Flor do deserto

Capítulo 5- Desmascarada


— Molly, tem certeza que ele vem?- perguntou Emanuelle.

— Tenho sim. Pelo menos ele disse que estaria aqui em vinte minutos.

— Já se passaram os vinte e ele ainda não chegou.

— Ele deve estar chegando, ele não perderia a chance de ter alguma informação útil.

As duas doutoras estavam novamente sentadas na cantina. Emanuelle saboreava uma xícara de café grande. As duas estavam em silêncio, quando Molly finalmente perguntou:

— Manu, porque você quis que o inspetor viesse pessoalmente para ver o corpo? porque outra pessoa não poderia vir no lugar dele?

A doutora refletiu um pouco antes de responder à colega legista. Ela poderia confiar em Molly? e se o paciente estivesse delirando? De qualquer forma ela preferiu esperar o que o inspetor tinha a dizer sobre o que acharam, e se fosse necessário, ela contaria o que o jovem baleado sussurrou no seu ouvido antes de morrer.

— Olha Molly, se isso que achamos no cadáver for realmente relevante para as investigações, é melhor que o mínimo de pessoas saiba disso. Eu só vi Lestrade uma vez onde eu moro, mas se foi para ele quem você ligou, ele deve ser de confiança, e deve ser o primeiro a saber.

— E se que o que achamos não for relevante?

— Acredite, tenho certeza que será.

Novamente o silêncio pairou sobre as duas. Então Emanuelle olhou para o relógio e, levantando-se disse:

— Bom, já são quatro e meia. Como não sei de que horas o inspetor vai chegar, vou dar uma passada na emergência, saber se precisam da minha ajuda e avisar que qualquer coisa vou estar no necrotério.

— Certo -concordou Molly com a cabeça- Não vá demorar, ele vai chegar a qualquer momento.

Emanuelle acenou com a cabeça e seguiu para o setor da emergência. Molly permaneceu sentada com sua 4° xícara de café do dia, foi quando avistou John de longe, indo em direção ao caixa. Então ela o chamou e acenou, levantando-se e indo em direção à ele para cumprimentá-lo e saber do seu estado e da esposa.

Enquanto isso a jovem doutora entrou no setor da emergência. O contraste era gritante. Há algumas horas atrás a multidão, a correria, o barulho; mas agora estava tudo tranquilo, sem pacientes dando entrada para a cirurgia, nem mais aquele mar de gente que transtornou aquela manhã. Emanuelle resolveu então ir para a sala de procedimentos, onde achou seu colega Marcus, olhando o monitor de uma paciente entubada e desacordada. Ela então se aproximou e falou:

— Oi Marcus -no que ele respondeu com um largo sorriso.

— Oi Manu, você sumiu.

— Foi, eu estava ocupada em outro setor, já que por aqui as coisas se tranquilizaram. Inclusive eu vim para avisar que se precisarem de mim, mandem me chamar no necrotério, ou se for o caso pode ligar para mim.

— O que você vai fazer no necrotério? Algum paciente em especial?

— Não, não. É aquele jovem baleado de hoje de manhã; já que fui eu quem atendeu é bom estar presente.

— Ah tá, ok então. Avisaram à polícia?

— Sim, avisaram sim.

Marcus voltou a olhar o monitor,e antes que Emanuelle saísse, hesitante falou:

— Manu...éh...de que horas você larga hoje?

— Umas oito horas, porque?

— Eu queria saber se...é porque abriu um Pub novo perto da minha casa, e eu gostaria de saber se você gostaria de ir lá comigo hoje -Manu ficou surpresa com o convite, mas lembrando-se do Pen Drive em seu bolso, respondeu em tom triste:

— Marcus, agradeço o convite, mas infelizmente hoje não posso. Tenho umas coisas importantes para resolver em casa.

— Ah, certo, sem problema -respondeu Marcus com um sorriso meio sem graça- de qualquer forma o convite está de pé.

— Certo, quem sabe um outro dia -respondeu Emanuelle com um leve sorriso; e acenando para Marcus, saiu.

