Fábula das Vozes

Imperiais, listas e indesejados blocos


A madeira áspera que servia de apoio para a lateral do corpo de Leaaha era dura demais para ser confortável. Quando a carroça deu um pulo na estrada esburacada, sentiu a ferida nas costelas pulsando de dor. Normalmente, acordaria sobressaltada com uma sensação dessas, mas não estava em um estado normal. Seu corpo parecia dopado, seja de tristeza ou de dor. Aquele formigamento no lado direito do corpo apenas serviu para que despertasse aos poucos. Ainda de olhos fechados, fez o que era de praxe sempre que acordava: molhou os lábios, pois ficavam estranhamento secos na noite. No caminho para fora de sua boca, entretanto, a língua encontrou um obstáculo. Tentou novamente e sentiu o gosto seco de tecido. Só então foi abrir os olhos para ver o que era aquilo.

— Olhe só. Finalmente está acordada.

Piscou os olhos três vezes, tentando focalizar a cena ao seu redor. O balançar irregular da carroça fazia acreditar que ainda estavam em algum lugar montanhoso, com estradas íngremes e mal cuidadas. Onde antes sua mente interpretara apenas como pessoas com trajes vermelhos e outros com trajes azuis, agora entendia com mais clareza. Imperiais e Stormcloaks. O homem que a encarava fazia com que Leaaha se recordasse de quase todos os nórdicos com traços comuns demais em Bruma: rosto largo, olhos azuis, pele claríssima e cabelos loiros. Cara de sujo, mas com um sorriso no rosto. Em suma, passava a imagem de um homem rústico, porém bondoso, o que resumia bem a maior parte dos nórdicos.

— Mmmff. — A amarra em sua boca estava apertada o suficiente para impedir a fala. Olhou novamente em volta, procurando para ver se era a única com algo na boca. Um sujeito grandalhão – nórdico também, mas não tão amigável – olhava para o horizonte, as amarras na boca triplamente maiores e mais apertadas do que a sua. Imaginou que qualquer fosse o motivo para estar amarrada, o sujeito ao seu lado tinha feito dez vezes pior.

— Você não parava de gritar durante a noite. Ficaram de saco cheio. Você tem um baita fôlego, huh? — A voz rouca dele continha aquele sotaque forte de boa parte de Skyrim, também muito presente em Bruma. Ao ouvir suas palavras, Leaaha se deu conta da ardência em sua garganta. Estava explicado, então. Imaginou se o homem grande ao seu lado também andara gritando. Não tinha cara de quem faria isso: os olhos frios pareciam orgulhosos demais.

Os olhos demoraram para perceber a presença de uma quarta pessoa ali. Estava abaixado, com roupas tão ruins quanto as dela, e o olhar desesperado o suficiente para o porte tranquilo do loiro ao seu lado. Não chamava a mínima atenção, e a mente confusa de Leaaha só foi perceber que ele estava ali quando começou a resmungar sobre os malditos Stormcloaks. Começaram uma discussão sobre a política de Skyrim. Costumava achar aquele assunto deveras interessante, mas no estado mental que se encontrava, não conseguia absorver nada mais intelectual do que grunhidos e arrotos. Parou de prestar atenção com rapidez, sem chegar a pensar que alguém poderia ter falado com ela nesse meio tempo. Os olhos, tão azuis quanto os do nórdico a sua frente, observavam a paisagem a sua volta. Ainda devia estar perto de Bruma. As montanhas a sua esquerda eram semelhantes demais as da sua cidade. Poderia fugir, certo? Não deviam estar assim tão chateados com ela. Pelas poucas palavras que captou da discussão ao lado, o rapaz assustadiço era um ladrão, e os nórdicos tinham sido capturados em uma emboscada. Todos tinham motivos para estarem presos: todos menos ela.

