Flawless

25. A vida surreal — Estrelando Hanna Marin


Na noite de sábado, Hanna pegou o elevador para a sua suíte no Four Seasons Filadélfia, sentindo-se leve, solta e energizada. Ela tinha acabado de fazer um tratamento corporal com limão, uma massagem de uma hora e vinte minutos, e um bronzeamento Kissed by the Sun em seguida. Toda aquela paparicação a fez se sentir um pouco menos estressada. Aquilo e o fato de estar longe de Rosewood... e de A.

Ela esperava estar longe de A.

Hanna abriu a porta da suíte de dois quartos e entrou. Seu pai estava sentado no sofá da sala.

— Oi — cumprimentou-a ele. — Como foi tudo?

— Maravilhoso. — Hanna dirigiu-lhe um olhar radiante, tomada de felicidade e tristeza ao mesmo tempo. Ela queria dizer o quanto estava grata por estarem juntos novamente, e, ainda assim, sentia que seu futuro com ele estava ameaçado, por A. Ela tinha esperanças de que ter dito aquilo tudo a Naomi e Riley no dia anterior iria mantê-la a salvo, mas e se não fosse assim? Talvez ela devesse simplesmente contar a verdade sobre Jenna, antes que A chegasse a ele primeiro.

Ela apertou os lábios e olhou para o tapete, tímida.

— Bom, eu preciso tomar um banho bem rápido, se quisermos chegar a tempo no Le Bec-Fin.

— Só um segundo. — O pai se levantou. — Eu tenho outra surpresa pra você.

Por instinto, Hanna olhou para as mãos do pai, esperando que ele estivesse segurando um presente para ela. Talvez fosse algo para compensá-la por todos aqueles cartões de aniversário estúpidos. Mas a única coisa na mão dele era o celular.

Então, houve uma batida na porta do quarto da suíte conjugada.

— Tom? Ela está aqui?

Hanna congelou, sentindo o sangue abandonar sua cabeça. Ela conhecia aquela voz. — Kate e Isabel estão aqui — sussurrou o pai, excitado. — Elas vão ao Le Bec-Fin conosco, e depois todos nós vamos assistir a Mamma Mia!. Você não disse na quinta-feira que queria ver essa peça?

— Espere! — Hanna o interceptou antes que ele chegasse à porta. — Você as convidou?

— Sim. — O pai olhou para ela como se estivesse doida. —Quem mais teria sido? A, Hanna pensou. Parecia bem o estilo de A.

— Mas eu pensei que seríamos só você e eu.

— Eu nunca disse isso.

Hanna franziu a testa. Disse sim. Não disse?

—Tom? — chamou a voz de Kate. Hanna estava aliviada porque Kate o chamava de Tom, e não de papai, mas apertou o pulso do pai com mais força.

O pai hesitou à porta, os olhos se movendo para um lado e para o outro, de forma estranha.

— Mas, quero dizer, Hanna, elas já estão aqui. Eu achei que seria legal.

— Por que... — Por que você pensaria isso? Hanna queria perguntar. Kate faz eu me sentir uma droga, e você me ignora quando ela está aqui. É por isso que eu não falei com você durante todos esses anos!

Mas havia tanta confusão e desapontamento no rosto do pai. Ele provavelmente estava planejando aquilo havia dias. Hanna ficou olhando para as franjas do tapete oriental. Sua gar-ganta estava presa, como se ela tivesse acabado de engolir algo enorme.

— Eu acho que você deve deixá-las entrar, então — resmungou Hanna.

Quando o pai abriu a porta, Isabel gritou de alegria, como se tivessem estado separados por galáxias inteiras, não apenas estados. Ela ainda estava excessivamente magra e muito bronzeada, e os olhos de Hanna voaram imediatamente para a pedra em sua mão esquerda. Era um anel de diamante Legacy, da Tiffany, de três quilates. Hanna conhecia o catálogo da loja de trás para a frente..