Enquanto caminhava até a cantina, a doutora pensava na proposta de Marcus. “Nossa -riu-se a doutora- quem diria que alguém do porte dele se interessaria por alguém feito eu”. Marcus era o tipo clássico de ator de novela: alto, forte, cabelos escuros arrumados num corte moderninho, barba rala, mas bem feita, olhos verdes penetrantes, queixo forte, e uma marcante presença. Ao se imaginar indo ao Pub com o colega, se divertindo, dançando, com as mãos dele em sua cintura, e em seu ouvido ele propondo que a “curtição da noite” se estendesse para a casa dele; as memórias de Emanuelle, assaltaram-lhe sem piedade. Esse inusitado convite trouxe de volta recordações que ela desejara nunca ter; e novamente um peso enorme se instalou sobre seu estômago. “Não - ela pensou- isso não vai acontecer comigo, estou segura...a solidão me protege”.

Emanuelle foi trazida de volta de seus pensamentos por uma mensagem que acabara de receber em seu celular.Era Molly: “eles chegaram, venha para o necrotério”. “Eles?” Emanuelle leu surpresa, então, a passos rápidos, seguiu até o necrotério.

***

— John, não precisa estar aqui, você deveria estar com Mary- falou Sherlock enquanto colocou um envelope pardo que trouxera consigo do 221b em cima de um dos balcões.

— Ela está bem Sherlock, acordou já faz um tempo, e se ela souber que eu desisti de obter uma informação importante, para ficar sentado ao lado dela no quarto, é capaz dela vir até aqui me arrastando pela orelha. - John riu da própria constatação que chegou, mas Sherlock permaneceu sério, enquanto olhava para o saco preto onde estava o corpo do jovem. Lestrade estava logo atrás deles, tomando o máximo de distância que poderia, definidamente não gostava daquele lugar.

Molly se aproximou deles e deu um par de luvas para Sherlock e para Lestrade, menos para John, já que estava com um dos braços engessado. A seguir a legista abriu o saco preto, e narrou rapidamente para o trio a análise da autópsia, incluindo a causa da morte, e finalmente o ponto em que ela achou o inscrito em árabe dentro da boca do defunto, mostrando-o ao trio. Sherlock desde o momento que Molly começou a falar já se aproximara do corpo e começou a analisá-lo, buscando por marcas de agressão física, ou de defesa, sinais de enforcamento ou sinais de imobilização. Sherlock ainda estava debruçado sobre o corpo, quando Emanuelle entrou na sala, e olhou espantada para os três que estavam ali. Então se aproximando de Lestrade falou baixinho, num leve tom de irritação:

— Porque trouxe eles? Pedi que guardasse segredo sobre isso, é importante.

— Não se preocupe doutora, Sherlock está no caso, e ele é a pessoa mais capacitada para resolvê-lo, pode ficar tranquila que as informações aqui, não ganharão o público. E o John, bom... nos encontramos com ele na cantina junto com Molly, e como ele acompanha o Sherlock nos seus casos, porque não nesse também?

“Ah, sério? poxa porque não chamou toda a Scotland Yard e a Rainha da Inglaterra também” pensou Emanuelle, dando um suspiro. Embora chateada, a jovem concordou. Se o que falavam de Sherlock era verdade, ele seria a pessoa mais indicada para pôr um fim nisso.

— Não se preocupe, sabemos guardar um segredo tão bem quanto você, Emanuelle -falou Sherlock no tom mais sarcástico possível, enquanto saia de cima do defunto e olhando firmemente nos olhos da médica, dando uma entonação de desprezo ao citar o nome dela. A jovem respondeu franzindo o cenho em dúvida, não entendendo a atitude do detetive.

— Olhem, foi por isso que eu os trouxe aqui - disse Molly enquanto abria a boca do cadáver e os demais se aproximaram, inclusive Sherlock. Emanuelle continuou no mesmo lugar, encarando o detetive sem entender o motivo dessas hostilidades.

— Isso parece aquelas tatuagens caseiras -disse Watson.

