Ao invés de sairmos quando estivesse claro e iluminado graças a luz do sol, Jeff decidiu ir durante a noite. Eu ainda tentei convencê-lo a ir quando estivesse, ao menos, o sol nascendo ou quando já dava para conseguir ver o caminho à nossa frente mas ele apenas me ignorou e disse que seria melhor irmos nesse horário. Ah, sim. Claro, um horário cheio de monstros e outras coisas que podiam nos matar.

Quer dizer, me matar.

Para Jeff, era como se eu não estivesse ali. Ele não ligava e eu também não, afinal eu não fazia mesmo tanta diferença para a vida de assassino dele. Podia cair em uma armadilha no meio do caminho, ser sequestrada ou morta que ele nem notaria na hora que tinha acontecido alguma coisa. Só de pensar que alguma daquelas coisas podiam acontecer comigo, eu tinha vontade de me afastar de Jeff e voltar para casa.

Naquelas horas, voltar para casa não seria uma boa opção. Mas e se Amara aparecesse por lá? E se ela estivesse lá na hora do ataque e Jeff não queria me contar para eu não voltar e conferir? Não, se ele quisesse que eu conferisse, ele já teria dito e, possivelmente, eu teria morrido. Então Jeff não me queria morta, era isso? Não. A questão era por que ele me queria viva. Talvez ele queira atrair Jack e, junto com ele, provavelmente, Amara. Por um lado isso era bom, finalmente irei reencontrar Amara. Agora, por outro lado, se a história que Jeff me contou for verdade, estamos atraindo um casal de assassinos sedentos por sangue e que clamavam por mortes.

Isso sim era ruim.

— Jeff? — Chamei enquanto passávamos por uma espécie de túnel de pedra. Ele me ignorou e continuou andando. — Jeff, eu tô falando com você!

— Eu sei, eu percebi, mas fica quieta senão elas nos escutarão. — Disse Jeff, baixinho, se virando para mim com aquele rosto branco e assustador. Eu ainda não havia me acostumado muito com o jeito dele e muito menos com o rosto.

— Elas? — Perguntei. Acho que eu o irritei porque Jeff saiu andando mais rápido. — Ei! — O peguei pelo braço e ele automaticamente virou-se para mim com violência. Sim, ele estava irritado.

— Será que dá pra andar mais rápido e em silêncio? Nunca soube ficar quieta, não? — Ouvimos um ruído vindo do lado de fora do túnel de pedra. Era como se alguém estivesse andando por cima dele com...saltos? — Merda, vamos! — Foi a vez de Jeff puxar o meu braço e me puxar pelo caminho. Decidi ficar quieta porque talvez só pioraria se eu fizesse perguntas. Agora não era a hora.

Quando estávamos quase saindo do túnel, uma enorme pedra caiu sobre a passagem, impedindo-nos de atravessar. Ouvi Jeff murmurar alguma coisa mas não consegui escutar o quê. Ele soltou o meu braço e foi até a pedra, batendo com o punho nela. De repente, ele se virou para mim com um certo ódio.

— EU MANDEI VOCÊ FICAR QUIETA, PORRA! AGORA ESTAMOS PRESOS AQUI! — Eu me afastei um pouco dele.

— Não tem como voltar? — Perguntei.

— Não, as duas entradas estão bloqueadas. Não vamos sair daqui tão cedo. — Respondeu ele em um tom frio, sentando-se de costas para a pedra que interrompeu a nossa passagem. Decidi me sentar também mas não perto de Jeff. Tenho certeza que ele queria me matar naquele momento sem hesitar.

Ficamos ali por um bom tempo, calados, apenas ouvindo o silêncio que estava no túnel, pairando no ar. Eu queria dizer alguma coisa, quebrar aquele silêncio mas tinha medo do que Jeff poderia fazer se perdesse a paciência mais uma vez. Claro, eu deveria saber no que estava me metendo quando comecei a andar com ele, um assassino, mas não pensei direito. Nunca penso antes de agir. Eu devia ter fugido na primeira oportunidade.

— Jeff...

— O quê?

— Nada, esquece.

— Fala logo.

— É besteira, você vai ficar bravo comigo.

— Eu já estou bravo com você. — O seu tom de voz era sério e estava me deixando com um pouco de medo. Eu tenho que parar de irritar as pessoas ao meu redor antes que eu morra por causa disso. O que talvez não demore muito, já que Jeff se irrita muito facilmente.

— Você tem família? — Depois que terminei a pergunta, senti o clima ficar mais pesado do que antes. Jeff me encarava com um certo ódio e pensei que ele fosse pegar sua faca e lançá-la na minha direção por fazer a pior pergunta do mundo, mas ele apenas coçou a cabeça e suspirou, parecendo magoado.

— Meus pais morreram e meu irmão também. Feliz? — Me arrependi de ter perguntado. Eu deveria saber que eles estavam mortos, claro. Ele era um assassino, com certeza estava sozinho no mundo sem ninguém para abraçar ou dizer "Eu te amo".

— Desculpa, eu não devia ter perguntado.

