UMA SEMANA DEPOIS

—... esta tarde receberemos uma convidada muito especial. Ela é taróloga, numeróloga, e médium. Seu nome é respeitadíssimo no meio esotérico, e seu site é um dos mais acessados por quem procura saber um pouco mais sobre o ocultismo. E, quem sabe, nos ajudará a entender melhor o porquê McKinley vem sofrendo tantas perdas ultimamente... Com vocês, Eileen Blackwell!

Jessica desviou os olhos para a televisão e viu uma mulher roliça, de cabelos muito curtos e louros entrar no palco do Hey, Anna!, um programa de TV que passava aos sábados. Anna Graham, a apresentadora baixinha e frenética recebeu-a com um abraço caloroso, antes de conduzi-la até o habitual sofá cor de caramelo.

— E então, Eileen— começou ela. – Naturalmente, vem acompanhado as estranhas tragédias envolvendo os moradores da cidade de McKinley?

- Sim, é claro. Toda a América está chocada com isso...

- Acha que tudo pode ser apenas uma coincidência? Ou existe alguma coisa oculta agindo silenciosamente?

Jessica bufou. Anna Graham era uma péssima apresentadora.

- Olha, Anna, está muito evidente que existe algo muito negativo naquela cidade. Não só nela, mas em várias cidades da América que são constantemente assoladas por acidentes e tragédias em grande escala. Estamos falando de McKinley porque é o caso mais recente... No entanto, a raiz desses acontecimentos não está lá. Podemos voltar ao caso do voo 180 da Volée, em Nova York. 13 de maio de 2000. No tarô, 13 é a carta da Morte, ou do Arcano sem Nome. Geralmente simboliza grandes transmutações; dominação e força; renascimento, criação ou destruição;

fatalidade irredutível ou fim necessário – a mulher erguia uma carta de tarô em que uma figura esquelética segurando uma foice parecia pisar sobre restos humanos. Jessica arrepiou-se. — Ao que tudo parece, foi a partir dessa data que 13 de maio se transformou em um tipo de maldição. Um garoto teve a visão do que aconteceria, e conseguiu salvar-se a si mesmo e alguns colegas...

—... e todos morreram— interrompeu-a Anna.

- Sim, todos acabaram morrendo meses depois. Isso porque o destino deles foi mudado. Estavam sobrando no mundo... Eram como uma anomalia. É claro que o mundo espiritual teria que consertar as coisas. E, o mesmo aconteceu um ano depois, na rota 23; na montanha russa em McKinley; e se repetiu no último dia 13, com o voo 909 da New Flying. Os alunos que embarcariam naquele avião estavam na ilha O’Reoy, quando houve o deslizamento.

-... e morreram — replicou Anna, como se lamentasse.

— Exatamente.

- Isso não pode ser coincidência!

- E não é— Eileen Blackwell meneou a cabeça loura com veemência. – Em algum momento, no passado, alguém desencadeou essa série de anomalias, ao ser o primeiro a ter uma premonição e salvar pessoas que deveriam morrer. Não estou falando de Alex Browning, e o voo 180. Isso é mais antigo... Andei pesquisando a respeito, e achei mais alguns casos semelhantes a esses, como a ponte suspensa que...

- Querida, o Phil chegou – disse Evelyn Holden, sua mãe, aparecendo de repente no vão da porta da sala. Jessica sobressaltou-se, desviando os olhos da TV. Estava tão atenta ao que aquela mulher esotérica dizia, que havia se esquecido de que iria com Phil para o memorial dos alunos mortos na ilha, que aconteceria no ginásio do colégio.

- Estou indo – disse ela, sentindo a boca seca.

—... até chegar em McKinley— dizia Eileen Blackwell, o corpo roliço sentado no sofá de Anna. – E nada pode nos dar certeza de tenha parado por aí.

Sentindo uma mão gélida e invisível apertando-lhe o peito, Jessica desligou a TV e levantou-se depressa. Agora estava ligeiramente pior que antes. Não que já não tivesse pesquisado sobre esse tipo de coisa, nos últimos dias. Ela havia lido vários artigos na internet sobre premonições envolvendo acidentes, e ficara apavorada com o que encontrara. Mas Phil a fez prometer que esqueceria aquela história de maldição, porque ela estava ficando paranoica e altamente depressiva. Jessica tentou argumentar, mas ele não quis saber.

