O xerife foi arrancado de um cochilo em sua velha poltrona para atender quem batia na porta. Resmungando, olhou de relance para o relógio sobre o aparador, espantado por já passar da uma da manhã. Esfregou os olhos, girou a chave e deixou que seu inoportuno visitante o encontrasse com cara de “poucos amigos”.

— Oi, Bigby. — era Papa-Moscas.

— O que houve? — uma voz rouca e profunda subiu até sua garganta.

— Hã... desculpe acordá-lo, mas... É que a vice-prefeita, a Srta. Branca, ela mandou buscá-lo.

— Está tudo bem com Branca? — ele se pôs em alerta.

— Sim, acho que sim. — Papa-Moscas respondeu incerto — É que ela está te chamando lá no escritório da prefeitura.

— Já voltou da Fazenda? Achei que só vinha amanhã... Tudo bem, obrigado, Papa-Moscas. Vou descendo já.

Despachando o servente ruivo, Bigby correu para o banheiro para corrigir seu hálito (uma combinação de sono com uísque), alisou os cabelos amarfanhados, ajeitou o nó da gravata e deixou sua toca sombria.

Ela estava na escrivaninha, debruçada sobre livros e pergaminhos, concentrada, enquanto Bufkin voava por entre prateleiras altas, em busca de algo específico.

— Branca. — o xerife caminhou até ela, acendendo um cigarro.

Os penetrantes olhos azuis da mulher encararam-no.

— Fui à Fazenda.

— Eu sei. Garoto Azul me informou quando voltei no fim da tarde. Fui fazer uma ronda extraoficial no bairro. Porque viajou para lá? Novidades sobre a Cigarra?

— Não exatamente sobre ela, mas que provavelmente a envolve. Sente-se, a história é um pouco estranha e sozinha não estou conseguindo ligar os pontos e trazer forma alguma as descobertas.

— Claro. — solicitamente o lobo acomodou-se para escutá-la.

Na investigação bucólica de Branca havia outra fábula envolvida, um esconderijo secreto, letras incomuns entalhadas em paredes de pedra e um suposto portal que levava para um lugar misterioso. Infelizmente, ele não tinha permissão para averiguar pessoalmente tais locais, mas Branca de Neve descrevia com tanta riqueza de detalhes que era fácil para o xerife imaginar o cenário.

— Onde estão esses entalhes que você transcreveu?

Ela lhe passou o papel. O lobo encarou aqueles caracteres atentamente. Eram atípicos, porém seguiam um padrão de frequência que sugeria se tratar de um idioma. Ao contrário da vice-prefeita, ele não encontrou familiaridade nenhuma nos escritos.

— Nunca vi essas grafias antes, sinto muito. — encarava impotente o papel.

Os ombros de Branca caíram de desânimo.

— Talvez eu também não tenha visto. Quem sabe não foi apenas impressão...

— O que ele está fazendo? — apontou para o macaco inspecionando uma prateleira muito alta e longínqua.

— Ah, é por causa disso. — destacou outro papel em cima da mesa e entregou-lhe — Eu achei que poderia ser alguma prova então retirei dos pertences do Formiga. Depois abri para ler, sem a intrometida da minha irmã por perto, mas acabou que era outro balde de água fria. De qualquer forma, pedi para Bufkin procurar maiores detalhes em algum livro, sobre essas fábulas.

O xerife tinha em mãos o triste poema sobre um conto de centenas de anos. Conhecia aquela história brevemente, mas ao ler as estrofes, detalhes voltaram a povoar sua recordação.

No conto, um Perdiz-Vermelho pediu ao Falcão mais cruel do vale para que não o matasse, e nem a seus entes queridos. O Falcão, certamente num dia bom e alimentado, aceitou o pedido, mas estabeleceu apenas uma condição: se, por algum motivo, o Perdiz traísse sua confiança ele recorreria aos deuses falconídeos para jogarem uma maldição mortal sobre o pássaro.

Muitos anos de paz e alegria se passaram naquele vale. Os perdizes viviam prosperamente, sem o pavor natural de seu predador voraz. Certa noite, uma chuva intensa assolou a região e todos os animais estavam entocados para se protegerem. O Perdiz-Vermelho, que se escondia no aconchego do seu lar, foi atormentado por um doloroso lamento. Curioso, enfrentou as intempéries e voou em busca daquele choro. Súbito, encontrou nocauteada por diversos galhos, uma Falcão fêmea, muito ferida e fraca. Comovido, ajudou o moribundo animal levando-o para sua toca e cuidando de seus machucados. Dias e semanas se passaram e a Falcão fêmea se transformou numa hóspede agradável enquanto o Perdiz-Vermelho acolheu-a em sua recuperação. Logo eles acabaram se apaixonando. Entretanto, o destino mostrou-se perverso com casal, porque ela era prometida do Falcão cruel do vale. E assim, sem perceber, o pequeno perdiz havia traído seu algoz, e sofreria sua punição mortal.

— “E o Perdiz se foi, se foi, se foi de pena, se foi de sangue, se foi de dor, se foi de amor”. — Bigby leu em voz alta a última estrofe do poema.

Bufkin pousou suavemente sobre a escrivaninha e olhou para Branca de Neve, desanimado.

— Havia um livro sobre esse conto, eu me lembro, Srta.Branca. Ele tinha capa azul celeste e páginas douradas. Como pude ter pedido...

— Tudo bem, Bufkin. — ela o tranquilizou — Obviamente é só uma poesia que o Formiga gostou de ler.

Bigby coçou o queixo e exercitou seu lado investigativo, refletindo naquilo. O elemento mais importante para solucionar um quebra-cabeça poderia ser algo fútil, que o suspeito se esquecia de se livrar justamente pela banalidade da pista. E havia a intuição. Se Branca retirou aquele objeto de seu lugar de origem, algo chamara sua atenção.

— Amanhã vou falar com Contador de Histórias. Ele é tão explicativo quanto um livro e deve saber tudo sobre o conto do Perdiz-Vermelho.

— Acredita mesmo que isso pode nos levar a algum lugar?

— Confio em sua intuição.

— Obrigada. — ela sorriu bondosamente e apertou os dedos dele. De leve e muito rápido.