Normalmente, uma multidão composta por guardas imperiais, soldados Stormcloaks, oficiais do exército, uma sacerdotisa, um carrasco e uma grande quantidade de galinhas teria chamado a atenção de Leaaha. Na realidade, teria prestado o dobro de atenção nesta multidão se os membros dela estivessem correndo de um lado para o outro, gritando e caindo no chão, assustados.

O momento, entretanto, exigia outro foco de atenção. Caída ali, ao lado de um cadáver ainda quente, Leaaha estava paralisada. O último rugido do animal pendurado na torre ainda soava em seus ouvidos, o volume mais alto do que toda a gritaria momentânea. Encarou os olhos vermelhos do monstro, destacando-se no meio da massa negra de espinhos. Eram espinhos ou escamas? Aquilo seriam asas? A imagem era tão grande que precisava mover a cabeça para observá-lo em sua totalidade. Aos poucos, começava a montar a figura completa.

Um sentimento diferente cresceu no seu peito. No meio de todo o pavor, medo e tristeza, começou a sentir admiração. Estava abismada com o visual ameaçador e poderoso da criatura, a forma como suas escamas pontiagudas apontavam para os lados, formando chifres em sua cabeça. Foi quando a boca dele se abriu novamente. Percebeu, através do rugido rouco e semelhante a um trovão, palavras. O monstro dizia algo, mas ninguém parecia entender. Focou-se em prestar mais atenção, esperando novas palavras, quando o mundo a sua volta começou a desmoronar.

O impacto de uma enorme rocha escaldante caindo ao seu lado fez com que Leaaha saísse do transe. Enquanto o chão balançava embaixo de si, tentou equilibrar-se para não cair de cara no chão – uma tarefa que revelou-se deveras frustrante e infrutífera. Com as mãos atadas, era impossível encontrar apoio. Tombou de lado e já estava forçando-se para se levantar quando outra rocha caiu ao seu lado, partindo-se em dezenas de pedaços.

No momento, já tinha parado de se perguntar o que era aquilo. Talvez a grande sucessão de emoções em um curto período de tempo tivesse cortado a noção de realidade de Leaaha. Apenas procurava por um lugar onde se esconder. Forçou o corpo para cima, sentindo de novo todos os machucados do dia anterior pulsando, quando um impulso a mais ajudou-a a ficar de pé. Virou a cabeça para o lado a tempo de ver o prisioneiro nórdico gentil ao seu lado. Seu corpo estava em posição de defesa e aparentemente ileso, tirando alguns arranhões e fuligem pelo rosto.

— Vamos logo. Os deuses não nos darão uma segunda chance. — E com um empurrão que mais ajudou-a a se desequilibrar novamente do que a pegar impulso na corrida, direcionou-se para uma das grandes torres. Leaaha travou, sentindo-se mal com a ideia de enjaular-se em uma pequena estrutura quando um monstro gigante cuspidor de fogo estava ali do lado. Parecia a maneira perfeita de virar carne assada.

Correu para outra direção, ignorando os gritos de Ralof – esse era seu nome, certo? -. Em menos de três passos, desviou de duas flechas, queimou o pé e quase teve a cabeça esmagada. Após isso, considerou que talvez a torre não fosse tão ruim.

Ao entrar no lugar, inspirou profundamente, confiando na ideia de que ali o ar estaria mais limpo. Péssima ideia: a fumaça era igualmente espessa, e iniciou uma longa sucessão de tossidas. Ao recuperar o fôlego, os olhos e a garganta ardiam. Encostou-se na parede de pedra que aquecia aos poucos devido ao calor externo e abaixou a cabeça. Embaixo de si, dois soldados Stormcloaks parcialmente carbonizados se contorciam em agonia.

Leaaha sentiu o estômago revirando dentro de si, mas acreditava que já tinha vomitado tudo o que não estava de alguma forma conectado ao seu corpo, então a náusea logo passou. Ao invés disso, observou a movimentação perto da porta, tentando captar a conversa atrás dos gritos e rugidos externos.

— E então, Ulfric? Poderiam as lendas antigas serem verdadeiras? — O nome citado por Ralof fez uma luz se acender na sua mente. Ulfric? Seria O Ulfric? Aquele Ulfric? Arregalou os olhos mais ainda enquanto o observava, tentando imaginar se estava o tempo inteiro do lado do líder da rebelião.

— Lendas não queimam vilarejos. — A voz penetrou os ossos de Lea. Era profunda, grave e ressoava por todo o ambiente. Era a voz de um líder.

Continuava tentando prestar atenção na conversa entre os dois quando sentiu algo agarrando a sua perna. Deu um pulo com o susto, porém nenhum sinal de dor veio junto com o toque. Era suave, um tanto úmido e fraco.

