Flor do deserto

Capítulo 3- Quem é você?


Rapidamente Emanuelle e Marcus mobilizaram vários médicos de outros setores para o setor de emergência, as salas cirúrgicas e as de procedimento estavam preparadas; logo toda equipe estava pronta para a chegada das ambulâncias com os pacientes, o que começou a ocorrer alguns minutos depois.

Pelo comentários dos socorristas, parecia que uma bomba caseira foi alojada em um dos lixeiros da praça de alimentação, no terceiro andar do prédio. Pelo horário do ataque, a praça deveria estar lotada.

Dentro de instantes a sala de emergência, antes silenciosa, agora estava tomada por um mar de gente; alguns ensanguentados da cabeça aos pés, outros chegavam desacordados, outros já com o processo de reanimação cardiopulmonar em andamento. Gritos e gemidos tumultuaram o ambiente, ora de familiares inconsolados pelo falecimento de um parente, ora da própria equipe de resgate pedindo para abrirem espaço; o cenário era caótico. Dentre todos os atentados, esse seria o com maior saldo de vítimas.

Emanuelle já tinha atendido alguns pacientes, de forma que quando voltou ao grande salão de acolhimento para atender mais um, uma figura na multidão lhe era familiar: homem de estatura média, de meia idade, traços firmes e postura de soldado, A doutora logo reconheceu o médico que constantemente visitava seu peculiar vizinho, e logo correu em direção à ele:

— Sr Watson? Sr Watson!! -o médico tinha metade do seu rosto banhado em sangue, resultante de um corte profundo na testa; o braço esquerdo estava imobilizado, por uma provável fratura, sua roupa estava mesclada de poeira e sangue.

— Emanuelle? Emanuelle!! Graças aos céus você apareceu! -disse enquanto caminhava à passos curtos em direção à doutora.

— Nossa, você está com um corte feio na testa! Venha, vou levar o senhor para a sala de procedimentos, vou dar um jeito nisso.

— Não, não! Minha esposa, Mary, ela está aqui? Foi trazida? Quero vê -la primeiro!

— A sua esposa estava com o senhor no momento da explosão?

— Sim e não...tínhamos saído a pouco tempo da loja de artigos para bebês,estávamos na praça de alimentação almoçando, então ela disse que ia pegar um refrigerante num quiosque e se levantou e foi em direção à um. Poucos minutos depois algo explodiu perto de todos nós...só recobrei a consciência quando estava sendo trazido para cá. Por favor, ela está grávida, preciso saber se ela e minha filha estão bem -dito isso começou a irromper em lágrimas.

— Calma John, nós vamos resolver isso, mas primeiro preciso cuidar do senh…

— Eu estou bem, droga!! - explodiu abruptamente o doutor- quero saber como está minha mulher!

Emanuelle recuou um passo, assustada pela reação repentina do doutor. Ela botou a mão no queixo, pensou um pouco, e disse:

— Está certo, venha comigo.

A doutora andou rapidamente pela sala de procedimentos, seguida imediatamente por John. Perguntou rapidamente a cada colega se ,por acaso, tinham atendido alguma gestante, no que a resposta foi negativa de todos eles. Por último Emanuelle perguntou a uma socorrista, que tinha acabado de chegar com mais vítimas do atentado, se retiraram do local alguma vítima que estava gestante, e explicou resumidamente a história. A moça disse que não sabia, e imediatamente contactou, pelo rádio do seu colete, outros colegas socorristas que estavam também na ocorrência, de forma que Emanuelle e John ouviram o diálogo: “ todos os carros, temos a informação de uma vítima gestante, repetindo, uma vítima gestante estava na praça de alimentação no momento da explosão. Algum de vocês socorreu essa gestante?” .A resposta veio segundos depois: “aqui é o carro quatro na escuta, retiramos do prédio uma gestante, o nome é Mary Watson, ela está consciente, perdeu pouco sangue, está apresentando muitas dores, e apresenta sangramento vaginal..pelo estado da paciente, é provável que o choque tenha dado início ao trabalho de parto”, ao ouvir isso John sentiu o mundo girar ao seu redor, e sentou-se para não tombar no chão. Imediatamente Emanuelle tomou o rádio das mãos da socorrista e respondeu para quem estava do outro lado: “aqui na escuta é Emanuelle, residente de cirurgia geral; traga ela para o St Barts imediatamente! Uma equipe estará aqui pronta para recebê-la”. Dito isso, agradeceu à socorrista, pegou seu celular e começou a digitar uma série de números; e enquanto esperava a resposta do outro lado da linha, se abaixou e olhou para John, e disse em tom sereno:

— Preciso correr e preparar a equipe para receber sua esposa John, não posso ficar com você aqui. Você vai precisar de apoio, tem alguém que você queira chamar?