— Que bom que entendeu... — Subitamente, lembrei dos meus pais. O que será que eles dirão quando chegarem em casa? Claro, se eles chegarem em casa. Nesse momento, deve ter bilhões de canibais — ou sei lá o que eram aquelas coisas — procurando por mim e minha família. Talvez seja igual nos filmes onde os pais da protagonista são sequestrados e são negociados pelos sequestradores em troca de algo valioso. Se isso acontecesse, eu não poderia oferecer nada, deixei tudo para trás, afinal.

Como eu não queria perturbar Jeff ou criar mais um motivo para ele terminar com a minha vida inútil, decidi fechar os olhos por alguns segundos e permitir-me dormir se possível.

Alguns minutos depois, levei um susto quando abri os olhos novamente e Jeff não estava mais ali. Ele havia me deixado sozinha!Tentei levantar mas alguma coisa me impediu e eu voltei para o chão. Espera, não lembrava que o chão era de madeira...

Olhei para baixo e vi que eu não estava no chão de um túnel de pedra; eu estava em cima de uma tábua de madeira escura que parecia uma porta, só que mais grossa e sem buraco para a maçaneta. A madeira estava flutuando em cima de um liquido escuro e espesso demais para ser água. Foi quando percebi que haviam correntes em meus pulsos, amarrando-me em alguma coisa. Eu não conseguia me soltar e aquilo estava me deixando agoniada.

Conferi ao redor mas estava tudo escuro, um completo vazio. Não tinha céu, paredes e nem chão, apenas aquele liquido, as correntes, a madeira e eu. Deitei-me novamente na madeira e observei o escuro vazio que deveria ser o céu ou, até mesmo, o teto do túnel de pedra em que eu estava antes. Como eu saí de lá?

Não, impossível. Isso tudo deve ser um sonho. Eu vou acordar, tenho certeza. É só piscar três vezes e desejar sair daqui.

Um. Dois. Três.

A mesma escuridão.

Não era um sonho. Então onde eu estava, como e por quê?

De repente, ouvi o barulho de uma risada suave e feminina. Senti a madeira bater contra algo e as correntes soltarem de meus pulsos. Me levantei rapidamente e não havia mais água, não havia mais madeira; havia o chão firme, mas escuro assim como o redor do ambiente. Comecei a andar na direção da risada, mas era impossível achar quem estava rindo. A risada mudava toda hora de lugar, como se entrasse por um dos meus ouvidos e saísse por outro.

— Brinque comigo, Lolitta. — Disse uma voz de criança atrás de mim. Me virei mas não havia nada.

— Não, brinque comigo! — Me virei novamente mas não havia ninguém.

— Não dê ouvidos a elas, ninguém brinca comigo! — Eu já estava ficando paranoica tentando achar as donas daquelas vozes infantis. Não havia nada. Não importa o quão rápido eu me virasse, não havia nada em lugar algum.

— Brinque comigo! — Gritaram as vozes, perto demais. Tampei os ouvidos e fechei os olhos, na esperança de que tudo aquilo sumisse.

Quando reabri os olhos, ainda estava no mesmo lugar mas as vozes tinham parado. Suspirei e estava pronta para ir embora dali quando dei de cara com uma garotinha. Mesmo estando escuro, eu a conseguia enxergar perfeitamente, como se alguma luz me permitisse isso. Seus cabelos eram longos, lisos e escuros e a pele muito branca. Seus olhos eram como o ambiente ao redor; escuros e vazios. Ela usava um vestido escuro e botas da mesma cor.

— Brinque comigo. — Disse ela. Neguei com a cabeça e me virei mas havia outra garotinha ali. Ela era idêntica a outra garota mas seus olhos e suas roupas eram diferentes. O vestido era branco e ela usava saltos da mesma cor. Os olhos eram de tom de azul escuro muito bonito e melancólico. Eu quis chorar vendo aquela garotinha, sem nem mesmo saber por quê.

— Não brinque com ela, brinque comigo. — Eu já estava ficando louca...

— Não as escute, elas não são legais. — Ouvi alguém dizer atrás de mim. Virei-me e vi uma garota sentada no chão. Ela parecia ter mais ou menos a minha idade e usava um vestido azul escuro curto de mangas compridas e tênis All Star preto. Seu cabelo era curto e escuro e seus olhos castanhos me olhavam com um certo pesar. Ela era a cara das outras garotas, tirando o fato de que parecia mais velha e tinha os cabelos e olhos diferentes.

— Como assim? — Perguntei. Eu havia entendido, mas as palavras escapuliram da minha boca.

— Ignore-as. Não brinque com elas. — Ela se levantou e ajeitou o vestido. — Meu nome é Lyra.

— Olá, Lyra, sou Lolitta. — Olhei ao redor procurando as outras garotas mas não havia ninguém além de Lyra. — Quem eram aquelas garotas? — Lyra abaixou a cabeça parecendo triste e ficou encarando o chão por algum tempo. Eu não tinha percebido o quanto ela era baixinha e fofa até ver aquela cena. Reprimi um sorriso e senti o clima esquentar.