— Á-água... Por f-favor... — O cheiro de carne queimada que exalava da mulher deitada ao seu lado era horrível. Do ângulo em que estava, conseguia ver que toda a lateral esquerda de seu corpo tinha sido queimada. Gordura escorria por um canto, e era possível até mesmo ver um pedaço da sua costela. Morreria logo.

— Água? — Sussurrou de volta para ela, sem saber onde procurar por ela ali. Outro soldado cuidava dos ferimentos de um jovem deitado ao seu lado. Deviam acreditar que não valia a pena gastar tempo com um cadáver. Preparava-se para respondê-la quando Ralof voltou-se para sua direção.

— Venha logo. Não tem saída por esse lado. — Demorou para entender o lugar onde os dois soldados dali seguiam. Para... Cima? Com um enorme monstro voador e cuspidor de fogo? Novamente, não confiou tanto na segurança daquela decisão. Ainda assim, não tinha muitas opções no momento.

A presença de amarras em seus pulsos prejudicava de forma considerável o seu equilíbrio. Foi complicado cambalear até a escada de pedra, tentando se manter de pé, mas no final estava lá. Doía a cada novo passo. A dor, entretanto, estava em último plano na sua mente.

— Vamos, por aqui! Temos que apressar. — Continuou subindo, imaginando o quão óbvio era a continuação do caminho. Não era como se a escada circular tivesse outras direções.

Conseguiu acelerar o passo quando atingiu a superfície mais plana. No terceiro passo, uma explosão na sua frente fez toda a torre cair enquanto blocos de pedra despencavam em cima dos soldados que estavam mais a frente. Leaaha cambaleou e escorou-se na parede, engolindo um grito na sua garganta tamanho o susto. As pernas voltaram a tremer como antes enquanto observava três soldados mortos embaixo do desmoronamento, partes dos seus corpos esmagados.

Sua atenção, entretanto, voltou para outro lado quando um jato de calor veio da abertura recém-feita ao seu lado. Quando o calor foi embora, tanto o cheiro de cabelo chamuscado quanto o ardor no seu rosto fez com que tivesse certeza de que tinha perdido as sobrancelhas. Esgueirou-se para perto do buraco a tempo de ver o monstro bater as asas e sair voando para longe, lançando chamas em toda a superfície do lugar.

— Você vai precisar pular. Ali, vê aquela cabana?

Leaaha demorou para entender que ele estava falando com ela. Quando a compreensão veio ao seu rosto, arregalou os olhos, fitando Ralof e a cabaninha em chamas que ele apontava.

— C-como assim? Péssima ideia, péssima ideia! — Sentia os joelhos doerem só de imaginar o impacto que sofreriam com o salto.

Ignorando os gemidos de frustração de Leaaha, Ralof puxou-a pela manga de suas vestes e posicionou-a na frente do buraco. Era uma queda de, no mínimo, cinco metros até o chão.

— Não tem saída pelo outro lado, garota. Precisa pular se quiser sobreviver.

— Como assim?!? E a s-saída?

Tentou girar o corpo e observar a porta embaixo deles, onde poderiam ir para o exterior com tranquilidade, mas Ralof voltou a puxá-la e segurá-la firme, cada vez mais perto da borda. Com medo de que o soldado fosse na verdade um louco e a empurrasse a qualquer instante, fechou os olhos, praguejou contra os deuses e pulou.

No meio do caminho, imaginou como seria triste se morresse por ter caído e quebrado o pescoço. Um final nada épico após as aventuras anteriores.

Felizmente, não teve tempo o suficiente para se incomodar com estes pensamentos pessimistas. Os pés alcançaram a superfície de madeira do sótão da cabana e, segundos dois, estava rolando pelo chão, mordendo os lábios para não soltar gritos de dor. Desejava que os deuses dessem-lhe alguns minutos para poder se recuperar da dor, porém o mundo nunca era gentil. O chão embaixo de si, já frágil pelo ataque do fogo, começou a ranger com o peso extra. Antes que conseguisse se mexer dali, estava despencando junto à tábuas.

Ficou surpresa ao descobrir que caíra em algo quase macio, ao invés de ter mais nacos de madeira se enfiando na sua carne. Tentando afastar as lágrimas dos olhos – presentes ali tanto pela dor quanto pela fumaça que se intensificava -, piscou continuamente. Estava em uma cama meio destruída, inteira o suficiente apenas para ter diminuído um pouco do impacto com o chão. Esgueirou-se para fora dali e viu Ralof resmungando ao lado do buraco na Torre, aparentemente lamentando que Leaaha tivesse estragado a rota de fuga dele. A tentação de sussurrar um asshole na sua direção foi enorme, e só aumentou ao vê-lo girando e descendo as escadas. Agora a porta era uma saída viável? Bufou.

Teve que deixar suas reclamações de lado quando viu que a cabana poderia desabar sobre sua cabeça a qualquer momento. Rastejou para fora do lugar, tentando manter-se atenta a todos os perigos que a rodeavam: fogo, fumaça, flechas, monstros voadores e ocasionais soldados Stormcloaks com tendências homicidas contra jovens garotas paradas ao lado de quedas fatais. O de sempre.

