosa emendou com urgência — Uma morte em circunstâncias curiosas, logo após sua ex-mulher, e inimiga declarada, ter lhe passado a coroa do Rei do Baile.
— Não seja ridícula. Eu jamais, jamais faria algo contra...
— Como vamos explicar a todos que minhas ameaças de morte ao Sr. Prefeito, eram apenas ameaças? Isso aconteceu não faz nem um mês. Sem contar que foi na frente de algumas testemunhas. E a discussão, Branca? O que dirão da discussão entre vocês dois momentos antes do assassinato? — Bigby apontou os fatos.
— E você? O que está fazendo aqui? — ela perguntou acusatória, irritada e esgotada demais para pesar suas palavras.
— Vim porque queria saber se estava tudo bem com você e para lhe informar de algumas novidades. — disse ele soturnamente — Ter de salvá-la não estava nos meus planos.
— Me salvar? Eu não fiz nada!
— Nós sabemos, irmã. — Rosa aproximou-se, apertando-a consolativamente pelo ombro — Não somos os bandidos, acredite. Você está muito tensa e em choque. Mesmo ele sendo um cretino, ninguém nesta sala dúvida de seu caráter e suas ações. Aliás, acho que um banho e troca de roupa lhe faria bem.
— Não há tempo para isso. — alertou Garoto Azul. — Nos corredores, o Lorde Fera já está mobilizando algumas fábulas para procurar pela vice-prefeita. Não vai demorar a eles encontrarem vocês. Neste momento, já devem estar arrombando o apartamento da Srta. Branca.
— Então vamos pensar logo. Para onde iremos? — perguntou Branca, começando a voltar a raciocinar. Já se lembrava aonde estavam: o apartamento de Garoto Azul.
— Podemos chegar ao telhado pelo elevador de serviço. De lá vocês pegam os grifos e partem.
— Não sobre isso. Para onde iremos quando escaparmos daqui?
Rosa Vermelha coçou a cabeça pensativa e lançou sua sugestão aos demais.
— E se formos para Fazenda?
— Eu não posso ir para lá. — Bigby reagiu.
Branca, que estava sentindo o arrependimento dominá-la por ter falado com o Lobo acusatoriamente, buscou uma solução para o problema.
— Existem leis que podem ser burladas na Fazenda. A atual proprietária, Rosa, pode nomear alguma parte do terreno como não sendo da Fazenda, e desse modo, Bigby pode pisar lá.
A conversa foi interrompida por sons frenéticos de passos e vozes alteradas. A agitação vinha do andar superior. Branca teve a impressão de escutar a voz de Lorde Fera escapando pela janela superior e chegando até a deles.
— Acho que vocês podem discutir os detalhes andando, não? — Garoto Azul disse, apreensivo — Não quero ser chato, nem inconveniente, mas eles realmente estão se aproximando e logo virão bater no meu apartamento. Na verdade, só não vieram aqui ainda porque o atual xerife é um pouco devagar e não se tocou de vir investigar logo com os amigos da vice-prefeita seu paradeiro.
Bigby concordou, tomando a dianteira do grupo na fuga. Abriu a porta suavemente e esticou o pescoço para fora, certamente tentando identificar sons e odores que nenhum mais do grupo conseguiria a uma distância razoável. Constatando que estariam seguros, por hora, fez um gesto vago para que o acompanhassem até o fim do corredor, no qual pediram o esquecido elevador de serviço.
Enquanto subiam os andares, Rosa teve mais ideias.
— E então, descobriram o que queria dizer aqueles escritos nas paredes do esconderijo do Formiga?
Bigby, que estava um pouco afastado de Branca, e não a olhava nos olhos, se pronunciou:
— Era justamente disso que vim falar. Primeiramente, aquilo são dizeres do vale. Originários das línguas antropomórficas da região. O Contador de Histórias disponibilizou um anagrama de como ler cada caractere como nosso meio de comunicação equivalente. Não é difícil. Sobre o que quer dizer, é aqui que está. É um encantamento muito potente para abrir portais. Agora, sobre a lenda do Perdiz Vermelho, vocês ficarão chocados em descobrir que no fim o Falcão... — parou de falar no meio do caminho, porque o elevador deu um solavanco.
— Esse elevador tá bem velho. — justificou Garoto Azul.