Tentou vencer o torpor em sua mente e traçar uma rota de fuga. Conseguiria se jogar da carroça e correr pelas montanhas. Sabia bem como andar por aqueles terrenos, e talvez conseguisse despistá-los facilmente. Contava com a falta de interesse deles em uma minúscula garota imperial. Quando foi se mexer para observar melhor os arredores, sentiu uma dor descomunal invadindo suas pernas, e aí lembrou-se de que estava com o corpo completamente fodido. Não conseguiria correr sem cair, tinha quase certeza. Suspirou e resignou-se em esperar aquela viagem acabar. Talvez levassem-nos a Solitude. Sempre teve vontade de conhecer a capital de Skyrim, já que o pouco que conhecia das cidades de Cyrodiil eram mais nórdicas do que imperiais.

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Após quase duas horas de viagem, portões de madeira ficaram a vista. Alguns guardas cuidavam da entrada da cidade. A visão não trouxe nenhuma informação essencial para Leaaha, mas pelo visto significou algo para o nórdico ao seu lado – Leaaha começara a chamá-lo de Sr. Covinhas na sua cabeça -, que começou a resmungar. Tentou focar nas palavras que ele dizia. Pareciam importantes.

— ... divinos, me protejam. — A voz do garoto mais novo era nitidamente imperial. Tentou sentir um pouco de compaixão por ele, mas nada veio no seu peito naquele momento. Continuou encarando-o, tentando entender sobre o que falavam enquanto as carroças adentravam os portões da cidade – Helgen, pelo o que ouvira. Cidadãos nervosos xingavam as pessoas das carroças, dezenas e dezenas de Stormcloaks. Sentiu raiva crescendo em algum ponto escondido no seu coração: mesmo sendo uma imperial, sempre sentira certo carinho pelos nórdicos de Skyrim, provavelmente culpa das histórias alegres e amorosas que seu pai contava sobre o tio. Vê-los assim, sendo minimizados e humilhados por pessoas que nem deviam conhecê-los era... Bom, no mínimo irritante. Sentia aquela parte justiceira da sua personalidade fritando na sua cabeça, lutando para sair. Conseguiu controlar-se, até porque não teria como pular da carroça e quebrar a cabeça de alguém.

A raiva fez com que sua cabeça limpasse um pouco. Começou a ficar mais ciente de onde estava e do que tinha acontecido. A tristeza foi subindo aos poucos pelo peito, mas pelo menos agora conseguia raciocinar devidamente. E foi só neste instante que reparou o que realmente se organizava na sua frente. Uma execução. Era óbvio, não? Um grupo grande de imperiais, sacerdotes, guardas e mais guardas. E, claramente, um carrasco, grande como uma árvore e largo como o mar. Os olhos azulados foram de um lado para o outro, sentindo um pouco de dó por todos os Stormcloaks que seriam mortos ali.

O ladrão começava a ser irritante, choramingando sem parar. Seguiu-o para fora da carroça, tomando cuidado para pular dela do jeito mais suave o possível. Caso sua boca não estivesse vedada por panos, com certeza teria soltado um ganido de dor quando os pés encontraram o chão e os joelhos tremeram.

A primeira imagem que viu diante de seus olhos quando recuperou a nitidez foi a do pequeno ladrão correndo, afirmando a Tamriel inteira sobre como nunca conseguiriam pegá-lo. Ver as flechas imperiais se enterrando nas costas do sujeito não foi tão chocante quanto teria sido dois dias atrás, antes de Leeaha presenciar a morte da mãe e a destruição do seu lar. Teria gritado, chorado e ficado extremamente assustada por estar frente a uma morte brutal. Naquele instante, entretanto, o coração ainda estava congelado, e a única reação que teve foi um certo alívio por não ter tentado fugir antes, quando estavam nas carroças.

— Alguém mais pensando em fugir? — A voz vinha de uma forte mulher parada ao lado de um jovem soldado, ambos com olhares marcantes, mas antagônicos. Enquanto ela parecia querer impor o seu poder a qualquer um que duvidasse de sua autoridade, o jovem com a prancheta ao lado mantinha a postura de uma pessoa segura e confiante da sua posição. Ainda assim, conseguia perceber que o olhar que lançava para os prisioneiros chegava perto da pena.

Esperou o tempo de sete folhas de um arbusto caírem no chão antes de ser chamada para dizer o seu nome. Enquanto se locomovia até a frente do casal, um terceiro soldado se aproximou.