Ainda encontrava dificuldade em locomover-se com as ataduras na mão. Tinha certeza de que se continuasse mais um tempo assim, entretanto, logo teria o melhor equilíbrio de toda Tamriel. Iniciou uma corrida na direção aparentemente mais segura quando sentiu algo puxando-o para trás.

— Cuidado, prisioneira. — Reconheceu a voz do soldado mais simpático, o mesmo que tentara defendê-la antes, e sentiu-se um pouco mais aliviada. O alívio crescer ao desviar de uma grande baforada de fogo. Foi praticamente jogada ao lado de uma das crianças que observava com alegria a execução dos rebeldes. A face curiosa agora estava tomada por um choro assustado. Virou o rosto na direção que todos ali olhavam a tempo de ver um homem – pai do menino, pelo o que recordava de sua face – virar carvão.

Talvez não fosse correto descrever a morte dele desse jeito. O homem não tinha ficado negro e quebradiço como carvão. Mais parecia um doce: a carne rosada poderia facilmente representar um recheio de morango e a crosta de gordura que saía de alguns pontos do corpo, caramelo cristalizado. Queria dizer que sentiu a barriga se embrulhar ao pensar em um cadáver daquele jeito – frio e piadista -, mas os últimos eventos estavam deixando-a pouco sentimental. O único momento em que uma onda de empatia a invadiu foi quando ouviu o choro desesperado da criança ao seu lado. Queria se virar e falar algo para ajudá-lo. Queria mesmo. Mas o que diria? Tudo vai ficar bem? Não chore, criança? Estava na mesma situação que ele – tirando alguns anos a mais – e sabia que nada que falasse realmente iria adiantar.

— Você! Venha comigo. — Foi tirada do seu devaneio pelo guarda que Leaaha teve que trocar de bondoso, em sua mente, para mais um homicida sádico. Não entendia direito o porque de estarem chamando-a para aventuras, e a sua falta de opções de recusar faziam com que seguisse as ordens.

— Onde vamos? — Acreditava que seria seguro tentar uma conversa civilizada com ele, mesmo em meio ao ambiente caótico. Precisava elevar o tom para se fazer ouvir, mesmo que estivessem quase grudados.

— Procurar abrigo para fora. CUIDADO! — Foi puxada pelo braço no exato momento em que as asas negras do animal pousaram ao seu lado, evitando que virasse um espetinho gigante. — Fique próxima a parede. Cuidado com o chão.

Eram conselhos aleatórios, mas Leaaha atentou-se em segui-los. Decidiu manter a boca fechadinha até encontrarem o tal abrigo. Parecia uma decisão sábia. Hadvar – o soldado bondoso levemente homicida – movia-se com leveza entre os obstáculos, um belo contraste com os esbarrões que Leaaha dava em tudo. Sorte a deles não estarem tentando se manter silenciosos.

Após dobrar uma esquina do vilarejo, deram de cara com um pequeno grupo compostos por arqueiros e mágicos, todos empenhados em atacar o animal que voava. Leaaha sentiu-se meio assombrada e maravilhada enquanto encarava estacas de gelo saindo da mão da Maga. Não pararam junto a eles, entretanto, e continuaram o caminho por baixo de um portal de pedra. Encarava os portões da cidade com ansiedade, mal acreditando que iria escapar dali com vida – isso confiando que Hadvar não a mataria por ser uma prisioneira – quando ouviu passos se aproximando, ofegante. Ralof.

Ambos, Ralof e Hadvar, encararam-se, armas levantadas. Tinham praticamente a mesma altura, e Leaaha não saberia dizer quem venceria a luta: o loiro parecia mais rústico e fervoroso, enquanto o moreno parecia ágil e cheio de técnicas.

— Não vai me impedir, Hadvar.

— Tem certeza que vai agir assim, Ralof? Mesmo?

Falavam com a intimidade de quem se conheciam, como velhos amigos com alguns desentendimentos. Continuou fitando o confronto silencioso, sentindo a tensão no ar aumentar e aumentar. Enfim, Hadvar bufou e abaixou a arma.

— Para o Oblivion todos vocês. Venha, prisioneira.

Prosseguiu o caminho a frente, correndo para o lugar que parecia a guarnição. Enquanto isso, Ralof encaminhou-se para uma pequena e baixa torre.

— Venha comigo, irmã.

Leaaha manteve-se paralisada, sentindo algumas lágrimas vindo aos olhos. Sabia que os nórdicos Stormcloak chamavam-se assim, mas o pronome naquele momento fez pensar no irmão que tinha deixado para trás. Encarou de Hadvar para Ralof, tentando engolir o bolo de sentimentos que ameaçava trancar sua garganta.

Seguiu Ralof.