- Se for acontecer qualquer coisa ruim com a gente, você verá – dissera ele. – Já aconteceu duas vezes... Então, não fique louca por causa disso. Não generalize as coisas, amor. Isso está te fazendo muito mal.

Ele estava certo sobre isso. Mas, depois do que ouvira Eileen Blackwell dizer, teve certeza de que ela não estava “generalizando as coisas”. E que não estavam tão a salvo quanto pensavam estar. A maldição parecia real...

Phil estava do lado de fora da casa, conversando em voz baixa com a mãe de Jessica, quando ela saiu. Depois que voltaram da ilha, os dois pareciam bem mais próximos. Jessica não chegou a falar isso, mas não gostava muito daquela aproximação. Era como se fossem cúmplices em alguma coisa que ela desconhecia.

- Pronta? – perguntou Phil, plantando um beijo em sua testa.

Não, pensou ela. Mas assentiu mesmo assim, para não complicar as coisas. Despediu-se de sua mãe, e entrou no carro, preparando-se para confrontar os olhares acusadores e indiscretos que a aguardavam, além dos fantasmas daquele trágico fim de semana em O’Reoy.

Era fim de tarde, e o céu estava tomando sua habitual coloração amarelada do crepúsculo. A cidade de McKinley parecia anormalmente quieta para um sábado. Ninguém nos bares. Ninguém nos restaurantes. Ninguém nas praças... E a maioria dos carros jazia no estacionamento do ginásio da escola, onde aconteceria a homenagem aos vinte e nove alunos e à professora Maggie Lars, mortos no deslizamento.

O clima dentro do ginásio era lúgubre e inquietante. Pessoas vestidas, em sua maioria, de preto, chegavam e se acomodavam nas cadeiras de plástico, após se abraçarem ou trocarem lamentações chorosas. Em um canto, havia uma mesa enorme, onde colocaram os porta-retratos com as fotos dos alunos que perderam a vida. Entre os porta-retratos, várias rosas, cartas, e velas. Algumas pessoas se demoravam ali, aos prantos, enquanto eram afagadas por algum parente ou amigo.

- Conseguiu falar com ela? – perguntou Liu Wong em voz baixa, inclinando-se para Claire Temple, assim que a moça sentou-se ao seu lado.

- Não, mas falei com Phil. Eles estão vindo...

Liu assentiu, hesitante.

- Acha que devo mencioná-la? Tipo, agradecer?

- Claro que não, Liu! – Claire olhou-o de cenho vincado. – Ela já está evitando as pessoas por causa do modo como olham pra ela... Se você disser isso, ela vai se trancar no quarto pra nunca mais ver ninguém.

- Ok, é só que... – Liu encolheu os ombros, desviando os olhos para o portão de entrada do ginásio. Brenda Grigori acabava de chegar, usando um vestido apertadinho preto, e um estranhíssimo chapéu da mesma cor, cheia de penas negras. -... eu sou muito grato, pelo que... ela fez, e só queria que ela soubesse disso...

Claire seguiu o olhar do amigo, e reprimiu uma risada maldosa. Por mais que o momento fosse de profunda tristeza e reverência, Brenda conseguira ser ridícula o bastante para fazê-la rir.

- Jesus...

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Quando Jessica e Phil chegaram, já havia começado a homenagem. O que era bom, porque não chamariam tanta atenção. Sentaram-se nas cadeiras dos fundos, discretamente, e ficaram por lá durante todo o tempo.

Depois que o diretor da escola fez sua homenagem, dizendo o quanto os alunos e a professora Lars eram queridos, e que toda a comunidade estava de luto por eles terem perdido a vida tão precocemente, foi a vez de alguns professores. Jessica percebeu que Jamie Shawn não estava ali, e chegou a imaginá-lo bebendo desoladamente em algum pub minúsculo da cidade. E não o culpava por isso. Aquela homenagem era um tormento. Apenas remexia, de forma cruel e maquiada por palavras bonitas, as feridas abertas pelo desastre em O’Reoy.

