Fogo

Capítulo 1


“Você é tão acostumado. A sempre ter razão. Você é tão articulado. Quando fala não pede atenção. O poder de dominar é tentador. Eu já não sinto nada. Sou todo torpor...”

— Silêncio!

Uma única palavra dele, faz todos ao redor se calarem, inclusive eu. Ele não era mais meu mestre, ainda que na minha cabeça muitas vezes o considerava assim. Entretanto hoje minha posição oficial era de ajudá-lo a treinar outras crianças, outras pessoas.

Depois do muro das lamentações, de ser possível derrotar Hades, Athena em sua infinita bondade, renasceu todos os cavaleiros de ouro. E agora que estávamos em tempos de paz, cada um dos cavaleiros de bronze foi designado a ajudar um cavaleiro de ouro a treinar outros.

Shun ficou com Shaka, Shiryu com Dokho, Seiya com Aiolia, Ikki com Saga e eu com Camus. Todos nós estamos no santuário, o que me deixa feliz, por estar perto de todos aqueles que tenho consideração.

— Quero ver mais uma vez a repetição desse kati. E agora espero que seja melhor do que as anteriores.

Os alunos já cansados recomeçam seus movimentos, mas não ousavam reclamar. Não para Camus. É engraçado que no decorrer dos anos, depois de morrer e reviver, Camus ainda continua com seu nível de exigência alto e considerando sentimentalismo a maior besteira do universo (ainda que ele não vai admitir, que está menos áspero nas bordas)

— Você está bastante distraído Hyoga – sua voz firme me surpreende. Olho ao redor e me sinto aliviado de estarmos longe o suficiente para que os garotos não possam me escutar.

— Desculpe-me, estou pensando no passado – respondo olhando o esforço de nosso grupo e depois diretamente olhando para ele – não faz muito tempo eu era um deles, sendo treinado por você na Sibéria, dando o melhor de mim para ser digno da armadura de cisne. E enquanto lutávamos para parar Hades, nem pensei que seria possível viver mais. Pensei que morreria ali, com meus amigos, ajudando a proteger Athenas.

— Quase quatro anos se passaram e você continua pensando nisso e continua sentimental – ele fala me alfinetando, mas tudo bem, porque já passamos dessa fase.

— Eu suavizei com o tempo, nunca fui capaz de ignorar meu sentimentalismo barato, como você falava. A única lição, acredito, que me recusei a aprender de você.

O que era verdade. Os anos passaram e apesar de todas as experiências anteriores, Camus continuava fazendo jus a seu apelido “mago de gelo”. Ainda assim, nos dávamos bem e conhecíamos muito bem um ao outro. Ou pelo menos ele me conhecia muito bem, eu parecia um livro aberto para Camus e já ele, bem, ele muitas vezes é uma incógnita para mim.

Camus revira os olhos para minha observação e novamente se aproxima de nossos aprendizes e passa novas orientações, me permitindo continuar divagando. Ele já aceitou que sou um caso perdido quando o assunto é sentimento. Afinal como ser diferente, como ignorar o que sinto, quanto Athenas o reviveu, o homem que deu sua vida para me fazer evoluir, que seus ensinamentos e sabedoria me guiaram durante o caminho. A deusa não só reviveu a pessoa mais importante da minha vida, como o amor da minha vida. E ainda que ele não saiba disso, ainda que provavelmente jamais revelarei isso a ele, é a verdade, é o que sinto. Eu sou totalmente, completamente e fodidamente apaixonado pelo Camus. Eu sempre fui e sempre serei. O que talvez pareça exagerado ter tanta certeza disso nessa altura da minha existência, mas ninguém passou pelo que nós passamos juntos, ninguém tem a história que temos.

— Mestre Camus – escuto uma vozinha chamando a atenção – está tudo bem com o mestre Hyoga? Ele quase não ficou com a gente hoje.

— Está tudo bem com ele sim – Camus responde educadamente - Ele está assim porque está guardando energia para nosso treinamento de luta juntos. O treinamento de vocês por hoje é só.

— O que? – pergunto indignado, porque sei que ele é bem superior nesse tipo de luta – Não tínhamos nada programado para isso.

— Agora temos – ele me olha nos olhos e responde em um tom que não permite discussões. O que me faz sentir um frio no estômago de excitação, o que não deveria sentir na frente dos pequenos. Conhecendo como o conheço, estou certo de que é uma punição pelo tema que estava divagando. Filho da puta!

Me aproximo dele sob o olhar de expectativa do restante das pessoas da arena.

— Posso não ser mais seu mestre, mas ainda ambos temos o que aprender – ele diz se posicionando e me chamando para lutar – Venha e me mostre sua evolução.

