Fábula das Vozes

The red capes are coming


Correu.
O tecido do sapato de couro cozido logo se desfez sobre seus pés, tornando possível o contato direto dele com o chão áspero e gelado. Em menos de uma hora, o número de arranhões nas suas pernas eram superiores a quantidade de dedos que possuía. A subida pela montanha era íngreme e cansativa, cheia de obstáculos e precipícios perigosos.
Tudo doía.
Alguns gravetos e espinhos tinham se enfiado sobre as unhas dos seus dedos do pé. Seus braços estavam arranhados, tanto pelos movimentos tentando afastar os galhos que caíam seu rosto quanto pelas vezes que usou-os para impedir uma queda de cara no chão. As coxas latejavam pelo esforço em subir uma montanha correndo naquele ritmo por tanto tempo. O pior eram os seus pulmões: praticamente imploravam gritando por mais ar. Leeaha tentava obedecer ao pedido deles puxando a atmosfera por sua boca com rapidez e desespero, o que fazia o seu abdômen latejar.

Tudo doía, e ela amava isso.
Não iria parar nem mesmo se um urso aparecesse na sua frente, raivoso. Não pararia nem mesmo frente a algum daedra. A dor física do momento era a única coisa que a impedia de pensar, e isto era a coisa mais dolorosa que poderia acontecer no momento. Pensar. Pensar sobre como a sua casa estava destruída. Pensar sobre como todos os seus amigos e conhecidos estavam, nas melhores das opções, mortos. Gentri, a padeira da cidade, nunca mais lhe daria um sweetroll de recompensa por ter espantado os pombos do telhado. Nunca mais ganharia um objeto especial de Sutri e Satru, os gêmeos que viviam juntando peças com histórias pelo mundo e revendendo por aí. Ainda guardava duas pedras com runas antigas, o lembrete de um nome, segundo os irmãos.
Acima de tudo, o subconsciente pensava em seu irmão mais velho. Na hora que aceitou correr sem questionar ou insistir que ele a seguisse, tudo o que queria era fugir daquela cena. Da visão de sua... De sua mãe. Do cheiro, principalmente. Aceitou sem questionar, o torpor pós-gritos mergulhando a sua mente num estado primitivo onde só se importava em seguir em frente. Mas ali, escondido, sua mente sabia a verdade: seu irmão não a seguiria. Iria ajudar quem pudesse, é óbvio. Seria morto. Era um guerreiro bom o suficiente para matar alguns Thalmor despreparados, o que causaria a fúria nos líderes que ele nem pensaria em enfrentar.

Marc estava morto. Sua mãe estava morta. Papai morrera muito, muito tempo atrás. A única companhia que tinha no momento era a sua própria, e infelizmente nunca fora muito fã das pessoas depressivas. O que fazia, então? Ignorava a si mesma. Estava funcionando bem: tão bem que nem percebeu quando a montanha nivelou a sua inclinação e depois começou a descer.
Verdade seja dita, realmente demorou para perceber isso. O exato instante em que essa percepção chegou a sua mente foi bem específico: começou a cair. Seu pé quase descalço enroscou-se em alguma raiz e a velocidade do movimento jogou todo o seu corpo com força para baixo. Alcançou o chão primeiramente com o queixo. Grunhiu de dor quando sentiu os dentes fechando-se em cima da língua, o gosto de sangue preenchendo a boca, porém os outros impactos começaram a chamar mais sua atenção. O joelho estourou em uma pedra pontiaguda, o rosto logo estava inteiramente arranhado e um espinho afiado de uma planta qualquer tinha se enfiado na superfície de seu braço. Rolou pela montanha por minutos antes de sentir algo diferente.
Estava voando.
Naquela hora, o breve momento em que passou com o corpo longe do chão pareceu durar eternidades. Tinha certeza de que caía em um penhasco. Não teve nenhuma daquelas visões de todos os instantes da sua vida. Teve apenas medo. Não queria morrer. A queda, entretanto, durou menos que milésimos de segundos antes do seu corpo pequeno e pesado atingir o chão. Rolou por mais alguns metros antes de ficar presa em uma cavidade, mas neste instante já não estava mais consciente.

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O som úmido e suave de algo sendo lambido foi o que a acordou, horas depois. Aos poucos a sensibilidade voltou aos seus membros e pode perceber que o algo em questão eram seus dedos, e o sujeito causador da lambida era uma raposa branca de olhos grandes e curiosos. Podia estar limpando o sangue seco de sua mão, porém deixava uma baba fedorenta no lugar. Não era exatamente uma boa troca. Leeaha continuou no chão, devolvendo o olhar do animal, até que o mesmo se entediou e saiu andando de forma elegante dali.
Continuou no chão por vários segundos, pensando em absolutamente nada. Era uma boa habilidade a se desenvolver: o total vazio da mente. Um ótimo lugar para se esconder. O frio, entretanto, acabou congelando a sua apatia e trazendo a tona os instintos de sobrevivência.
O corpo estava difícil de controlar: as pernas arranhadas, o joelho estourado e os ossos doloridos não ajudavam nada na tarefa de andar. Ainda assim, por uma espécie de milagre, conseguiu erguer-se e, apoiando-se nas árvores no caminho, terminar de descer a floresta.
Parou em uma pequena trilha cercada por pinheiros de ambos os lados. Continuou andando até encostar-se em uma placa de madeira. Entalhada na superfície, algumas indicações. Helgen. Riverwood. Riften. Falkreath. Whiterun. Uma parte de seu cérebro reconheceu duas das cidades das conversas com o pai, mas essa parte estava amortecida demais para raciocinar decentemente. Continuou andando como se as letras naquela disposição não significassem nada além daquilo: letras.

Foi então que ouviu passos atrás de si. Passos nervosos, agitados. Correndo. O corpo se virou lentamente, mais uma vez batalhando para juntar as peças do que acontecia a sua volta em sua volta.

- IMPERIAS! CORRAM! E mais passos se uniram ao primeiro. As roupas azuladas estavam marcadas em vários lugares do corpo com sangue. Correram na sua direção como se fugissem de uma alcateia de lobos famintos. Leaaha permaneceu em seu lugar, o rosto marcado pela confusão. Imperiais. Ela era uma imperial. Marc também, assim como sua mãe. Eram tão pacíficos... Por que estariam correndo de imperiais? Sentiu a pálpebra tremer enquanto pensava na família, por um momento esquecendo que estava morta.
O grupo se aproximava cada vez mais. Quando a alcançaram, Leeaha foi empurrada para os lados até perder o equilíbrio e encontrar o chão novamente. Seu corpo já estava tão machucado que as quedas e pancadas não surtiam o mínimo efeito além de um leve estremecer na pele. Caída no chão em uma posição não natural, gastou o resto dos segundos ali observando enquanto um grupo com capas vermelhas se aproximavam e entravam em uma pequena disputa com os fugitivos. Se estivesse em seu ânimo normal, ficaria ultrajada com a injustiça acontecendo ali: eram quase cinco soldados vermelhos para cada um azul. Entretanto, todo o seu senso moral e percepção da sociedade estava desligada, assim como o interesse em fugir. Permaneceu ali por vários minutos, até que um imperial com nariz adunco e olhar severo reparou na sua presença.

Levou três longos passos para chegar até ela, três longas encaradas para ver o seu estado físico lamentável e três longos segundos para avaliar a situação em que estavam.

Precisou de apenas um bom chute no rosto para deixá-la inconsciente novamente.