E Kate. Ela estava mais bonita do que nunca. Seu vestido de faixas diagonais sem dúvida era manequim 36, e os cabelos castanhos e lisos estavam mais compridos do que há alguns anos. Ela colocou a bolsa Louis Vuitton graciosamente na pequena mesa de jantar do quarto de hotel. Hanna estava fervendo de raiva. Kate, provavelmente, jamais tropeçava em seus novos sapatos Jimmy Choo, nem escorregava no chão de madeira depois que a faxineira o encerava.

O rosto de Kate tinha uma expressão retesada, como se ela estivesse realmente irritada por estar ali. Quando percebeu a presença de Hanna, contudo, ficou mais relaxada. Ela observou Hanna de cima para baixo — da jaqueta estruturada Chloé até as sandálias de tiras e, então, sorriu.

— Oi, Hanna — disse Kate, obviamente surpresa. — Uau. — Ela pôs a mão no ombro de Hanna, mas por sorte não a abraçou. Se ela tivesse feito isso, teria percebido o quanto Hanna estava tremendo.

—Tudo parece tão bom — murmurou Kate, olhando o cardápio.

— Sem dúvida — ecoou o sr. Marin. Ele chamou o garçom e pediu uma garrafa de Pinot Grigio. Então, olhou com carinho para Kate, Isabel e Hanna. — Estou feliz de estarmos todos aqui. Juntos.

— É realmente maravilhoso ver você de novo, Hanna — disse Isabel.

— É — concordou Kate. — Sem dúvida.

Hanna olhou para seus talheres de prata sofisticados. Era surreal vê-las de novo. E não surreal do tipo legal, como um vestido-caleidoscópio Zac Posen, mas surreal do tipo pesadelo, como quando aquele cara do livro que Hanna tivera de ler para a aula de literatura, no ano anterior, acordava e descobria que havia se transformado em uma barata.

— Querida, o que você vai pedir? — perguntou Isabel a ela, com a mão sobre a de seu pai. Ela ainda não podia acreditar que seu pai estivesse apaixonado por Isabel. Ela era tão... comum. E muito bronzeada. O que era uma coisa legal se você fosse modelo, tivesse catorze anos ou morasse no Brasil, e não uma mulher de meia-idade de Maryland.

— Hmmmm — fez o sr. Marin. — O que é pintade? É peixe?

Hanna virou as páginas do cardápio. Ela não tinha ideia do que ia comer. Tudo era frito ou feito com molho branco.

— Kate, você pode traduzir? — Isabel se inclinou na direção de Hanna. — Kate é fluente em francês.

É claro que é, pensou Hanna.

— Nós passamos o último verão em Paris — explicou Isabel, olhando para Hanna. Hanna se escondeu atrás da carta de vinhos. Eles tinham ido para Paris? Junto com o pai dela, também?

— Hanna, você estuda línguas? — perguntou Isabel.

— Hum. — Hanna deu de ombros. — Fiz um ano de espanhol.

Isabel fez biquinho.

— Qual é a sua matéria preferida na escola?

— Inglês?

— A minha também! — exclamou Kate.

— Kate ganhou o prêmio máximo em Inglês da escola dela no ano passado — gabou-se Isabel, parecendo muito orgulhosa.

— Mãe — reclamou Kate. Ela olhou para Hanna e murmurou: Desculpe.

Hanna ainda não conseguia acreditar em como a expressão irritada de Kate havia se dissipado quando ela a tinha visto. Hanna havia feito aquela cara antes. Como daquela vez no nono ano quando seu professor de inglês a indicara como voluntária para mostrar a escola para Carlos, o estudante que viera fazer intercâmbio chileno. Hanna saíra da sala do professor ressentida demais para cumprimentar o garoto, certa de que Carlos seria um idiota e causaria um estrago em sua popularidade. Quando ela chegou à recepção e viu um garoto alto, de cabelos ondulados e olhos verdes, que parecia ter jogado voleibol desde o berço, ela se endireitou e checou discretamente o próprio hálito. Kate provavelmente pensava que as duas compartilhavam algum tipo de laço de mulherzinha.