E assim começamos a brigar. Foi um conjunto de socos, chutes, se esquivar, planejar, buscar falhas. E ainda que o rosto dele se mostrasse concentrado na luta, eu sabia, eu sentia, que ele estava se divertindo com tudo isso. Se estivéssemos sozinhos na arena ou em nossa casa, ele seguramente estaria me provocando, me instigando a vir com tudo. Entretanto estávamos rodeados de crianças e Camus tomava muito mais cuidado com sua linguagem e postura perto deles.

Eu vejo o balanço de seu cabelo ao se movimentar, eu reparo na sua respiração que se torna mais pesada pelo esforço, o suor que começa a escorrer pelo seu rosto... E meu único pensamento é como é lindo, como eu queria beijá-lo.

Ele se aproveita de minha distração, porque é claro que ele não deixaria meu deslize passar em branco, me derruba e me prende no chão. Meu primeiro pensamento é como não se distrair com esse homem? Porra, ele é minha maior fraqueza. Meu segundo pensamento é que estou de costas no chão e ele está acima de mim me prendendo.

Nos encaramos e a intensidade do seu olhar me faz perder o ar. Seu rosto está bem perto do meu. Eu sinto minha respiração falhar ao tê-lo bem próximo de mim. Contra todo meu bom senso, me vejo engolir em seco, meu corpo responder em excitação e meu sangue ir para o sul.

Ficamos assim por alguns segundos, que poderia ter sido uma eternidade para mim. Ele me encara como se estivesse catalogando minhas expressões.

— Você continua distraído Hyoga, posso saber por quê? Porque tenho certeza que não é só pelo passado.

Sob gritos e euforia da plateia, ele se levanta e me dá a mão me ajudando a levantar. Eu ignoro sua pergunta e não acredito que é algo que ele realmente queria uma resposta.

— Por hoje é só! – e ele dá um de seus raros meio sorriso ao dizer isso e se vira em direção a casa de aquário. Os garotos se espalham por aí, depois da liberação e eu continuo em pé, parado, perdido, entorpecido.

Eu fiquei excitado numa luta. Tive que me controlar para não gemer. Eu geralmente consigo manter meu profissionalismo nesses momentos, mas hoje, pelo conteúdo de meus pensamentos, simplesmente pisei na bola. Fui traído pelo meu corpo.

“É tão certo quanto calor do fogo. É tão certo quanto calor do fogo. Eu já não tenho escolha. E participo do seu jogo, participo...”

Depois desse dia, algo mudou na minha dinâmica com o Camus. Eu ainda não tinha superado o fato de ficar excitado no meio de um treinamento na frente dos aprendizes. E nem é pelo fato de ter ficado duro, porque isso eu podia mentir e culpar a adrenalina (apesar de nunca ter acontecido antes). Não, o problema maior foi as outras demonstrações que meu corpo deu. E pelo olhar intenso que recebi dele nesse momento... Camus é frio, mas não é burro ou cego.

É patético da minha parte admitir isso, mas comecei a evitá-lo. O que é difícil para caramba quando se vive na mesma casa e o fato de compartilhar muitas atividades em comum.

Talvez seja paranóia minha, afinal Camus me trata como sempre me tratou. Entretanto eu sei, eu sinto, que algo mudou, ainda que não possa definir o que.

Hoje, sem nenhum motivo em especial, me senti mais confortável depois do ocorrido, talvez porque já fazem alguns dias. Por isso me juntei a Camus na sala de estar depois do almoço.

— Eu tenho uma missão para ir – Camus diz assim que se sentou ao seu lado – Ficarei algumas semanas fora. Provavelmente volte na última semana de janeiro ou na primeira de fevereiro.

— Posso ir com você? – pergunto, talvez um pouco urgente demais, afinal não queria ficar tanto tempo longe dele, muito menos passar meu aniversário sem ele.

— Não, até perguntei para o Shion se poderia, já que esse tipo de experiência seria útil para você, mas ele prefere que seu foco seja o treinamento dos garotos, enquanto estou fora. Parto amanhã.

Acho que minha cara de decepção e tristeza ficou bem nítida, pois Camus inclinou-se para o lado e sentou-se bem próximo de mim.

— Não entendo o porquê está triste – ele diz olhando nos meus olhos – Você estava me evitando e agora está triste com minha partida. Há algo que queira compartilhar?

— Não faço ideia do que esteja falando – respondi, mesmo sabendo que era uma desculpa muito frágil e imbecil.

— Hyoga, Hyoga, Hyoga – ele diz balançando a cabeça deixando claro que não cairia nisso – Você ainda não aprendeu. Você pode me falar ou eu posso tentar descobrir. O que prefere?

Eu fico em silêncio, porque essa proximidade me impede de falar. Se eu abrir a boca, provavelmente vou me declarar e eu não quero imaginar como isso pode estragar essa relação que temos. Prefiro ter sua amizade do que não ter nada.