— Tem...o...Sherlock -disse John, atônito.

— Você tem o número dele?

— Sim...não...meu celular...perdi.

— Ok, ok, eu vou ligar para a senhora Hudson, eu tenho o número dela, ok? Marcus!! -gritou Emanuelle para o colega que passou perto dali, o qual se aproximou e ela disse:

— Por favor, preciso que você cuide dele pra mim agora certo? o nome dele é John Watson , é meu amigo, e a esposa dele está para chegar e ela está grávida. Tenho que preparar uma equipe obstétrica para recebê-la e mandá-la direto para o bloco cirúrgico. Quais obstetras estão de plantão hoje? - disse quase num fôlego só.

— Tem a Jenny, Louise, Richar…

— Ótimo, tenho o telefone da Jenny! Mais uma coisa: John está esperando um amigo, o nome dele é Sherlock. Assim que o anunciarem na recepção pode mandá-lo entrar para ficar com o amigo, não deixe John só, ok?

— Certo, certo; venha senhor -disse enquanto ajudava John a se levantar do chão.

— Obrigada Marcus -falou e logo virou para John e disse -vai ficar tudo bem, vá com ele agora, ok?

John acenou positivamente com a cabeça, ainda atônito, e foi levado pelo doutor para a sala de procedimentos. Assim que Marcus saiu, a doutora começou a fazer uma série de ligações para mobilizar a equipe, separar uma sala de operação no bloco. Entre uma ligação e outra, a doutora ligou para a Sra Hudson.

***

No 221b, Sherlock jazia sentado na sua velha poltrona. Na mesa de centro, do lado dele, estava um envelope pardo aberto com um bilhete assinalado por MH no final; era o pacote que Mycroft tinha enviado mais cedo ao irmão mais novo.

Sherlock folheava e passava a vista por aquele conjunto de papéis pela décima vez, parando sempre nas fotos que vieram junto com toda a papelada. Uma delas era uma foto de Emanuelle, com seus treze anos de idade, vestida com roupas típicas das mulheres virgens muçulmanas, seu rosto estava triste, e a ponta de uma mancha roxa podia ser vista emergindo do pescoço da jovem; a outra foto era a mesma que essa, mas estava editada com uma tarja branca embaixo, com uma palavra árabe que Sherlock pesquisou no Google Translate, e significava “desaparecida”. A terceira foi uma impressão de uma foto postada no Facebook, Emanuelle agora com seus dezessete anos, com um grupo de jovens em um acampamento de uma igreja brasileira; e a última era uma foto recente da imigração, do visto que ela tirou para ter autorização para morar na Inglaterra.

O resto dos papéis constava, entre outras coisas, do currículo universitário da graduação em medicina em uma faculdade brasileira, o histórico escolar, alguns artigos científicos publicados, e a impressão de um Jornal do Cairo-Egito, com a foto da mesma garotinha da do cartaz de “desaparecida”, com uma matéria toda em árabe.

Sherlock olhava reflexivo para a foto, observando a morena de olhos cor de mel, e cabelos de tonalidade escura, e sussurrou para si mesmo: “quem é você? Porque não tenho tanta facilidade de lê -la, como os outros?”. De fato, quando ele sondou Emanuelle pela primeira vez, pôde deduzir algumas coisas básicas sobre sua vida, como emprego, estado civil, animais em casa, noites mal dormidas,etc. Mas nada além disso. Qualquer traço mais profundo de sua personalidade, ou detectar se ela estava mentindo sobre algo, Sherlock não conseguia deduzir. Ela era insondável para ele, e isso o incomodava profundamente, ao mesmo tempo que o fascinava. Apesar de seu fascínio, se negou a trocar mais do que três palavras com ela. Sentia-se ameaçado por aquilo que não estava debaixo de seu “círculo de controle”, assim como seu irmão mais velho. É claro que John não sabia dessa “incapacidade” do amigo, no tocante à vizinha. Afinal Sherlock era orgulhoso demais para admitir. Sendo assim, John encarava a indiferença do amigo quanto à Emanuelle, como sendo algo normal da “psicopatia funcional” do amigo.

Sherlock estava mergulhando em seus pensamentos, montando mentalmente um esquema de todos os documentos que recebeu. “Falta alguma coisa- pensou- Mycroft não me entregou nenhuma certidão de nascimento, ou algum documento que comprove a nacionalidade da garota. Vou ter que descobrir por mim mesmo”. Passado um tempo, a Sra Hudson apareceu na porta, com os olhos cheios de lágrimas. Sherlock fez uma leitura rápida do rosto dela, sua expressão facial e corporal não eram de boas notícias. Ele bruscamente se levantou da poltrona, e com a respiração pesada, perguntou pausadamente: “o que houve com John e Mary?”