Então, depois que os professores falaram, o diretor chamou Liu Wong para prestar sua homenagem aos colegas e à professora. Jessica sentiu-se, de repente, alarmada. Estreitou os olhos, e apertou com força a mão do namorado, torcendo para que o amigo não desse detalhes sobre o que houve no baile de formatura.

- Meu nome é Liu – começou ele, após pigarrear. – E fui colega de sala desses vinte e nove jovens durante a maior parte da minha vida. É difícil aceitar que eles foram embora e não vão mais voltar. Que nunca mais ouviremos suas vozes; que nunca mais os abraçaremos; que nunca mais jogaremos futebol juntos ou nos encontraremos, depois de formados, com uma família, para dizer o quanto engordamos ou o quanto envelhecemos. Mas todos nós nascemos para morrer. Hoje ou amanhã, ou daqui uns anos. Não importa... E, por mais que não aceitemos, vamos perder pessoas queridas ao longo da nossa vida, como aconteceu semana passada. Em todo caso, o que precisam saber é que estavam todos muito felizes. Ninguém estava sofrendo. Ninguém morreu em uma cama, de alguma doença terminal. Estavam sorrindo, dançando, ao lado de pessoas que os amavam, e, de repente, foram ceifados para o outro lado da vida. Talvez nem mesmo tenham percebido... E é essa a imagem que devemos ter deles – o rapaz apontou alguma coisa para o aparelho de projeção, e uma imagem formou-se às suas costas. – Gravei esse vídeo da turma para passar no dia de formatura. Mas, como ele não acontecerá, pensei que esta noite fosse a ocasião mais propícia – dizendo isso, o rapaz afastou-se e o vídeo começou a ser reproduzido.

Era uma coleção de filmagens descontraídas e engraçadas que Liu fizera de seus antigos colegas de sala. Em alguns casos, parecia uma entrevista, em outros, ele fazia comentários até grosseiros sobre quem aparecia no vídeo. Apesar disso, todos os presentes no ginásio assistiam com uma sugestão de sorriso no rosto, e os olhos cheios de lágrimas.

—... e aqui estão Paul e Page, o casal mais badalado da escola— dizia a voz de Liu, nas filmagens, enquanto gravava Paul Jackson e Page Johnson atracados nas arquibancadas do campo. – Digam olá!

Sem se desgrudar de Page, Paul mostrou o dedo do meio para o rapaz.

- Vocês fazem algo a mais, além de ficar o tempo todo pendurados nos beiços um do outro?

— Claro— disse Paul, em meio aos beijos da namorada. — Você quer filmar isso também?

Page soltou uma risada, estapeando de leve o rosto do namorado. Não voltou a beijá-lo, apesar de permanecerem grudados um no outro, olhando para a câmera.

- Dá o fora, Wong— disse Paul, enfiando a mão da lente, e voltando a beijar a namorada.

- Tudo bem— Liu começou a se afastar, embora ainda os filmasse. – Eles são sempre assim...— sussurrou. – Não sei como ela consegue... O mundo pode estar acabando, que eles continuam pregados um no outro. Se estiver ouvindo isso, Page, peço desculpas. Mas, você é foda!

Ao ouvir aquilo, a imagem de Paul e Page abraçados, enquanto a onda de barro e destroços os engolia, lampejou diante dos olhos de Jessica. A moça engoliu em seco, olhando para Phil. O rapaz estava atento ao vídeo, os lábios repuxados em um sorriso entristecido. Então, decidiu não dizer nada. Mas aquilo foi estranho...

O vídeo continuou, trazendo imagens do resto dos alunos, até terminar com Phil e Jessica dentro do ônibus, antes do acidente com o caminhão que matou os três jovens na cafetaria. Liu voltou a falar, dizendo que aquelas imagens, aqueles sorrisos, e aqueles gestos ficariam marcados para sempre em seus corações, e que a tragédia maior seria se os esquecessem...