—Muito bem – ele coloca a mão no meu ombro e desce até encontrar meu pulso, me fazendo tremer involuntariamente com a carícia – Já que não quer me falar, irei descobrir. Eu aceito o desafio!

— Eu não... não estou te desafiando – digo levantando e colocando alguma distância entre nós para que eu possa pensar com mais clareza – Eu não tenho que compartilhar todos meus pensamentos contigo.

— Visivelmente você estava tendo algum tipo de problema comigo, já que me evitar não faz parte do seu comportamento. Estou tentando resolver isso antes de minha viagem, já que prezo a relação que temos. Entretanto, se você faz tão pouco caso, não perderei mais meu tempo.

Ele fica sentado no sofá, com a expressão terrivelmente séria, me encarando por alguns segundos. Tendo em vista que não falo absolutamente nada, ele se levanta e vai embora, me deixando sozinho e com uma situação que se encontra cada vez pior.

A próxima vez que o vejo, é quando vou ao seu quarto. A porta está aberta enquanto ele arruma sua mala. Eu sei que ele sabe que estou aqui, ainda que ele esteja de costas para mim. Não sei dizer se está me ignorando propositalmente ou deixando eu tomar a iniciativa da conversa. Seja o motivo que for, eu agradeço em silêncio.

— Eu não menti para você antes, não há nenhum problema entre nós. Não tenho nenhum problema com você – ele se vira para me ver e por instinto, me aproximo dele e o abraço. Nos primeiros segundos sinto seu corpo tenso com o contato, mas depois ele acaba retribuindo e sentindo a segurança de seus braços, continuo: – Eu não quero que viaje pensando que há alguma situação não resolvida entre nós. Me desculpa!

Ele não diz nada, mas eu sei que está tudo bem entre nós, porque Camus continua me abraçando e disposto a esperar até que eu me sinta satisfeito para desfazer o contato físico. O problema é que eu não quero soltá-lo. Não quero que ele vá em missão sozinho, porque não sei se pode ser perigoso, não quero ficar semanas sem vê-lo. Tenho pavor só de pensar que posso perdê-lo novamente.

— Durma comigo – meu mestre diz, me fazendo sair do espiral de pensamentos negativos – Não sei o que está passando, mas é visível que você precisa de algum conforto que minha presença te proporciona. Parto amanhã bem cedo, mas pode dormir aqui se você quiser.

Me desfaço do abraço e sem dizer nada, porque tenho medo de falar algo e esse momento acabar, tiro minha camiseta e meu sapato e deito na cama de Camus. Já meu mestre espelha meus movimentos logo após fechar a porta de seu quarto e apagar a luz.

Quando nós dois estão deitados na cama, me movo para apoiar minha cabeça em seu peito e parte de mim treme, porque o que eu mais queria era poder explorar toda essa pele nua que está disponível, enquanto minha outra parte está agradecida a todos os deuses por ter a oportunidade de estar disfrutando esse momento. Camus então me envolve em seus braços fortes mais uma vez e dá um beijo suave em meus cabelos e eu sei que vou guardar essa sensação por toda minha vida de estar tendo contato pele a pele com ele e ver um lado de Camus que poucos tiveram o privilégio.

— Seja o que está te atormentando – Camus diz sussurrando – você não precisa me falar se não quiser, mas pelo menos deixe ir. Você está seguro comigo.

Será que se eu dissesse que te amo e te beijasse, você corresponderia? Será que continuaria ao meu lado apesar de meus sentimentos? Por enquanto não é um risco que estou disposto a correr, então te aperto mais forte e estar em seus braços assim e ter sua confiança, para mim já é o suficiente.

”Não consigo dizer se é bom ou mau. Assim como o ar me parece vital. Onde quer que eu vá o que quer que eu faça. Sem você não tem graça...”

Os dias foram se transformando em semanas e apesar de cumprir minhas obrigações com o mesmo rigor e dedicação que era esperado de mim, afinal não queria decepcionar meu mestre quando regressasse e sem dúvida nossos alunos não mereciam menos que minha total atenção, algo não estava bem. No começo eu ainda estava eufórico e feliz pelas lembranças de nossa última noite juntos que me fazia sentir em paz. Entretanto, na medida que o tempo foi passando, comecei a ficar ansioso, porque não tinha notícias suas. Então meus dias eram divididos entre preocupação e saudade.

Ninguém me falava nada, inclusive não tinha ideia se sua missão era perigosa ou não. Se você tinha enviado notícia ou não. Até que um dia Shion ficou com pena de mim e disse que eu não tinha que me preocupar porque a missão tinha baixo risco, que você estava bem. Isso me deixou aliviado, ainda que intrigado porque ninguém poderia me dizer que missão era essa. De qualquer maneira, o santuário ainda tinha muitos segredos que na maioria das vezes não eram compartilhados.