Tensos as portas finalmente abriram. Saíram a passos rápidos chegando ao telhado. Lá Garoto Azul recitou suas palavras ordenadas pela pessoa que lhe deu o presente e os pássaros viraram elegantes grifos. Branca e Rosa montaram em um, Bigby em outro. Garoto Azul foi convidado a juntar-se a eles, mas preferiu não ir, dizendo que ficaria de espião para Branca sobre as coisas que aconteciam ali e quem matou realmente o príncipe.
Os animais levantaram voo e como a noite era nublada procuraram andar acima das nuvens para que os mundanos não os vissem. Logo as luzes da movimentada Nova York foram se distanciando e espaços cada vez mais remotos preenchidos por total breu noturno ganhando terreno abaixo de seus pés.
Rosa percebeu que estavam próximos a entrada da Fazenda, como tutora do local sentia as energias mágicas daqueles hectares, e anunciou a irmã que iria aterrissar. Bigby as seguiu em cada passo.
Os dois elegantes grifos pousaram com suavidade sobre uma elevação no meio da campina, a pouco mais de um quilometro de distância da porteira da Fazenda. Todos desmontaram dos magníficos animais e Rosa Vermelha anunciou seu plano de ir quebrando feitiços de proteção para Bigby conseguir atravessar o local sem a magia o captar. Uma tarefa minuciosa, que poderia levar um tempo.
— Tudo bem, irmã. Vá executando a quebra da mágica que nós aguardamos aqui. — disse Branca de Neve. A outra despediu-se dos dois, montou em um dos grifos outra vez e os deixou na noite silenciosa da planície circundante.
Branca sentou-se numa pedra lisa encrustada na grama e levou as mãos a cabeça. Respirou fundo, sufocada pelos acontecimentos recentes, e sentiu o fedor do sangue de seu ex-príncipe impregnado nela. O Lobo continuou de pé, pensativo, encarando a lua que aquela noite estava incrível.
— Me desculpe por mais cedo, Bigby. — ela acabou por quebrar o silêncio.
Bigby caminhou ao seu encontro e sentou-se na grama orvalhada.
— Não se preocupe comigo... Como você está se sentindo? — perguntou gentilmente.
— Péssima. Faz muito tempo que o detesto com todas as minhas forças, mas nunca desejei a morte dele.
— Existem diversos tipos de fábulas, Branca. E você é a do tipo que jamais desejaria a morte de alguém, nem que fosse por uma antipatia milenar. É importante ter em mente que não teve nada a ver com isso.
— Não entendi o que houve ali... Tudo aconteceu bruscamente. Ele se liquefez diante dos meus olhos.
— Como o Perdiz-Vermelho. — ele lembrou-lhe.
Branca de Neve olhou para o xerife encucada.
— Que quebra-cabeça é esse que estamos tentando montar? Cigarra, Formiga, Príncipe Encantado, essa lenda...
— Eu descobri algo. O Falcão da lenda do Perdiz é o mesmo do Falcão Valente. Ele era filho da vida e da morte. Podia matar seus inimigos com o capricho de um pensamento e dar a vida também. Aquilo que aconteceu com o prefeito é mágica das nossas Terras Natais. Mágica antiga igual a que fábulas poderosas como o Falcão poderiam usar... impossível de se realizar por todos nós que sobrevivemos e viemos para o lado de cá. Nem Totenkinder conseguiria essa proeza.
— Mas o que tudo isso quer dizer? O Adversário está vindo para o lado de cá, finalmente? É isso? Começou aniquilando o representante de Woodlands?
— A morte dele não foi um alerta, foi uma punição. Não se esqueça que o prefeito estava metido com algo secreto que envolvia a Cigarra, e que, por sua vez envolvia o Formiga, que tem aquela passagem secreta em sua casa relacionando um conto macabro, sobre uma ave que morre de modo igual ao Príncipe.
— O que será que todos andavam tramando... — ela refletiu soturna — Uma passagem para as Terras Natais na Fazenda. O que tudo isso quer dizer?
O ex-xerife fitou o horizonte remoto como apenas uma noite no campo poderia ser e apresentou sua proposta:
— Andei trabalhando essa semana com um velho dicionário ambulante, o Contador de Histórias. Juntos conseguimos transcrever cada fonema dos dizeres naquela passagem secreta como eram ditos no idioma do vale. Se aquilo é realmente um portal ele vai se abrir, e se abrir, eu tomei minha decisão.