Eram quase sete e meia da noite, quando as homenagens, por fim, terminaram. Jessica levantou-se depressa, a fim de ir embora antes que alguém lhe lançasse algum olhar estranho, mas Claire e Liu meio que correram até ela, acenando loucamente, obrigando-a a esperar.

- O que é que você fez com o seu celular? – veio perguntando Claire. – Eu estou há dias tentando falar com você, Jess! Devo ter deixado umas dez mensagens de voz em sua caixa de mensagem!

- Desculpe – Jessica encolheu os ombros, sentindo-se sinceramente culpada. – É que ele descarregou, e não coloquei pra carregar, desde que chegamos...

- Tenho que ligar pra mãe dela, pra poder falar com ela – comentou Phil, num ar de reprovação.

- Então trate de carregar o seu celular assim que chegar em casa, ou então, me ligue do celular de sua mãe. Não pode se isolar de mim, mocinha. Lembra-se do pacto que fizemos no primeiro ano? Não pode romper a nossa relação dessa forma!

Jessica esboçou um sorriso divertido, como não fazia há dias. Ah, Claire... Ela sabia mesmo como demonstrar sua preocupação sem fazer com que Jessica se sentisse uma criança que precisasse de cuidados especiais. Às vezes a preocupação de Phil a sufocava...

- Tudo bem...

- O que acharam da minha homenagem? – quis saber Liu, com as mãos enterradas nos bolsos da calça social. – Foi muito depressiva? Muito emotiva?

- Nós nascemos para morrer— imitou-o Claire, com a voz mais grave. – Foi perturbador. Sério mesmo. Devia ter dito que Jesus os acolheu em seus braços de amor, e que todos viraram anjinhos da guarda. É o que as pessoas preferem ouvir em ocasiões como essa. E não que o dia de cada um vai chegar...

Liu deu de ombros, parecendo chateado. Mas, antes que Jessica ou alguém dissesse qualquer coisa, uma figura de chapéu preto enfeitado por penas aproximou-se sutilmente – ou tão sutil quanto o chapéu permitia.

- Oi, Jess – disse Brenda Grigori, numa vozinha solidária.

- Oi – Jessica refreou o impulso de franzir o cenho.

Brenda sorriu meigamente para os outros, sem dar-se ao trabalho de cumprimenta-los verbalmente. Então, num gesto descaradamente superficial, tomou a mão de Jessica entre as próprias, e inclinou a cabeça enfeitada pelo chapéu.

- Eu só queria que soubesse que eu não te acho estranha – começou ela, com a mesma vozinha meiga de antes. – Eu sei que todos estão dizendo que você é uma bruxa, ou que tem pacto com o diabo, mas eu não acredito em nada disso. Sei que você é uma ótima pessoa e fez o que pôde para nos alertar... Eu estou do seu lado, tá bom? – sorriu.

Jessica ficou em silêncio por alguns segundos, perplexa demais para dizer qualquer coisa. Ao seu lado, Claire não escondia o acesso de riso, mesmo apesar dos cutucões que Liu lhe desferia nas costelas.

- Hmm – começou Jessica, agora franzindo o cenho. – Obrigada.

Brenda deu-lhe uma piscadela forçada, antes de começar a se afastar, rebolando e lançando um olhar estranho a Claire, como se ela é que estivesse usando um chapéu ridículo de penas de corvos.

- Se controla, Claire! – sussurrou Liu, aborrecido.

- Meu Deus do céu – exclamou a garota loira. – Eu não acredito no que acabei de ouvir...

- Ei, ela só estava sendo legal! – retorquiu Liu.

- Só estava sendo ela mesma...

- As pessoas estão mesmo falando que eu tenho pacto com o diabo? – quis saber Jessica, estupefata.

- Claro que não, amor – Phil meneou a cabeça, parecendo irritado com a inesperada manifestação de Brenda.

- Ela só está à procura de uma nova melhor amiga – comentou Claire, se recompondo um pouco. – E você parece a candidata da vez. Talvez ela mesma pense aquelas coisas e acredita que pode se beneficiar com isso. Sério, Liu, não sei como ainda é apaixonado por alguém assim...