— Não só parece como é -respondeu Sherlock, tirando um caderninho e uma caneta do bolso, e desenhou o escrito em questão.

— Emanuelle já traduziu, é o nome do grupo terrorista - disse Molly, mas Sherlock a ignorou e prosseguiu com o desenho.

— Escutem- falou John, com a ficha do paciente nas mãos- o prontuário diz que quem o trouxe foi a polícia. Segundo o relato dos oficiais, uma viatura estava rondando perto do local da agressão, quando ouviram disparos e foram verificar, e deram de cara com a vítima que veio correndo na direção deles pedindo socorro.

— Ele ainda conseguiu correr com essa quantidade de buracos jorrando sangue dele? -perguntou Lestrade.

— Bom, é o que está escrito aqui, tem os nomes dos policiais, podemos interrogá-los depois.

— E você Sherlock, o que acha?- perguntou Lestrade.

— Não tenho certeza de nada ainda, só suposições - respondeu o detetive sem tirar os olhos do caderno.

— Bom, nos diga suas suposições, tenho que saber se o que vimos hoje aqui é relevante para o caso.

— Pode ter certeza que é.

— Porque?

— Porque é -Lestrade passou a mão pela testa, num claro sinal de impaciência.

— Olha Sherlock, isso aqui só vai funcionar se você me der as informações que tiver, como também se eu lhe der as minhas, fui claro? caso contrário você não vai ter acesso nem sequer à um pedaço de tijolo para avaliar.

Sherlock olhou para Lestrade e sentiu vontade de rir, sabia que ele não teria firmeza para manter a sua palavra, mas para não prorrogar aquela situação, respondeu depois de um longo suspiro:

—Tenho a impressão de que estamos diante de um falecido membro do Hukm Allah— Tal dedução fez Emanuelle empalidecer.

—Porque você diz isso?- perguntou Emanuelle, ao que o detetive respondeu quase num fôlego, sem tirar os olhos frios da doutora:

— Esse jovem tem resíduos escuros debaixo das unhas, o que poderia ser graxa, mas pelo que vi da roupa dele que está em cima do balcão, não há resíduos de graxa nela, o que descarta a teoria do “jovem mecânico”. Logo acredito que seja pólvora, de provável manipulação caseira, já que em níveis industriais ela é manipulada com luvas. As bordas dos pêlos de suas sobrancelhas estão um pouco queimadas, o que me diz que ele é quem montava os explosivos caseiros, e algumas vezes havia acidentes na “linha de montagem”. A tatuagem em sua boca é feita em casas clandestinas, dado a qualidade e a tonalidade do preto usado na tatuagem, sem falar que o local escolhido não é o dos mais comuns, o que chamaria a atenção de qualquer casa oficial, principalmente porque o escrito é em árabe, e no contexto em que estamos vivendo isso não passaria despercebido. E ainda pela cor da tinta, é uma tatuagem recente, não está muito desbotada, o que me faz acreditar que além de ser ex-membro do grupo, ele era uma célula adormecida, tendo sido recentemente ativada.

— Incrível -respondeu Watson, chamando a atenção de todos- o que é? foi incrível sim- Sherlock revirou os olhos e complementou:

— Mas isso não é o suficiente, preciso de mais informações.

— Tipo o que?- perguntou Lestrade.

— Quem o matou, porque o matou...não posso fazer um bolo sem ovos.

— Não temos tempo para isso, nesse momento eles podem estar arquitetando outro ataque, temos que abrir essas informações para mais pessoas.

— Como quem? o anencéfalo do Anderson?

O bate- boca entre os dois detetives tinha iniciado, mas Emanuelle não estava prestando a atenção. A explicação de Sherlock ecoava em sua mente, “isso não é o suficiente, preciso de mais informações”. Essa frase a fez pensar: “Devo confiar neles? dizer o que o jovem me disse antes da morte? ‘não confie em ninguém’ ele disse, mas que opção tenho eu? Preciso falar...ó céus, no que eu fui me meter”. Respirando profundamente, Emanuelle finalmente falou interrompendo a discussão:

— Não é só isso.

— Hein? - Perguntou Lestrade.

