Flor do deserto

Capítulo 4- O jogo começou


Após mais três horas de atendimento ininterruptos, Emanuelle estava esgotada e faminta. Graças aos céus os atendimentos acabaram e os pacientes estavam todos estabilizados. “Acho que agora já posso ir almoçar” pensou a doutora, no que olhou para o relógio e já eram três e meia da tarde.

Logo mais se dirigiu à cantina, já que nessa hora o refeitório estaria fechado.

Fez seu pedido à moça do caixa: um sanduíche natural, suco de limão e um brownie. “Não é um almoço, mas vai me fazer aguentar até o jantar”, pensou a doutora. Pegou a bandeja com seu “almoço”, e quando foi em direção às mesas do refeitório, encontrou Molly sentada tomando um café e comendo biscoitos. Emanuelle tinha chegado há um ano no hospital, e Molly Hooper foi uma das primeiras que a acolheu. Desde então a amizade das duas foi sendo alimentada por alguns cafés e conversas jogadas fora, quando tinham um tempinho no hospital. Assim que Molly a viu acenou, e a jovem doutora foi sentar-se na mesa com a colega. Mal acabou de sentar, Emanuelle foi falando:

— Molly, que bom que te encontrei. Eu precisava mesmo falar com você -disse enquanto abria o pacote do sanduíche e dava um longo gole no suco- é sobre a autópsia de um jovem que faleceu essa manhã, vítima de arma de fogo.

— Ah sim, lembro que recebi o corpo no necrotério essa manhã, junto com uma solicitação assinada por você. Mas com esse atentado, recebi alguns corpos minutos depois, e eles tinham prioridade para a análise. Então quando terminei todos resolvi vir aqui na cantina tomar um café, antes de começar a autópsia do seu ex-paciente. Inclusive, faz pouco tempo que encontrei Sherlock aqui na cantina, ele veio comprar uma água, e ele falou que Mary e John foram feridos no atentado, mas ele me disse que ambos estavam bem, e que a cesárea de Mary tinha acabado a pouco tempo.

— Ai ótimo! Eu quando terminasse aqui, ia dar uma passada na enfermaria para saber como eles estão. Já que o sr Holmes deu essa informação, então creio que eles estejam bem. Ainda bem que aquele esquisito serviu para alguma coisa - disse essa frase final quase num resmungo.

— Ah, eu acredito que ele é um bom homem -disse Molly com um risinho tristonho.

— Molly, você vive falando dele, dos seus dotes físicos e intelectuais. Mas isso não tira o fato de que ele é muito esquisito e mal-educado.

— Bom -disse esboçando um sorrisinho- até que eu poderia ensiná-lo a ter boa educação.

— Ah minha querida, ali mesmo só com um adestrador profissional- respondeu Emanuelle, o que fez as duas gargalharem. Após um suspiro Emanuelle falou em tom sério para Molly:

— Bem, voltando ao assunto, eu preciso que você faça a autópsia nesse jovem de uma maneira bem cuidadosa. Acredito que não foi um crime simples. Tem algo mais.

— Porque você acha isso?

— Por nada, só tenho essa impressão -disse enquanto passava a mão pelo bolso com o misterioso objeto.

— Certo, bom...você quer ver a autópsia?

— Quero sim, se não for lhe atrapalhar. Eu ia visitar os Watson, mas já que sei que eles estão bem, posso vê-los mais tarde.

— Ah não vai atrapalhar, será bom você ver, afinal quem atendeu ele foi você.

— Verdade. Então vamos lá.

Dito isso, as duas se levantaram da mesa e foram em direção ao necrotério.

***

Sherlock voltou ao apartamento onde Mary estava instalada. A cesárea ocorreu sem intercorrências,e a pequena Rosamund nasceu bem, embora prematura, estava respondendo bem aos estímulos, e logo logo estaria de alta da UTI neonatal.

Ao chegar no apartamento, encontrou Mary dormindo, e John com o braço esquerdo engessado, sentado ao lado de Mary, com a mão direita alisando os cabelos da esposa. Sherlock entrou em silêncio e sentou-se numa cadeira perto da porta da sala. Com a garrafa d'água nas mãos, e quase num sussurro falou:

— Trouxe água.

