Bigby ajudava-a a folhear os livros da pilha que Bufkin ia trazendo para eles. O xerife havia prometido conversar diretamente com a fábula mais entendida dos contos perdidos das Terras Natais, o singular Contador de Histórias, mas parecia não estar com muita pressa para sair do gabinete da prefeitura. Tragava seu cigarro fedorento ferozmente, de modo que um fumante mortal e inveterado sentiria inveja de sua capacidade de exaustão pulmonar.

Era curioso para Branca descobrir o quanto as manias de Bigby não a incomodavam, tivessem elas capacidades odoríferas de impregnarem no seu cabelo e nas suas roupas, ou não. Há muito perdera seu “açúcar” para a vida, e coisas diminutas poderiam encher-lhe o coração de raiva e impaciência. Perto do Lobo, sentia-se tranquila e até segura.

Algo chamou atenção no livro que Bigby averiguava. Ele ergueu o compilado na direção dela, pronto para falar e mostrar algo, mas foram interrompidos com a porta principal abrindo-se num estrondo agressivo.

— Branca! Sua cretina, trapaceira! — era Príncipe Encantado quem surgia, exclamando eloquentemente enquanto avançava a duras pisadas na direção da escrivaninha.

Atrás do prefeito seguia uma comitiva formada por Bela, Lorde Fera e o atônito secretário, o Garoto Azul.

— Ei, olha esse palavreado, meu chapa! — Bigby manifestou-se levantando da poltrona.

O Príncipe repousou um olhar de desprezo no Lobo antes de rodear a escrivaninha para estar ao lado de Branca.

— Fique na sua, xerife! E não sou seu “chapa”, sou seu prefeito!

Bastou um olhar relanceado a Bela para a vice-prefeita saber o motivo da nobre ira do seu detestável ex-marido. Ele descobriu sobre o dinheiro desviado do baile, o que iria para ajudar o hospital ao invés de ir parar em suas gananciosas mãos.

— O que houve prefeito? Acordou com ressaca hoje? — ela continuou sentada, fingindo folhear documentos, somente para irritá-lo.

— Na verdade estou sim. O motivo da minha ressaca é descobrir que você andou armando por debaixo das minhas fuças para roubar dos fundos. Desviando verba da prefeitura para sei lá o que...

— Quem te disse isso? — resolveu provocá-lo mais, fazendo-se de omissa.

— EU DESCOBRI! Não sou o burro que você pensa, querida cretina!

— Tá na hora de parar com esse tom... — Bigby rosnou impaciente jogando o cigarro no chão e pisando para apagá-lo.

— Não se intromete seu cão sarnento. — Príncipe Encantado estava verdadeiramente obstinado para ralhar daquele modo com o xerife, um dos únicos que ele nutria medo na comunidade. Voltou-se para Branca, debruçando-se sobre ela e cuspindo as palavras fervorosamente — Primeiro Totenkinder deixou escapar o quanto, na verdade, estava recebendo para providenciar sua mágica no baile, depois foi fácil pesquisar com nossos outros contratados seus preços para cada serviço e o quanto os valores reais não batiam! Fui falar com nossa digníssima tesoureira, — apontou para Bela, e a sombra imponente do Lorde Fera já estava ali para defender a esposa de qualquer realeza — e humildemente ela me disse o seu plano sórdido de corrupção, arrastando-a contra a vontade para esse esquema.

O bom de conhecer pessoas durante muitos e muitos séculos é saber exatamente como suas ações e reações vão se desdobrar. Branca daria seu braço para leões moerem se Bela houvesse lhe entregado dessa forma vil. A versão mais compatível para o “vitimismo” da tesoureira deveria ser algo como Príncipe Encantado implorando para ela confessar o plano, porque jamais teria ousadia de acusá-la agressivamente com um marido sabidamente feroz e ávido para defender sua amada. Assim, além de Bigby, a segunda fábula que aquele covarde falsário tinha medo, era Lorde Fera.

Branca de Neve pousou os documentos sobre a escrivaninha e encarou brevemente Lorde Fera, Bela, Garoto Azul e o xerife. Usou um semblante sereno, querendo transmitir aos presentes que tudo permanecia em seu controle.

— Ah é! — ela procurou fazer sua melhor cara de deboche ao olhar para o prefeito. Viu o rosto bonito dele contorcendo-se num ódio crescente — Você por um acaso está falando dos fundos arrecadados durante todo ano para, por exemplo, ajudar o hospital mágico ao invés de financiar seu próximo bordel? É disso que estamos falando? De eu ter a decência de tirar o dinheiro das suas cuecas para investir em vida e saúde à nossa comunidade, ao invés de prostitutas e gozadas compradas?

A reação dele foi súbita e ousada o suficiente para Branca de Neve conceber, portanto, ela demorou alguns segundos tentando entender tal brutalidade. Chocada, deu-se conta de estar sendo erguida e pressionada pelos ombros, os pés quase no ar, com a cara raivosa do prefeito a lhe ameaçar. De outro súbito, aquele homem grotesco já não mais a tentava agredir e ela cambaleou para o lado, escorando-se na cadeira para não tombar. O Garoto Azul correu para ampará-la, oferecendo um braço como apoio.

Agora, completamente consciente, a vice-prefeita armou-se num escárnio sem igual contra seu ex-marido e virou para confrontá-lo. Bigby Wolf já estava sobre o cretino, o mantendo no ar pelo colarinho, numa ferocidade multiplicada, enquanto Príncipe Encantado se debatia ridiculamente para soltar-se. Os olhos do xerife assumiram uma animalesca cor âmbar; o pelo humano que recobria mãos e antebraços começando a ser substituído por selvagem e grosso pelo lupino.

— Bigby... — arfou Branca temendo que ele se transformasse totalmente e tudo acabasse num banho de sangue real.

— Nunca mais toque nela, entendeu? — ele urrou para o prefeito. O belo homem pareceu estar sendo sufocando pelo aperto do xerife, a pele macia e bem cuidada do rosto, arroxeando.

— Ele não me machucou. Está tudo bem. — a vice-prefeita aproximou-se, tentando amenizar a fera dentro do amigo.

Bigby fingiu não escutá-la. Ergueu mais o Príncipe e repetiu:

— Nunca mais ouse tocá-la! Eu posso te matar se acontecer isso outra vez...

Numa voz esganiçada, o prefeito disse:

— En-entendi... Me sol-ta... Sufoca...

— Bigby, por favor. Chega! Ele não vale a atenção. — Branca pegou no braço do xerife, puxando-o para baixo. Olhou para trás, aflita, fazendo um pedido silêncio para Lorde Fera, o único páreo para conter o xerife, se aproximar e intervir.

Entretanto não foi necessário. Gradativamente o Lobo retornou a sua forma humana e soltou um desorientado e resfolegante Príncipe Encantado no chão. Deu-lhe as costas com desprezo.

— Ele te machucou? — perguntou gravemente para ela.

— Não, não. — respondeu Branca, atordoada.

A plateia, que agora tinha um novo integrante, Papa-Moscas boquiaberto na porta, acompanhava o espetáculo.

— Vo-cê... você está demitido, Bigby. — o estropiado prefeito começou a levantar-se em toda sua humilhação assistida. — Fora daqui. FORA!

Detendo uma invejável tranquilidade, o xerife lobo tocou nas mãos trêmulas da vice-prefeita e a confortou:

— Está tudo bem, Branca. — então acendeu outro cigarro e resmungou sobre o ombro para a outra fábula — Aceito a demissão com grande prazer. E minha ameaça ainda continua firme e forte, prefeito. Se cuide!