—Você tem alguma atividade extracurricular? — perguntou Isabel. — Pratica esportes?

Hanna deu de ombros.

— Na verdade não. — Ela havia se esquecido de que Isabel era uma daquelas mães: ela só falava de Kate, de suas premiações escolares, das aulas de línguas, das atividades extracurriculares, e daí por diante. Era outra coisa com que Hanna não podia competir.

— Não seja tão modesta. — O pai cutucou o ombro de Hanna. —Você tem várias atividades extracurriculares.

Hanna olhou para o pai, espantada. Como o quê? Roubar?

— A clínica para pessoas que sofreram queimaduras? — citou ele. — E sua mãe me contou que você se juntou a um grupo de apoio.

O queixo de Hanna caiu. Em um momento de fraqueza, ela contara à mãe sobre o Clube da Virgindade, como que dizendo: Está vendo? Eu tenho valores. Ela não podia acreditar que a mãe tivesse dito ao pai.

— Eu... — gaguejou ela. — Não é nada importante.

— É claro que é importante. — O sr. Marin apontou o garfo para ela.

— Pai — sibilou Hanna.

As outras olharam para ela, na expectativa. Os olhos já grandes de Isabel se arregalaram ainda mais. Kate tinha um traço quase imperceptível de sorriso no rosto, mas seus olhos expres-savam simpatia. Hanna olhou para a cesta de pão. Dane-se, pensou ela, e enfiou um brioche inteiro na boca.

— É um clube de abstinência, tá legal? — disparou ela, com a boca cheia de massa de pão e sementes de papoula, e então se levantou. — Muito obrigada, papai.

— Hanna! — O pai empurrou a cadeira para trás e fez menção de se levantar, mas Hanna saiu andando. Por que ela tinha acreditado naquela historinha de eu adoraria passar um fim de semana com você? Era exatamente como da última vez, quando ele a chamara de porquinha. E pensar em tudo o que ela havia arriscado para estar ali, dissera àquelas putinhas que vomitava três vezes por dia! Aquilo nem era mais verdade!

Ela empurrou a porta do banheiro, entrou em uma das cabines e se ajoelhou na frente do vaso sanitário. O estômago dela estava embrulhado, e ela sentiu vontade de resolver logo o pro-blema. Acalme-se, disse a si mesma, olhando meio tonta para o próprio reflexo na água do vaso. Você consegue.

Hanna se levantou novamente, o maxilar tremendo, lágrimas transbordando dos olhos. Se ela pudesse ficar naquele banheiro pelo resto da noite... eles que tivessem o fim de semana especial de Hanna sem ela. O celular tocou. Hanna tirou-o da bolsa para silenciá-lo. Então, seu estômago se contraiu. Ela tinha recebido um e-mail de um endereço familiar.

Já que você seguiu minhas ordens tão direitinho ontem, considere isto um presente: vá para a Foxy, agora. Sean está lá com outra garota. —A

Ela ficou tão assustada que quase derrubou o telefone no chão de mármore do banheiro. Então ligou para Mona. Elas ainda não estavam se falando — Hanna nem tinha contado a Mona que não iria à Foxy — e Mona não atendeu. Hanna desligou, tão frustrada que atirou o telefone contra a parede. Com quem Sean poderia estar? Naomi? Alguma putinha do Clube da Virgindade?

Ela saiu da cabine fazendo barulho, assustando uma senhora que estava lavando as mãos. Quando Hanna estava quase chegando à porta, parou abruptamente. Kate estava sentada na chaise-longue, passando um batom cor-de-rosa pálido. Suas pernas longas e esbeltas estavam cruzadas, e ela parecia ser a pessoa mais chique do mundo.

—Tubo bem? — Kate levantou os olhos, de um azul profundo, para Hanna. —Vim ver como você estava.

Hanna se enrijeceu.

— Sim, estou bem.

Kate torceu a boca.