— Se começar a gritar de novo, enfio o punho no seu estômago. Entendeu? — O tom bruto e as palavras violentas fizeram Leeaha arregalar os olhos por alguns segundos antes de concordar com a cabeça. Não era de ser escandalosa. Os gritos noturnos estavam fora de seu controle.

Abriu e fechou a boca algumas vezes após ter as amarras retiradas, sentindo a bochecha arder. Lembrou-se, então, que a mulher tinha feito uma pergunta. Molhou a garganta para tentar falar sem a voz quebrar.

— Leeaha. Imperial. — Mas tenho sangue nórdico. Sangue Stormcloak. Sangue rebelde. Mesmo que as palavras surgissem em sua mente enquanto pensava em seu pai, manteve a boca espremida.

— Imperial, huh? Com esses olhos? O que faz aqui? — Gotículas de saliva saíam de sua boca carnuda enquanto falavam, quase como uma cobra espirrando veneno.

— Bruma, maam. — E foi só após soltar essas palavras que lembrou-se da real situação. Citava fazer parte de uma das cidades menos imperiais de Cyrodiil como se isso fosse ajudar em algo. Pior: eram generais e soldados importantes a sua frente: com certeza saberiam que a cidade fora atacada pelos Thalmor. Pelo o que bem entendia, poderiam muito bem serem os líderes da revolta. O coração de Leaaha fechou-se ao imaginar isso, mas manteve o olhar firme, sustentando a feição de desprezo que surgia no rosto da mulher.

— Capitã, ela não está na lista. — A voz com pingos de compaixão do rapaz ao lado era um bom som para se ouvir no momento, ao invés do silêncio pesado que se instalava. Lea conseguiu respirar profundamente de novo, tranquila por saber que não seria executada no meio dos rebeldes. Ficaria frustrada se tivesse fugido de um massacre, abandonando a família, e corrido direto para uma execução injusta. Quase sorriu, e talvez a visão de uma pequena esperança nos olhos azuis tivesse irritado ainda mais a Capitã.

— Isso não importa. Ela vai para o bloco. — E tão rápido quanto tinha se apresentado, foi levada de volta a fila de capas azul que crescia.

Demorou para entender o significado daquilo. A mente ainda estava despertando, aos poucos, e nunca foi das mais espertas. Ouvia um zumbido no seu ouvido, e o mesmo misturava-se com as vozes ao redor e nada fazia sentido. Uma sacerdotisa entoava palavras dos divinos, a voz alta e clara e quase como uma ironia para pessoas que, tecnicamente, adoravam a Talos. Observou enquanto um soldado impaciente adiantava-se na frente de todos e praticamente implorava para matá-lo antes. Foi só vendo-o ali, do lado de um carrasco e ajoelhado diante um bloco, que foi entender.

Ela vai para o bloco. Iam matá-la também.

Correra por horas em uma montanha inóspita. Abandonara o irmão e a casa para trás. Correu, correu e correu, e no final encontrou-se com um destino ainda pior. Preferia ser morta tentando lutar contra os Thalmor, ao lado do irmão e dos amigos. Preferia morrer no seu lar, respirando o ar gelado e o cheiro de flores da montanha rosa. Preferia morrer com dignidade, em batalha, ao invés de ser simplesmente executada de forma fria na frente de desconhecidos.

Quando seu nome foi chamado na lista, precisou de vários segundos para entender o que deveria fazer. Cogitou jogar-se o chão e chorar, mas iriam levá-la a força e teria uma morte mais vergonhosa ainda. Provavelmente teria saído correndo se não tivesse visto o que fizeram com o ladrão. O pensamento de receber flechadas na carne era pior ainda do que ter a cabeça cortada em um corte simples e limpo.

E assim, então, puxou coragem de onde não tinha mais nenhuma e colocou pé na frente do pé, forçando-se a avançar em passos trêmulos. Praticamente jogou-se na frente do bloco quando chegou a ele, sem condições de ajoelhar-se de uma forma sutil. Era uma figura de dar pena: jovem, olhos grandes, inocentes e vermelhos, corpo machucado e lábios prestes a irromperem em um choro. Esta visão não parecia amolecer o coração do carrasco, que limitou-se a empurrar a parte interna de seu joelho para a frente e fazê-la ficar de bruços, o pescoço encostando na madeira.