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Do outro lado do salão, Patrick Jackson observava Jessica e seu grupo de amigos com os olhos inchados de tanto chorar. Seus sentimentos em relação a ela estavam confusos, agora. Alguma coisa ruim fervilhava em suas entranhas, ao vê-la. Não sabia o que era. Talvez a culpasse pela morte de seu irmão gêmeo e de sua cunhada. Se ela sabia o que ia acontecer, não se esforçou o bastante para salvá-los. Mas, ao mesmo tempo em que pensava nisso, tentava se colocar no lugar dela e entender o pânico que sentira, diante da “visão”. Ele não faria melhor...

Seus pais aproximaram-se dele, e disseram que estavam indo embora. O rapaz levantou-se e procurou por Tyler com os olhos. Lá estava ele, sozinho, mexendo no celular. Parecia tão indiferente. Não indiferente, mas inabalável. Como se não tivesse motivos para sofrer. Como se não tivesse morrido ninguém que lhe fizesse falta.

Caminhou até ele.

- Carona? – sugeriu.

Tyler ergueu os olhos, sobressaltado, e guardou o celular no bolso.

- Claro.

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A casa de Craig Temple era, de longe, a casa mais bonita e invejada de seu bairro. Ele, um empresário bem sucedido no ramo de lojas de material de construção, e sua mulher, Pamela Craig, era vice-presidente da empresa. Conquistaram a fortuna juntos e agora tinham lojas espalhadas por toda a América. Claire não queria seguir a carreira dos pais e eles sabiam disso, embora não apoiassem a ideia. Mas, depois de um tempo, acabaram por desistir de argumentar.

De qualquer forma, Claire era, muito provavelmente, mais rica que Brenda Grigori. Não admitia isso e nem agia como se fosse, porque odiava a forma como as garotas ricas agiam na escola. Especialmente Brenda.

Naquela noite, Liu Wong deixou-a em casa. Ele tinha um carro velho, cor de vinho, que ganhara aos dezesseis anos do pai. Apesar de falhar algumas vezes, era muito útil!

- Prontinho – disse ele.

- Obrigada – a moça sorriu, mas parou em meio gesto de abrir a porta, hesitante. Então, virou-se e fitou Liu por alguns segundos.

- O que foi? – quis saber ele.

- Nada, eu só estava pensando o quanto a paixão pode cegar um garoto – disse ela, parecendo sem jeito. – Você vive atrás de Brenda, como se existisse só ela no mundo. E ela nem é tão boa assim... Quero dizer, meu Deus, você devia abrir os olhos e enxergar as coisas que acontecem bem debaixo do seu nariz!

- Isso foi uma piada de asiático, não foi? – o rapaz franziu o cenho. – Abrir os olhos?

Claire não conteve o riso, suspirando. Então, tomou coragem, e, sem qualquer rodeio, inclinou-se e beijou-o brevemente, como que para despertá-lo para o que a vida lhe oferecia, além de Brenda Grigori.

Liu pareceu atônito, o coração acelerado no peito. Não conseguiu pensar em nada que pudesse dizer ou fazer. Apenas permaneceu ali, observando Claire abrir a porta do carro e se afastar em silêncio.

A moça esperou ouvir o carro de Liu acelerar e ir embora, mas não. Não foi isso que aconteceu. Mesmo assim, não olhou para trás. Continuou cruzando o jardim bem cuidado de sua casa, ignorando sua presença. Dessa forma, o impacto seria maior...

Quando Claire finalmente entrou em casa, Liu ainda estava ali. Ela não pôde deixar de sorrir bobamente. No entanto, fechou a porta, como se não o tivesse visto, e girou a chave.

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Jessica sentou-se diante do computador, e pediu desculpas mentalmente a Phil, por ter de quebrar a promessa. O rapaz a deixara em casa há alguns minutos, e Jessica disse que estava com dor de cabeça e queria dormir mais cedo aquela noite, quando, na verdade, ela só queria ter um tempo sozinha para pesquisar sobre os casos mencionados por Eileen Blackwell no Hey, Anna!

Enquanto a página da web não abria, Jessica procurou pelo celular abandonado por ela, e conectou-o ao cabo USB, para que a bateria carregasse um pouco. Então, a garota digitou na barra de pesquisas: Eileen Blackwell.

