Flawless

6. A cidade não é assim tão doce


Na terça-feira à tarde, Hanna arrumou a blusa creme e o cardigã soltinho que tinha vestido depois da escola e correu de propósito pelos degraus do consultório de cirurgia plástica William Atlantic e da clínica de reabilitação de queimados. Se você fosse tratar algumas queimaduras sérias, iria à clínica de William Atlantic. Se fosse fazer uma lipo, iria à clínica de Bill Beach.

O prédio havia sido construído na parte de trás no bosque, e apenas um pequeno pedaço podia ser visto através das imponentes árvores. O mundo todo cheirava a flores silvestres. Uma tarde perfeita de outono para ficar de bobeira na piscina do country club e observar os garotos jogando tênis. Era uma tarde perfeita para dar uma corridinha de dez quilômetros a fim de queimar o pacote de cheetos que ela detonara na noite anterior, enlouquecida pela visita surpresa do pai. Aquela podia até mesmo ser uma tarde perfeita para observar um formigueiro ou tomar conta dos gêmeos de seis anos da vizinha. Qualquer coisa seria melhor do que o que ela estava fazendo: sendo voluntária numa clínica para pessoas com queimaduras.

Ser voluntária era quase um xingamento para Hanna. Sua última experiência tinha sido no desfile de caridade do colégio Rosewood. Meninas de Rosewood usando roupas de grife des-filaram pelo palco, o pessoal deu lances pelas roupas exibidas e o dinheiro foi para a caridade. Ali vestiu um Calvin Klein estonteante, bem justo, e um pirralho cheirando a fraldas deu um lance de mil dólares por ele. Hanna, por outro lado, teve de usar uma monstruosidade rodada e cor de néon de Betsey Johnson, que a fazia parecer ainda mais gorda do que era. A única pessoa a dar lances na roupa que ela usava fora seu pai. Uma semana depois, seus pais anunciaram que iriam se divorciar.

E, então, seu pai estava de volta. Ou alguma coisa parecida.

Quando Hanna pensava na visita do pai no dia anterior, sentia-se tonta, ansiosa e brava, tudo ao mesmo tempo. Desde sua transformação, sonhava com o momento em que o encontraria de novo. Ela estava magra, era popular e equilibrada. Em seu sonho, ele sempre reaparecia com Kate, que ficara gorda e cheia de espinhas, e Hanna parecia muito mais bonita que ela.

— Ôôô! — gritou ela. Alguém saiu pela porta no momento em que ela estava entrando. — Olhe por onde anda — resmungou a pessoa. Então, Hanna ergueu os olhos. Ela estava diante de portas duplas de vidro, perto de um cinzeiro e de um enorme vaso com prímulas. A pessoa saindo do prédio era... Mona.

O queixo de Hanna caiu. Mona estava com o mesmo olhar surpreso. Elas estudaram uma à outra.

— O que você está fazendo aqui?

— Visitando uma amiga da minha mãe. Plástica de seios. — Mona havia cortado o cabelo louro-claro acima dos ombros sardentos. — E você?

— Hum, a mesma coisa. — Hanna observou Mona com atenção. O radar de mentiras de Hanna apitou dizendo a ela que Mona podia estar mentindo. Mas, então, talvez Mona pudesse sentir a mesmíssima coisa sobre ela.

— Bem, vou embora daqui. — Mona endireitou a bolsa vinho num dos ombros. — Ligo para você mais tarde.

— Tudo bem — grasnou Hanna. Elas seguiram em direções opostas. Hanna se virou e deu uma olhada em Mona, só para constatar que a amiga estava olhando para ela por sobre o ombro.

— Agora, preste atenção — disse Ingrid, a enfermeira-chefe alemã, impassível e corpulenta. Elas estavam na sala de exames, e Ingrid ensinava Hanna como limpar as latas de lixo. Como se houvesse algum mistério nisso.

Todas as salas de exame eram pintadas de verde-abacate e as únicas coisas penduradas nas paredes eram pôsteres austeros, que mostravam doenças de pele. Ingrid designou Hanna para o ambulatório; e um dia, se Hanna fizesse tudo direito, em vez do ambulatório, ela teria permissão de limpar os quartos dos pacientes internados — onde as pessoas com queimaduras graves ficavam. Sortuda.

Ingrid puxou o saco de lixo.

— Isto aqui vai para o latão de lixo azul, que fica lá atrás. E você precisa esvaziar as latas de lixo hospitalar também. — Ela fez um gesto em direção a algo idêntico a uma lata de lixo. — Esse tipo de lixo precisa ser sempre recolhido separadamente do lixo comum. E você tem que usar isto aqui. — Ela deu um par de luvas de látex para Hanna. Hanna olhou como se elas estivessem cobertas de lixo hospitalar.

Em seguida, Ingrid indicou o corredor.

— Há dez outras salas de exame aqui — explicou ela. — Esvazie as lixeiras e limpe as tampas também. E, depois, venha me procurar.

Tentando prender a respiração — ela tinha horror àquele cheiro de hospital, gente doente e desinfetante —, Hanna se arrastou até o armário de material de limpeza para pegar mais sacos de lixo. Ela olhou para o corredor, imaginando onde eram os quartos dos pacientes. Jenna tinha sido internada aqui. Um monte de coisas, desde o dia anterior, tinham feito com que pensasse na Coisa com Jenna, apesar de ela continuar tentando tirar aquilo da cabeça. A ideia de que alguém sabia — e podia espalhar o fato — era algo que ela realmente não conseguia en-tender.