— Tem mais coisa.

— Tipo o quê? - perguntou Sherlock em tom de desprezo, repassando mentalmente se tinha deixado de falar alguma coisa que viu no defunto. A doutora mais uma vez respirou fundo e prosseguiu.

— Fui eu quem o atendi quando chegou, ele tinha perdido muito sangue, estava entrando em choque já, não eram grandes as chances dele. Então eu perguntei para ele quem fez isso, então ele agarrou no meu colarinho e falou no meu ouvido: “Hukm Allah, salve a inglaterra, não confie em ninguém”

Todos na sala olhavam surpresos para Emanuelle, menos Sherlock, que permanecia com uma feição indescritível.

— Manu, você não me falou isso -falou Molly perplexa.

— Eu não contei para ninguém Molly, vocês são os primeiros que estão sabendo disso- disse, se virando para Lestrade e continuou- O senhor entende agora porque eu não queria que ninguém mais se envolvesse? se o que o sr Holmes disse for verdade..

— “Se” não, isso é verdade- interrompeu o Holmes mais novo.

— Tá, sendo isso verdade, tenho medo que algo possa me acontecer.

— Alguém mais sabe que você o atendeu?- perguntou Lestrade.

— Sim: algumas enfermeiras, meu colega Marcus, que chegou no leito quando o paciente já havia falecido, sem falar no prontuário dele que está assinado por mim e por Marcus.

— Mas eles viram quando o jovem falou com você?

— Não. As enfermeiras estavam muito ocupadas, não perceberam o que houve, e o Marcus, como já disse, chegou depois do falecimento.

— Entendi. Bom, sendo esse o caso, é melhor que essa informação não saia dessa sala então. Entretanto preciso de mais pessoal para tocar a investigação para frente; descobrir onde esse rapaz morava, onde trabalhava, essas coisas -Lestrade parou por um momento, e coçando o queixo, continuou- Façamos o seguinte: vou levar esse caso ao meu pessoal, mas eles vão investigá-lo como sendo um homicídio comum. Só nós saberemos que não foi tão comum assim; enquanto Holmes paralelamente investiga as peculiaridades desse caso. Estamos acertados assim doutora?

— Por mim tudo bem, só quero ter garantia de que...

— Tem mais alguma coisa que está escondendo de nós?- interrompeu Sherlock, tomando a jovem de surpresa, fazendo ela passar a mão pelo bolso com o Pen Drive, rapidamente pensou “ainda não, isso não”; então respondeu:

— Não...não estou escondendo mais nada.

Sherlock estreitou os olhos, encarando a doutora num olhar desafiador. Emanuelle estava farta daquele comportamento dele o dia inteiro, então alfinetou com uma grande irritação na voz:

— Me diga você então, Sr Holmes, se escondo algo! Você não consegue ler as pessoas, e desvendar seus segredos? - falou em tom de ironia e abriu os braços, em desafio- Então vamos! me decifre!!

Tendo consciência de que não era capaz de decifrá-la, Holmes sentiu uma forte onda de irritação subindo pela sua cabeça, que se transmitiu para seu olhar, embora seu rosto permanecesse impassível. Seus olhos cor cristal assumiram um tom sombrio e os músculos da sua mandíbula estavam retesados. O detetive então, a passos pesados, pegou o envelope pardo de cima do balcão, abriu, e tirou dois documentos. Eram duas certidões de nascimento: uma em árabe e outra em inglês . Emanuelle estremeceu ao ver Sherlock se aproximando dela com aqueles papéis, então com a voz trêmula perguntou:

— Onde conseguiu isso?

— Na sua casa. Devia ter mais cuidado onde você guarda esse tipo de coisa Emanuelle...ou será que deveria chamá-la Aysha Malikah Goes?

A jovem doutora ao ouvir esse nome estremeceu, suas pernas ficaram bambas, e ela sentiu o mundo girar ao seu redor; de forma que teve que sentar-se para não dar de cara no chão. Suas lágrimas começaram a correr pelo rosto, e dizia baixinho para si mesma: “fui descoberta...”.