— Sem querer ofender o seu pai, mas, às vezes, ele é capaz de dizer as coisas mais inadequadas. Teve uma vez em que eu tive um encontro com um cara. Nós estávamos saindo de casa, e o seu pai disse:"Kate, eu vi que você escreveu OB na lista de compras. O que é isso? Em que prateleira eu devo procurar?" Eu quase morri de vergonha.

— Deus. — Hanna sentiu uma pontada de simpatia. Aquilo soava bem como algo que seu pai faria.

— Ei, não importa — disse Kate, gentilmente. — Ele não teve má intenção.

Hanna sacudiu a cabeça.

— Não é isso. — Ela olhou para Kate. Mas, que diabos! Talvez elas tivessem algum laço de mulherzinha. — É... é o meu ex. Eu recebi uma mensagem dizendo que ele está numa festa beneficente chamada Foxy, com outra garota.

Kate franziu a testa.

— Quando vocês terminaram?

— Há oito dias. — Hanna sentou-se na chaise. — Eu estou meio que tentada a voltar lá agora e acabar com ele.

— E por que não vai?

Hanna se recostou no sofá.

— Eu queria, mas... — Ela fez um gesto em direção ao restaurante.

— Ouça. — Kate se levantou e fez biquinho em frente ao espelho. — Por que você não põe a culpa nesse tal grupo de apoio que você está frequentando? Diga que alguém de lá ligou pra você e disse que estava se sentindo muito "fraco", e você é amiga dele, e precisa ir lá dar uma força.

Hanna levantou uma das sobrancelhas.

—Você parece saber muito sobre grupos de apoio.

Kate deu de ombros.

— Eu tenho alguns amigos que passaram pela reabilitação.

Tuuuuuuuuudo beeeem.

— Eu não acho que seja uma boa ideia.

— Eu te dou cobertura, se você quiser — ofereceu Kate.

Hanna olhou para ela, pelo espelho.

— Sério?

Kate olhou de volta, significativamente.

—Vamos dizer que eu te devo uma.

Hanna se encolheu. Algo lhe dizia que Kate estava falando sobre aquela vez, em Anápolis. Aquilo a fazia sentir-se desconfortável — que Kate lembrasse, e que reconhecesse que havia sido cruel. Ao mesmo tempo, lhe dava uma certa satisfação.

— Além disso — continuou Kate —,seu pai disse que nós nos veríamos muito mais. É bom começar do jeito certo.

Hanna piscou.

— Ele disse... ele disse que quer me ver mais? — Bom, você é filha dele.

Hanna brincou com o pingente em forma de coração em sua pulseira Tiffany. Dava a ela uma certa excitação, ouvir Kate falar daquele jeito. Talvez ela tivesse exagerado na mesa do jantar.

—Vai levar quanto tempo? Duas horas, no máximo? — perguntou Kate.

— Provavelmente menos que isso. — Tudo o que ela queria era pegar o trem para Rosewood e xingar aquela vaca. Ela abriu a bolsa para ver se tinha dinheiro para a passagem. Kate ficou em pé ao lado dela e apontou para algo no fundo da bolsa.

— O que é isso?

— Isso? — Assim que Hanna tirou o objeto da bolsa, quis enfiá-lo lá de novo. Era a caixa de Percocet que havia roubado da clínica para pessoas com queimaduras na terça-feira.

Ela havia esquecido.

— Posso pegar um? — sussurrou Kate, excitada. Hanna olhou para ela de soslaio.

— Sério?

Kate deu a Hanna um olhar malicioso.

— Eu preciso de alguma coisa para me ajudar a aguentar esse musical para o qual seu pai vai nos arrastar.

Hanna deu a ela uma cartela. Kate guardou as pílulas, virou-se nos saltos e saiu com passos confiantes do banheiro. Hanna a seguiu, boquiaberta.

Aquela fora a coisa mais surreal da noite. Talvez, se ela tivesse que ver Kate novamente, não fosse um destino pior que a morte. Poderia até ser... divertido.