— Eu estou bem- respondeu John, sem tirar os olhos da esposa.

— Eu...sinto muito pelo que aconteceu hoje - disse Sherlock sem tirar os olhos do chão.

— Porque você sente muito? por acaso foi você que colocou as bombas no prédio? - perguntou John sem alterar a voz, se virando para o amigo.

— Não...mas poderia ter impedido...se eu soubesse…

— Aceite esse caso e pegue esses desgraçados que fizeram isso- Interrompeu John, falando entredentes.

Sherlock aquiesceu com a cabeça, em seguida levantou-se e ajeitou a aba do sobretudo.

— Onde vai?-perguntou John.

— Vou falar com Lestrade, quero autorização para entrar no que restou da praça de alimentação, vou pegar esses desgraçados. Me ligue se tiver novidades.

John aquiesceu com a cabeça. Sherlock ia saindo do quarto, mas se virou da porta e disse em tom desafiador para John: “O jogo começou ”.

***

Na sala do necrotério, Molly iniciou a autópsia do jovem. A causa da morte realmente fora devido a perda de sangue, junto com hemorragia interna devido aos órgãos atingidos pelos disparos. “Cerca de cinco projéteis foram retirados do corpo do rapaz, parecem pertencer à uma pistola simples, talvez uma Beretta; vários órgãos foram atingidos pelos disparos, dentre os quais o fígado, rins, baço…” narrava Molly para um pequeno gravador, enquanto Emanuelle assistia tudo à uma certa distância. Perdida em seus próprios pensamentos, a jovem doutora repassava mentalmente a cena entre ela e o rapaz que jazia morto ali. “Salve a Inglaterra…” pensou ela “será que foi mesmo esse grupo terrorista que fez isso com ele? será que ele não estava delirando? o que será esse objeto?” pensou enquanto passava a mão sobre o bolso. Resolveu colocar a mão dentro para apalpar o objeto. Aproveitando que a legista estava de costas, retirou o objeto de seu bolso, e grande foi a sua surpresa. “Um Pen Drive?!” sussurrou para si mesma, e logo guardou o objeto. Repentinamente foi tomada de seus pensamentos por Molly, que a chamava: “Manu, você precisa ver isso”. No que Emanuelle se aproximou, viu que a legista tinha aberto a boca do cadáver, e estava puxado seu lábio inferior para baixo. Para a surpresa de ambas as doutoras, na parte interna do lábio inferior do defunto estava tatuado em tinta preta duas palavras bem desenhadas, em árabe:

حكم الله

Emanuelle empalideceu, deu dois passos para trás e levou a mão à boca. Molly ao ver o choque da colega perguntou:

— Manu, você está bem?

Hukm Allah…

— O quê?

— É o que significa, o escrito está em árabe - disse sem tirar os olhos do cadáver.

— Você sabe árabe?-perguntou Molly surpresa.

— Sim, sim...já estive no Egito há muito tempo. Mas olhe, isso não é um desenho, está escrito Hukm Allah, traduzindo para nossa língua.

— Isso não é o nome do grupo terrorista responsável por essa onda de ataques em toda Inglaterra?

— Exatamente - respondeu Manu, olhando com gravidade para a legista.

Molly imediatamente soltou o bisturi, retirou as luvas e o avental, pegou seu celular e discou para o telefone de Gregory Lestrade, colocando em viva voz. Alguns toques depois, uma voz do outro lado da linha respondeu a chamada:

— Oi Molly, por favor, fale rápido! A Scotland Yard está um inferno !

— Lestrade, acho que temos uma pista que pode nos levar ao grupo terrorista responsável por esses atentados, o “Huluk kalak”

— É “Hukm Allah” Molly - respondeu Emanuelle baixinho para a colega, mas o suficiente para Lestrade ouvir:

— E quem é essa aí na linha?

— O nome dela é Emanuelle, é uma médica daqui do hospital. Foi ela quem traduziu a pista em árabe no corpo do defunto, digamos assim -respondeu Molly.

— Entendi. A pista estava em árabe é? parece importante. Vou mandar alguém.