— Aquelas eram minhas irmãs, Lya e Lyanna. Elas gostam de...brincar com as pessoas que aparecem por aqui. — Ela olhou para mim e sorriu. — Mas não se preocupe, elas só irão voltar se eu permitir. — Tá, aquilo me deixou com um pouco de medo. Eu ia perguntar o que ela queria dizer com aquilo mas ela começou a falar antes de mim. — Como você veio parar aqui?

— Ahn...eu não faço a minima ideia, para ser sincera. — Falei, franzindo a testa. — E você, como veio parar aqui?

— Eu moro aqui. — O seu tom de voz pareceu mudar ao revelar aquilo. Ela parecia ser uma pessoa triste, não apenas pelo tom de voz ou pelo pesar em seus olhos mas sim pela sua aparência. Não consegui reparar isso de primeira, mas Lyra tinha uma aparência cansada; era magra e pálida, possuía olheiras embaixo dos olhos e parecia querer desabar no chão de tanto sono. Como uma menina tão linda poderia chegar a esse ponto tão cedo?

— Você mora aqui? — Perguntei, confusa. — Como?

— Longa história...

— Tenho o dia todo, pelo visto. — Falei, me sentando no chão escuro e frio. Lyra suspirou e se sentou ao meu lado, colocando as mãos no rosto. A escutei chorar baixinho e fiquei meio sem graça de não poder dizer nada para acalmá-la. Ai, Lolitta, faz alguma coisa!

— Ei, não chora... — Dei um abraço meio desajeitado nela e esperei um tempo até ela se recompôr e começar a história.

— Eu morava em uma vila bem afastada da civilização, muito longe daqui também. Ela era bem no meio da floresta e ninguém nunca gostava de sair dos seus limites, já que era muito perigoso para crianças, idosos e, até mesmo, para os adultos mais corajosos. Um dia, eu estava brincando com Lya e Lyanna e elas me convenceram a ir para a floresta brincar com elas. Bem, resumindo a história: nos perdemos e a última coisa que eu lembro é de bater com a cabeça em algo nada confortável e acordar aqui, nessa escuridão.

— Então você não sai daqui desde que bateu a cabeça?

— Sim, isso mesmo.

— Mas você disse que suas irmãs gostam de brincar com as pessoas que aparecem por aqui. Então eu não sou a primeira pessoa que veio aqui? — Ela me olhou com aqueles olhos tristes e deu um enorme sorriso forçado.

— Não, e espero que não seja a última. — De repente, senti uma dor muito forte no meu peito. Quando vi, havia uma faca cravada em mim, no meu peito. Senti o gosto de sangue em minha boca e minha visão ficou turva, fazendo-me cair no chão. Eu não conseguia ver nada além da escuridão e estava ficando com muito sono. E então, tudo se silenciou.

* * *

— BRINQUE COMIGO!

Tudo estava escuro e eu conseguia sentir meu corpo ser arremessado de um lado para o outro, sem hesitação. Risadas infantis preenchiam o som do vazio, que foi se afastando, dando lugar para elas. Eu queria me mexer, queria dizer alguma coisa, queria gritar por socorro mas era como se eu não tivesse total controle sobre o meu corpo, assim como aconteceu quando aqueles canibais invadiram a minha casa e quase me sequestraram.

— Meninas, eu ainda acho que isso não está certo... — Disse uma voz ao longe. Lyra.

— Você sempre acha que nada está certo. Apenas cale a boca.

— Mas ela tem razão, Lya, isso está errado...

— Você também cale a boca, Lyanna.

Elas continuaram me arremessando até que tudo parou. Meu corpo bateu no chão e eu finalmente consegui me mexer. Quando abri os olhos, não pude acreditar no que estava vendo. Eu estava na Floresta Sem Fim — no meio dela —, cercada por árvores, árvores e mais árvores. O ar estava mais denso do que antes e eu sentia uma certa agonia, como se eu estivesse presa dentro do meu próprio corpo. Gritei bem alto e comecei a puxar os meus cabelos, me sentando rapidamente, ofegante. O que estava acontecendo?

— Nanica! — Ouvi uma voz gritar. — Onde você está? — Ouvi passos se aproximando e um arbusto alto começou a chacoalhar. Jeff saiu de lá completamente ensanguentado. Os cabelos e as roupas estavam encharcados de vermelho, assim como seu rosto e seus tênis. Ele estava com a faca na mão, como se estivesse preparado para matar qualquer coisa que cruzasse seu caminho. Admito que fiquei com medo dele naquele momento.

— Jeff...? — Chamei-o. Minha voz estava parecendo mais um sussurro do que uma fala alta e clara. O assassino se aproximou de mim mas eu recuei, me perguntando se meu sangue estará impregnado em suas roupas futuramente assim como aquele, seja lá de quem for.

— Não é o que parece, não matei ninguém. — Defendeu-se ele, guardando a faca e agachando-se ao meu lado. Eu deveria acreditar nele? Bem, ele não me matou até agora e disse que não pretende fazer isso — claro, não tão cedo.

— O que aconteceu, onde estamos? — Perguntei. Jeff suspirou.

— Acho que estamos presos em uma das armadilhas das Lisbon: Lyanna, Lyra e Lya.