Então minha rotina era fazer o que tinha que ser feito e esconder que sentia terrivelmente sua falta. Ainda que todos sabem que sou apegado a você, não posso dar motivos para outro tipo de especulação. Muitas pessoas pensam que te vejo como uma figura paterna, o que é ridículo de muitas maneiras, afinal temos só seis anos de diferença, mas aproveito dessa situação para conseguir informações sobre seu bem estar, então talvez eu seja culpado por reforçar essa imagem.

Estou divagando tudo isso, porque hoje é meu aniversário e você não está aqui. E eu deveria estar animado, porque está acontecendo uma festa para comemorar mais um ano de vida, mas a verdade é que eu queria que estivesse aqui. E ainda que eu queira te culpar, sei que não posso, porque as obrigações vêm em primeiro lugar, entretanto faz muito tempo que você não me deixa tanto tempo sozinho.

Não que a festa esteja ruim, longe disso. É sempre muito bom passar um tempo de qualidade com meus amigos e ver todos se divertindo, sem grandes preocupações de quando alguém vai tentar matar a deusa para dominar o mundo. É gostoso disfrutar de momentos de paz e felicidade, colocando o papo em dia com os outros cavaleiros de bronze, porque nem sempre temos a oportunidade. Então passei boa parte da minha festa conversando com Seiya, Shiryu, Shun e Ikki.

Me afasto por um momento para ir por uma bebida, quando vejo por minha visão periférica alguém entrando no salão e automaticamente me viro para ver quem é.

— Ele não vai vir, você sabe – Milo diz, aparecendo do nada do meu lado – então é melhor você parar de olhar esperançoso a cada vez que alguém entra por aquela porta.

— Eu sei que ele não vem, assim como não estou olhando para porta toda hora – respondo friamente, como se ele tivesse falando um verdadeiro absurdo, apesar de que Milo estar certo sobre minha atitude.

— E você acha que me engana, mas enfim – Milo diz com um levantar de ombros – Camus me pediu um favor antes de ir, me disse para te avisar que seu presente de aniversário esta em uma caixa embaixo da cama dele.

Agradeço pelo recado e me dirijo a casa de Aquário com pressa, dividido entre a curiosidade de saber que presente é esse e felicidade de descobrir que ainda que eu o estava evitando, Camus se dignificou a deixar algo para tornar meu aniversário especial.

Me sento na cama de Camus, juntamente com a caixa e ao abri-la, a primeira coisa que vejo é uma Cruz do Norte com um cartão embaixo. Não posso evitar que meus olhos se encham de lágrimas com a lembrança que minha mãe me deu isso antes de morrer. Um filme começa a passar em minha cabeça, sobre os momentos que vivi com ela e como a utilizaram meus sentimentos por ela muitas vezes para me atingir. Ainda emocionado por esse gesto de meu mestre de me dar algo para lembrá-la, ainda que ele seja contra todo o sentimentalismo, abro o cartão que contém a seguinte mensagem: “Já que você pensa muito no passado, então a cruz para poder seguir em frente. E o segundo presente, é óbvio o que significa.”

Coloco gentilmente a cruz e o cartão na cama e com minhas mãos estão tremendo de emoção, movo a caixa para poder ver o que seria esse segundo presente, quando me deparo com um livro sobre as fábulas e história da Grécia (algo que já escutei Camus falando algumas vezes, porque é um tema que ele gosta), um livro em francês, contando sobre a beleza do país natal de meu mestre e em cima um esquife de gelo da Armadura de Aquário.

— Oh não, ele sabe – digo em voz alta após sentir um frio na espinha – Ele sabe e estava jogando comigo ou ele adivinhou. Não posso acreditar que ele sabe.

— Espero que tenha gostado do presente – escuto uma voz que vem da direção porta do quarto – Mas estou realmente interessado, é em saber o que exatamente eu sei, Hyoga?

Eu congelo ao ouvir essa voz, porque em algum momento não me dei conta que não estava mais sozinho no quarto, ao mesmo tempo que sinto meu coração bater mais depressa. Minha cabeça é um fluxo de pensamentos. Ele está aqui, mas não era para ele estar, Milo me disse. Será que aconteceu algo de ruim que fez ele voltar antes. Eu senti muito a sua falta. Ele me escutou falar.

Sons de passos ecoam enquanto eu ainda não sou capaz de dizer nada, nem ao menos olhar para ele. Escuto uma mochila sendo deixada na cadeira e o peso da cama com alguém mais nela sentado. Camus se senta no outro lado, onde ele pode ver meu rosto e decido que não posso mais evitar e levando a cabeça para encontrar seus olhos calmamente me vendo. Estou ferrado.