***

John estava sentado no leito e olhava fixamente para o chão, sentia uma angústia terrível no peito, sua ansiedade estava alcançando níveis estratosféricos, sua perna balançava sem limites como uma forma de eliminar essa terrível agonia que esmagava seu peito. Seus pensamentos estavam em sua esposa e sua filha. John rogava aos céus para que ambas ficassem bem.

— O senhor vai ter que fazer um Raio-X desse braço - falou Marcus, tirando o doutor do seu devaneio, enquanto suturava o corte na testa.

— Hã...ah, certo -disse John, baixando novamente a vista. Marcus viu a angústia do colega médico, então resolveu falar:

— Não se preocupe, a Manu é uma excelente médica. Ela pode não ser obstetra, mas se ela se comprometeu a ajudá-lo, pode crer que sua esposa está em boas mãos.

— Conhece ela há muito tempo?

— Há um ano aproximadamente -falou Marcus esboçando um riso meio sem graça.

— Você parece gostar dela -arriscou John.

— É uma boa profissional, e é uma boa pessoa, até que se prove o contrário -disse, fazendo John olhar com curiosidade para o médico, o qual continuou a falar- sem mencionar que ela tem uma beleza fenomenal- disse dando um sorriso um tanto malicioso, o que deixou John desconfortável.

Dentro de pouco tempo a sutura foi terminada, e logo Marcus levou John para fazer o Raio-X.

Próximo dali Emanuelle estava na porta de acolhimento do hospital, com três enfermeiras e a obstetra Jenny, prontas para receber Mary e levá-la para o bloco, que dentro de dois minutos chegou ao hospital. Assim que a ambulância chegou, Emanuelle logo reconheceu a esposa do médico. Ela estava com a parte de dentro das calças meladas de sangue, provavelmente a bolsa rompera. Havia alguns ferimentos leves no rosto e braços, sem falar na poeira que cobria seu corpo, que era quase um padrão entre os pacientes que estavam chegando. “Graças aos céus, ela não se machucou muito”, pensou. Embora a tenha visto poucas vezes no prédio, sempre que ela ia junto com John visitar Sherlock, tirava um tempinho para conversar com a sra Hudson e às vezes com Emanuelle também, se ela estivesse em companhia da senhora naquele dia. Quando os socorristas entraram com Mary no grande salão, Emanuelle logo se adiantou:

— Obrigada senhores, eu assumo daqui. Mary, querida, lembra de mim?- disse enquanto ela e as enfermeiras empurravam a maca para a sala operatória.

— Ah sim...a vizinha do Holmes -respondeu entre um gemido e outro.

— Ótimo, seu marido está bem, ok? Eu deixei ele aos cuidados de um colega, mas precisamos levar você para a sala de cirurgia agora, certo? Provavelmente você entrou em trabalho de parto e precisamos agir agora. Essa daqui é Jenny, ela vai cuidar do seu parto, ok? - Disse, estendendo a mão para a colega que estava também ao lado do leito.Mary consentiu com a cabeça, a jovem então continuou- preciso saber o que exatamente você está sentindo nesse momento.

— Muita dor quando respiro, sinto contrações em toda minha barriga - respondeu Mary ofegante, o que foi mais um gemido do que uma resposta.

— Certo, preciso verificar uma coisa - Emanuelle começou a apalpar as costelas de Mary, uma por uma, até achar o que procurava, fazendo a sra watson dar um alto gemido de dor. Mary estava com uma costela fraturada. Emanuelle não disse mais nada até chegar à sala cirúrgica, quando falou baixinho perto de Jenny:

— Ela está com uma costela fraturada, eu senti quando apalpei. Acho que ela não terá forças para expulsar essa criança por parto normal, a dor nas costelas não vão deixar ela fazer força suficiente.

— Entendi, vou fazer o exame do toque vaginal, para saber a posição da criança - dito isso, Jenny pegou um par de luvas, foi em direção à Mary e fez o exame. Então voltou para perto de Emanuelle e disse:

— Ela realmente está em trabalho de parto, a bolsa rompeu com o choque que ela sofreu, mas não deu tempo da criança entrar no canal vaginal, então podemos fazer uma cesariana- disse Jenny enquanto telefonava para as outras obstetras.

— Certo- respondeu Emanuelle, e se dirigiu ela e Jeny para Mary, para avisá-la:

— Mary, você fraturou uma costela e está em trabalho de parto, logo você não vai ter força para expulsar a criança através de parto normal, terá que ser por cesariana.

— Isso, mas não se preocupe -falou Jenny- vai dar tudo certo, falei também com a pediatra e já reservei uma UTI neonatal, já que seu bebê tem menos de 9 meses, e terá que ficar sob observação por um tempo.