— Senhor Lestrade, se me permite - falou Emanuelle- eu prefiro que só o senhor saiba disso por enquanto. E, se for possível, gostaria que o senhor visse pessoalmente o que vimos aqui.

Um silêncio pairou na ligação, e então quando as doutoras pensavam que Lestrade havia desligado ele respondeu:

— Chego aí em 20 minutos.

— Ótimo - respondeu Molly - estaremos esperando o senhor na cantina. Tendo dito isso, desligou.

***

O táxi tinha acabado de chegar na Scotland Yard. Sherlock pagou e saiu do táxi se dirigindo para dentro do prédio. Ao chegar à sala de Lestrade, o viu já de saída, e imediatamente se interpôs e falou:

— Lestrade, preciso de autorização para entrar no local do atentado.

— Para quê? Vai por acaso aceitar a proposta de seu irmãozinho e nos ajudar a pegar esses canalhas?- disse enquanto vestia seu casaco.

Sherlock rangeu os dentes, e quase num rosnado respondeu:

— Preciso de acesso livre se você quiser ver esses “canalhas” na cadeira elétrica.

— Então vai nos ajudar? ótimo! Então venha comigo, soube de algo melhor do que escombros para avaliar.

— O que é?

— Uma pista num defunto, lá no necrotério do St Bart’s, Molly ligou já faz uns minutos. Vamos, estamos atrasados.

Rapidamente Sherlock e Lestrade entraram no carro da polícia e foram para o hospital, e no caminho Lestrade explicou a Sherlock sobre a ligação e pelo pedido de confidencialidade da outra doutora na linha.

— E essa outra doutora que sabe árabe tem nome?- perguntou Sherlock

— Tem sim, é um nome cristão...Gisele...não, não, é Emanuelle. Me lembrei é Emanuelle.

Sherlock olhou surpreso para Lestrade, e perguntou:

— Tem certeza que o nome dela é esse mesmo?

— Tenho sim, “Emanuelle que sabe árabe” - disse Lestrade em tom de brincadeira, entretanto Sherlock permanecia sério e com feição severa falou:

— Pare no 221b antes, preciso pegar uma coisa.

— Mas Sherlock, estamos atrasad…

— Agora Lestrade! ou me nego a ajudar.

Dando um longo suspiro, Lestrade deu a volta na pista e seguiu para o 221b.

***

— John...John...

Mary tinha acordado, e o marido estava descansando a cabeça no leito, quando foi despertado pelo chamado da esposa.

— Mary, minha querida, você está bem -disse, abrindo um longo sorriso e seus olhos se enchendo de lágrimas.

— Meu querido -disse Mary, baixinho, correspondendo ao sorriso do marido. Ele a beijou demoradamente, e depois falou:

— Eu vi a rosie, fui na UTI faz um tempinho e pude vê-la de longe, estava dormindo tranquilamente, nossa menina é linda.

Mary começou a chorar na hora, e perguntou:

— Como ela está John?

— Está bem, forte e saudável como um touro. A obstetra disse que ela estava com oito meses e meio, então não foi tão prematuro assim o nascimento dela. Ela está respondendo bem aos estímulos e logo logo vai estar de alta da UTI.

— Graças à Deus...graças à Deus, disse enquanto enxugava o rosto.

Um silêncio se instalou naquele quarto. John nada dizia, só olhava docemente para Mary, brincando com uma mexa do cabelo dela. Foi quando finalmente ele falou:

— Você estava certa.

— Sobre o quê?

— Sherlock. Ele aceitou o caso, e vai pegar os responsáveis por isso.

— Nossa. Eu só não esperava que fôssemos o motivo.

— Nem eu, mas o que importa é que graças aos céus estamos bem, e nossa Rosie também.

Dito isso John beijou a testa da esposa, e disse que ia buscar algo para comer na cantina, ao que Mary falou:

— Traz para mim ovos fritos com bacon - esboçando um sorriso brincalhão.

— Para você mocinha, só doses diárias de carinhos, beijos e aquela papa de aveia horrorosa de hospital - falou em tom brincalhão, ao que Mary respondeu com uma cara de nojo. E então saiu em direção à cantina.