— Bigby... — ela encarou o Lobo chocada. Sabia o aquilo significava, que seria impossível convencê-lo do contrário, e pior, de que provavelmente não havia outra saída
— Não há lugar para mim aqui agora. Essa noite provou isso. Estou cansado de fugir. É tudo ou nada, Branca. Vou dar um jeito com Rosa Vermelha de te manter segura e escondida, confie em mim. Mesmo partindo vou assegurá-la o máximo que...
— Ei. — a princesa inclinou-se enérgica na direção do Lobo e cobriu a boca dele com o dedo indicador. O suave contato, o segundo mais íntimo que eles tiveram em uma noite, eletrizou o corpo de Branca de Neve — Vou com você. — disse, de início incerta, então repetiu para se acostumar com o peso da repentina decisão — Eu vou com você!
Ele tocou em seu pulso, dedos quentes, afastando sua mão dos lábios dele e sussurrou com rouquidão:
— Será perigoso. Tudo estará diferente. Não são mais nossas terras de contos de fadas.
— Eu sei. — retorquiu Branca notando que sua proximidade do Lobo a fizera tão temerária quanto ele.
Bigby deslizou seus dedos do pulso para o antebraço da alva princesa. Mais uma aproximação inédita em suas vidas imortais...
— Pronto! Bigby pode passar agora! — exclamou uma terceira voz que os assustou para valer.
Branca de Neve ergueu-se em um salto como reação. O Lobo pigarreou como se os séculos de tabagismo finalmente tivessem lhe cobrado o preço. Rosa Vermelha preferiu perder a piada e fingiu não percebeu que um clima muito estranho rondava sua irmã delicada e o bruto Lobo Mau.
— Como estão as coisas na Fazenda? — quis saber Branca.
— Tudo silêncio. Todos dormindo. Tome, trouxe uma muda de roupas minha para você trocar por esse vestido ensanguentado.
— Vestirei na casa do Formiga. Vamos indo.
***
Rosa ficou atônita quando descobriu que estava nos planos de sua irmã seguir Bigby para as Terras Natais. Branca de Neve conhecia de cor as expressões dela e poderia apostar que a gêmea achava que essa coragem nunca faria parte de sua personalidade cautelosa.
Enquanto o Lobo examinava o fosso secreto do Formiga, ela trocava de roupa rapidamente. Vestiu a calça jeans e a camisa amarela que Rosa lhe forneceu, e limpou um pouco do sangue que respingara em seu pescoço com a ajuda de um pano molhado. Trocada desceu para o fosso junto com Rosa onde se uniram a Bigby. Ele já havia raspado todo o musgo no local onde a inscrição estava entalhada.
Estavam prestes a recitar as sílabas do arcaico idioma quando Reynard, a raposa, apareceu ofegante e os encarou de cima do fosso:
— Rosa! Há faróis aproximando-se. Acho que é a caminhonete de Woodlands.
— Droga! Eles foram rápidos em somar dois mais dois. — Bigby ruminou.
— E agora? — Branca ficou imediatamente insegura.
— Agora eu vou lá em cima inventar uma desculpa para ter chego tão rápido aqui e não saber do seu paradeiro.
— Coloque a culpa em mim. Fale que viu eu fugindo com a vice-prefeita. — o ex-xerife elaborou.
— Boa! — Rosa pendurou-se na corda para subir, mas hesitou um minuto, voltou e abraçou a gêmea com força — Se cuida, por favor.
— Farei o melhor que puder. — respondeu a outra, receosa.
— Cuide dela, Lobo! — exigiu Rosa e deu-lhes uma piscadela.
Ao sair, trancou o buraco arrastando o baú para seu lugar de origem. Na escuridão daquele local, Bigby acendeu a lanterna de seu velho celular e pediu para Branca iluminar as palavras enquanto eles as identificava e recitava.
— Mis’querove desroi Mis’ enerve...
Pareceu passar uma eternidade para que alguma coisa acontecesse. A luz do celular tornou-se pífia ante o clarão que inundou todo o fosso. Um brilho azulado contornou o portal oculto na pedra e desfez a rocha em bilhares de farelos numa explosão letárgica e flutuante. Branca e Bigby cobriram os olhos, protegendo-se da poeira, que continuou no ar a pairar entre seus corpos. Quando arriscaram olhar, um túnel feérico, de comprimento infinito e múltiplos tom azulados os convidava a adentrar. Suas nuances pareciam até cantar nos ouvidos da princesa.
Magia das Terras Natais.
Lobo Mau pegou em sua mão, apertou contra a sua e com um olhar de otimismo convidou-a a acompanhar.
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