Mary assentiu com a cabeça, ainda chorando, foi quando se dirigiu à Emanuelle e falou entre lágrimas:

— Por favor, me deixe ver meu marido, quero vê-lo se está bem.

Emanuelle lembrou-se quase com sobressalto do John, então assentiu com a cabeça e foi imediatamente buscá-lo.

***

O táxi parou na segunda entrada do hospital St Bart’s, já que a primeira estava bastante tumultuada pelas ambulâncias que chegavam. Sherlock pagou e desceu do táxi, indo direto para a recepção, que estava lotada de pessoas querendo informações de seus conhecidos. Sherlock mal chegara a falar com a atendente, quando foi grosseiramente interrompido por ela, que estava ao telefone, que o mandou se sentar e esperar a sua vez sem nem tirar a vista da prancheta à sua frente; ao que ele respondeu com um olhar desafiador. Com uma rápida análise dos anéis que a moça levava nos dedos, as marcas de ferro passado que havia em sua blusa e o cheiro do perfume dela, ele perguntou da maneira mais afável que conseguiu, chegando ao ponto de ser até infantil:

— Diga-me, o seu noivo sabe que você está traindo ele com seu coleguinha ali?

A moça prontamente tirou a vista dos papéis e olhou espantada para ele, e em seguida para o outro recepcionista que estava distante duas cadeiras da dela, e olhou de volta para Holmes, que esboçava um sorrisinho de canto de boca. Prontamente a recepcionista lhe deu toda a atenção que precisava.

***

John tinha acabado de sair do Raio-X com Marcus, e estava com resultado em mãos, quando Emanuelle o chamou para ver a esposa, antes dela fazer a cesárea. Seguido de um abraço e muitas lágrimas, marido e mulher conversavam. Jenny estava ao lado deles, explicando o que aconteceria a partir dali, e como sucederia a cirurgia. Emanuelle estava de longe, aproveitando para ver o resultado do Raio-X do braço de John. Enquanto olhava o filme do exame contra a luz, viu se aproximando do fim do corredor um homem com um sobretudo preto vindo em sua direção, precedido da recepcionista. Era o Holmes mais novo. Ela foi se aproximando também, de forma que quando chegou perto, a recepcionista disse: “doutora, tenho esse pacote aqui para você, boa sorte” e olhando com desdém para Sherlock, voltou. Ao que fez Emanuelle franzir o cenho, e em seguida balançou a cabeça negativamente, e se dirigindo a Sherlock falou:

— Que bom que veio sr Holmes, o John precisa que o senhor o acompanhe; a esposa dele entrou em trabalho de parto,e vai passar por uma cesárea. Enquanto que ele talvez precise engessar o braço. Por favor, preciso que o senhor fique com ele por enquanto, pois vou estar bem ocupada depois.

Sherlock ouvia tudo calado, olhando firmemente para a doutora. Seus olhos cor cristal assumiram um tom ameaçador, fazendo Emanuelle dar um passo atrás, enquanto esperava qualquer resposta dele. Ela sentia como se a qualquer momento ele fosse, tal qual animal feroz, atacá-la. A tensão foi rompida quando John saiu da sala onde sua esposa estava, pois iriam começar a operação e, avistando Sherlock e a doutora juntos, foi na direção deles para cumprimentá-los. Assim que chegou perto, ele foi primeiro para Emanuelle e a abraçou, agradecendo. Depois ele se virou para Sherlock, e disse:

— Muito obrigada por ter vindo - e dito isso abraçou o amigo.

— John como você está?- perguntou o Holmes mais novo, no que Emanuelle tomou a frente e respondeu:

— Ele está um pouco abalado Sherlock, deixe eu levar vocês para uma sala para…

— Eu falei com ele, não falei com você - respondeu bruscamente Sherlock, fazendo a jovem fechar o cenho, de forma que John, embora abalado, pudesse repreender o amigo:

— Sherlock!! Isso são modos?! Que bicho mordeu você?! - Sherlock já ia responder, quando Emanuelle tomou a frente e disse:

— Sem problema John, alguns de nós não receberam educação doméstica - o que fez Sherlock fechar o cenho dessa vez- você precisa ser visto por um ortopedista John, vou levá-lo para lá agora.

Atravessando os corredores, Sherlock seguiu a dupla calado. Logo a doutora achou a sala do ortopedista de plantão, e explicando rapidamente a situação, deixou John aos seus cuidados; recomendando que qualquer coisa que precisasse poderia ligar para ela. Emanuelle anotou seu número num pedaço de papel e o entregou à John, disse que poderiam chamá-la no interfone também. Emanuelle se despediu da dupla sem olhar para Sherlock, e logo estava no corredor da emergência de novo.