Apesar de a Coisa com Jenna ter sido um acidente, algumas vezes Hanna achava que não era bem assim. Ali tinha dado um apelido a Jenna: Branca, como em Branca de Neve, porque Jenna tinha uma semelhança irritante com a personagem da Disney. Hanna também achava que Jenna se parecia com a Branca de Neve — mas no bom sentido. Jenna não era bem-cuidada como Ali, mas havia algo estranhamente bonito nela. Certa vez, ocorrera a Hanna que a única personagem da Branca de Neve com a qual ela se parecia era o Dunga.

Ainda assim,Jenna era um dos alvos prediletos de Ali, então, lá no sexto ano, Hanna rabiscara uma fofoca sobre os seios de Jenna abaixo do suporte de toalhas de papel do banheiro feminino. Ela derrubara água na carteira de Jenna, na aula de álgebra, para que ela tivesse uma mancha falsa de xixi nas calças. Ela tirou sarro do sotaque falso que Jenna usava para falar na aula de francês II... por isso, quando os paramédicos tiraram Jenna da casa na árvore, Hanna ficou enjoada. Ela havia sido a primeira a concordar em pregar uma peça em Toby. E ainda pensara:"talvez, se pregarmos uma peça em Toby, possamos pregar uma peça em Jenna também". Era como se ela tivesse desejado que aquilo acontecesse.

As portas automáticas fizeram barulho ao se abrirem, no final do corredor, tirando Hanna de seu devaneio. Ela ficou paralisada, com o coração disparado, desejando que a pessoa chegando fosse Sean, mas não era. Frustrada, tirou o BlackBerry do bolso do casaco e digitou o número dele. Caiu direto na caixa postal, e Hanna desligou. Ela ligou de novo, sem esperanças, mas, novamente, a ligação caiu na caixa postal.

— Ei, Sean! — cantarolou Hanna depois do bipe, tentado parecer despreocupada. — Aqui é Hanna, de novo. Eu queria mesmo conversar, então, hum, você sabe onde me encontrar. Ela já havia deixado três mensagens para ele naquele dia, dizendo que estaria na clínica naquela tarde, mas Sean não tinha respondido. Ela se perguntou se ele estava numa reunião do Clube da Virgindade — onde, recentemente, assinara um pacto de virgindade, jurando não fazer sexo, tipo, nunca. Talvez ele ligasse para Hanna quando terminasse a reunião. Ou... talvez, não ligasse. Hanna reprimiu o pensamento, tentando afastar essa possibilidade da mente.

Ela suspirou e foi até a sala que servia como vestiário para os empregados e como almoxarifado. Ingrid tinha pendurado a bolsa Ferragamo de estanho em um gancho, perto de uma coisa de vinil vagabundo da Gap, e ela reprimiu a vontade de tremer de raiva. Ela guardou o telefone na bolsa, pegou um rolo de papel toalha e uma garrafa de desinfetante em spray e foi para uma sala de exames vazia. Na verdade, fazer esse trabalho talvez mantivesse sua cabeça longe dos problemas com Sean e A.

Quando estava terminado de esfregar a pia, sem querer, esbarrou em um armário de metal que estava próximo. Dentro dele, havia prateleiras com caixas de papelão etiquetadas com nomes familiares. Tylenol 3.Vicodin. Hanna espiou lá dentro. Havia centenas de amostras de remédios. Elas estavam... estavam ali. Só. Não estavam trancadas.

Aquilo era a sorte grande.

Hanna, mais que depressa, enfiou algumas mãos cheias de Percocet nos bolsos incrivelmente fundos de seu casaco. Pelo menos, ia poder se divertir no final de semana com Mona fora dali.

Então, alguém colocou a mão em seu ombro. Hanna deu um pulo para trás e se virou, derrubando o montinho de papel toalha ensopado com desinfetante e um vidro cheio de cotonetes no chão.

— Por que você ainda está na sala de exame dois? — Ingrid franziu a testa. Ela parecia um pug mal-humorado

— Eu... eu só estava tentado fazer tudo direito. — Hanna logo se abaixou para recolher as toalhas de papel no lixo e torceu para que os Percocet não caíssem de seus bolsos. Seu pescoço queimava onde Ingrid havia encostado.

— Bem, venha comigo — disse Ingrid. — Tem alguma coisa fazendo barulho em sua bolsa. Está perturbando os pacientes.

—Tem certeza de que é na minha bolsa? — perguntou Hanna. — Eu mexi agora na minha bolsa e...

Ingrid fez com que Hanna a seguisse de volta ao vestiário. Com certeza, havia um barulhinho vindo do bolso interno da bolsa dela.

— É só meu celular. — Hanna se animou. Talvez Sean tivesse ligado!

— Bem, resolva isso sem fazer muito barulho e, depois, volte ao trabalho.

Hanna tirou o BlackBerry da bolsa para checar quem estava ligando. Ela tinha uma nova mensagem.

Hannakins: Esfregar o chão em Bill Beach não vai ajudá-la a ter sua vida de volta. Nem mesmo você pode arrumar essa bagunça. E, além disso, sei de algo que vai garantir

que você não volte a ser a musa de Rosewood — nunca

mais. —A

Hanna olhou em volta no vestiário, confusa. Leu de novo a mensagem, enjoada e com a garganta seca. O que A poderia saber que garantisse uma coisa daquelas?

Jenna.

Se A sabia que...

Hanna digitou voando uma resposta no teclado de seu telefone: Você não sabe de coisa nenhuma. Ela apertou ENVIAR. Em segundos, A respondeu:

Eu sei de tudo. Eu poderia DESTRUIR VOCÊ.