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O interior da casa de Claire era ainda mais belo que o lado de fora. No grande saguão de entrada havia várias estatuetas de artistas famosos dispostas em pontos estratégicos, além das três bandeiras enormes que seu pai insistia em deixar ali – uma dos Estados Unidos, outra de Israel e a última, de McKinley. Seu pai era um judeu orgulhoso, e gostava que as pessoas que entrassem em sua casa soubessem disso logo que cruzassem a porta.

Uma escada “supermoderna” feita apenas por paralelepípedos de madeira presos à parede, sem nenhum corrimão, levava ao segundo andar. Era lá que ficavam os quartos, três banheiros e a sala de jogos.

Claire tirou os sapatos assim que entrou, e foi até a cozinha. Estava morta de fome, e não havia jantar, já que seus pais estavam em uma reunião da filial da empresa em Nova York. Abriu a geladeira, e tirou uma jarra de suco. Depois de procurar alguma coisa nos inúmeros recipientes de plástico, achou o resto de um macarrão à bolonhesa.

- Isso vai servir... – murmurou ela.

Pegou uma frigideira e colocou-a sobre o fogão, despejando o macarrão nela. Acendeu o fogo, deixando-o no mínimo. Enquanto se afastava, e subia a escada para o segundo andar, sentiu o celular vibrando em sua mão. Sorriu. Sabia que isso aconteceria.

Me desculpe, eu fiquei sem reação”, dizia o torpedo de Liu.

- Como se eu não tivesse percebido – disse ela, em voz alta, enquanto digitava uma resposta. Passou pela estátua em tamanho real de uma mulher nua com asas de anjo, que ficava na junção da escada e o corredor do segundo andar, e entrou em um dos banheiros. O que tinha a banheira.

Tudo bem”, foi o que ela escreveu.

Claire aproximou-se da banheira de mármore, e abriu as duas torneiras, de modo que ela enchesse depressa. Pegou o vidro de sabonete liquido, que ficava em um suporte acima da banheira, e despejou um pouco na água. Seu celular vibrou mais uma vez.

Desde quando você gosta de mim?

Claire soltou um risinho bobo.

Tem muito tempo... Mas você só tem olhos para a Grigori, e por isso não percebeu”, digitou. Gostava de ser má, mesmo naquelas situações. No entanto, estava se sentindo estranhamente boba. Já havia saído com alguns rapazes, afinal, ela era linda e nunca passava sem ser notada. Mas, nunca gostara de verdade de nenhum deles. Apenas de Liu.

Depois de enviar o torpedo, a moça mordeu o lábio inferior, fitando o vazio, como faziam as pessoas apaixonadas, segurando o vidro de sabonete liquido em uma das mãos. A banheira estava enchendo rapidamente, formando bolhas perfumadas na superfície.

Depois de um tempo, ouviu alguns estalos vindo do andar debaixo, e, então se lembrou do macarrão no fogo.

- Droga! – xingou, largando o vidro de sabonete liquido sobre o suporte, e saindo apressada do banheiro. Ela não percebeu, mas, por causa do mal jeito em que o deixara, o vidro de sabonete tombou, e começou a despejar todo o conteúdo na banheira, que continuava a encher.

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Jessica lia, sentindo o medo crescer a cada palavra, os artigos sobre as teorias de Eileen Blackwell avidamente. Depois, começou a pesquisar pelos nomes mencionados por ela. Pessoas que sobreviveram a grandes tragédias, após alegarem ter visões, antes do conhecido caso do voo 180. Sam Lawton, Jude Clayton e Bill Bludworth.

Sam Lawton, que previu o colapso de uma ponte suspensa em Mt. Abraham, morrera, coincidentemente no voo 180, com a namorada Molly Harper e o resto da turma de Alex Browning. Jude Clayton, que alegava ter previsto um incêndio em um prédio comercial, em 1997, morrera afogada na própria banheira dois meses depois. No entanto, não encontrara nada sobre o tal Bill Bludworth.