Não viu a vida passando diante dos seus olhos. Gostaria de ter relembrado memórias da sua infância, quando tinha a família unida e feliz brincando com a Thori, a vaca gorda – presente do Imperador as famílias de Bruma. Queria ter visto mais uma vez a forma como os olhos de mamãe se enrugavam quando ela ria, ou a voz grave de seu pai soando canções sobre heróis durante os jantares, ou a forma como Marc mordia os lábios enquanto estava concentrando lendo seus livros sobre arcanismo.

Ao invés disso, os pensamentos na sua cabeça foram invadidos pelo cheiro de sangue e a visão de uma cabeça decapitada embaixo de seu nariz. O corpo teve o reflexo instintivo de fugir daquilo, mas quando tentou erguer-se sentiu o pé de alguém pressionando as suas costas na direção contrária. Iria virar o rosto, mas assim que viu o carrasco com a arma levantada, o estômago embrulhou-se e voltou a abaixar a cabeça.

Fechou os olhos.

No mesmo instante que tudo ficou negro, ouviu um som estranho. Estava nitidamente longe, mas era alto e nítido. Devia ser um barulho alto. As pessoas ao seu redor pareciam inquietas, mas só conseguia distinguir as palavras dos imperiais no meio dos sussurros da população ali reunida.

— O que foi isso? — Não saberia dizer de quem era a voz, mas parecia um misto de medo e confusão.

— N-não foi nada. Continuemos o serviço! — Aquela, sim, estava marcada na mente de Lea. Duvidava que fosse esquecer o tom de voz da Capitã que a sentenciara a morte sem motivo algum.

Ao invés de sentimentos bons e pacíficos, os últimos pensamentos que passavam pela mente de Lea refletiam a imagem a sua frente. Via, no sangue do soldado Stormcloak, os dedos decepados da mãe. Os gritos dela enquanto era torturada ecoaram nos ouvidos, mesmo que nunca tivesse chegado a ouvir isso. Seus olhos pálidos, sem qualquer brilho. Via, na juventude da cabeça solitária do rapaz, toda a vontade de viver e aproveitar essa experiência que o irmão costumava exibir, e em como isso fora arrancado dele. Além de todos esses pensamentos, puxava lembranças do pai, promessas de que ele ficaria bem e o jeito como se coração tinha se quebrado pela primeira vez quando recebeu a notícia de sua morte. No seu velório, papai não sorria.

E foi com estes pensamentos tristes que ouviu um segundo rugido, muito mais próximo do que o anterior. Através dos olhos fechados, pode sentir uma diferença sutil na iluminação ao seu redor.

— Olhe! Lá, no céu!

Uma lufada de ar foi jogada contra suas costas e os longos cachos começaram a entrar em suas narinas. Cuspiu no chão para tirar os fios de cabelo da boca, mas manteve os olhos espremidos o tempo inteiro. Sentia medo de morrer, e naquele momento que a morte parecia tão certa, não queria ver da onde viria: rugidos misteriosos no céu ou uma lâmina afiada no seu pescoço. Só queria que acabasse logo.

Esperou, mas nada veio além de um impacto contra o chão. Sentiu todo o corpo tremer e ouviu nitidamente enquanto a arma do carrasco caia no chão.

— O que em Oblivion é isso?

Sua mãe sempre reclamava sobre as terríveis artes que a curiosidade de Leaaha costumavam causar. Enfiava o dedo em lugares que não devia, fazia perguntas que não eram polidas e, várias vezes, perdia-se na floresta enquanto explorava um novo lugar. Era uma das características marcantes em sua personalidade, algo que nunca mudou com o passar dos anos.

Naquele momento, a mesma curiosidade foi maior do que o medo. Foi maior do que o temor e a vontade de chorar diante da morte. Foi maior que tudo.

Respirou fundo, virou a cabeça e abriu os olhos. O tempo mantendo-nos fechados fez com que a luz dali fosse forte demais e tudo o que viu nos segundos seguintes foi um enorme borrão escuro, quase no formato de uma cruz gorda e baixa.

Piscou três vezes antes da imagem a sua frente ficar nítida.

Arregalou os olhos.