Ainda tentava encontrar alguma coisa, quando seu celular vibrou, e a voz de uma mulher disse, sem que ela apertasse qualquer botão: Você tem oito novas mensagens de voz. Jessica franziu o cenho, o coração palpitando devido ao susto. Apanhou o celular, e teclou para ouvir as mensagens.

- Oi, Jess, sou— dizia a voz de Claire. – A gente mal se viu, depois que chegou... Só queria saber se você está bem. Me liga, assim que puder... Beijinhos!

Jessica desviou os olhos para a tela do computador, enquanto outra mensagem de voz começava. Também era de Claire.

- Jessica, estou preocupada com você. Pode me ligar, por favor?

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Quando Claire chegou a cozinha, uma fumaça cinzenta e espessa subia da frigideira em chamas sobre o fogão. Tapando o nariz com o antebraço, a moça tentou pegar a frigideira pelo cabo, e soltou um grito de xingamento. Estava muito quente! Tentando ser rápida, para não acionar o alarme de incêndio, que faria os bombeiros ir até lá, Claire desligou o fogo e procurou por uma luva de cozinha, nas gavetas do armário. Encontrou-a com um pouco mais de demora do que esperava. Abriu uma das janelas, e pegou a frigideira pelo cabo, tossindo por causa da fumaça, que enchia toda a cozinha. Sem pensar duas vezes, jogou a panela na pia, e abriu a torneira. Uma nuvem ainda maior de fumaça ergueu-se da frigideira, com um chiado assustador. Claire xingou mais uma vez, recuando alguns passos. Então, soou o alarme de incêndios.

- Ah, ótimo – resmungou ela, correndo para abrir todas as janelas da cozinha, para que a fumaça fosse embora depressa. Enquanto isso, no segundo andar, a banheira cheia de água e sabonete liquido transbordava.

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—... eu sei que deve estar sendo muito difícil pra você lidar com isso, mas não pode se esconder assim da gente. Estava pensando seriamente em ir aí te ver, mas tenho medo de que bata a porta na minha cara. Me liga, por favor, se não vou morrer de preocupação!

Jessica franziu o cenho, ao ouvir a última frase. Um mau agouro. Antes que a próxima mensagem de voz começasse, a garota pegou o celular, e decidiu ligar para a amiga.

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A água espumosa e ensaboada resvalava pelo corredor do segundo andar livremente, enquanto a banheira continuava transbordando. No andar debaixo, o som estridente do alarme de incêndios abafava qualquer som. E, por isso, Claire não percebeu que seu celular estava tocando. Continuava tentando fazer com que a fumaça e o cheiro horrível de macarrão queimado fossem embora.

- Droga, droga, droga – resmungava ela, imaginando o que diria aos bombeiros, quando chegassem para apagar ao incêndio. Malditos sistemas de segurança instalados por seu pai! E o pior é que não sabia como desativar aquela droga.

Em meio ao som estridente do alarme, Claire ouviu o som abafado da campainha. Não, pensou. Não podia ser os bombeiros. Não eram tão rápidos assim.

A moça caminhou até o saguão de entrada, afastando a fumaça fedorenta com a mão e tentando não tossir. Não ouviu o som da água escorrendo do alto da escada. Abriu a porta. Para seu alívio, não era nenhum bombeiro. Era o seu vizinho, o Sr. Grayson.

- Boa noite, Claire – disse ele, parecendo preocupado.

- Boa noite, Sr. Grayson.

- Está tudo bem? Eu e minha esposa ouvimos o alarme, e vimos a fumaça saindo pelas janelas...

- Ah, não, está tudo bem – Claire deu seu melhor sorriso reconfortador. – É que eu sou um desastre na cozinha... E não sei desligar esse alarme, então...

- Ah, sim – o homem sorriu cordialmente. – Nesse caso, então, eu não posso ajudar, porque também não sei mexer com esses sistemas de segurança sofisticados.

Claire forçou um sorriso, percebendo o tom sarcástico do vizinho.

- Pois é – disse ela, começando a fechar a porta. – Obrigado por se preocupar, Sr. Grayson! Tenha uma boa noite – e, sem esperar por resposta, Claire bateu a porta com força.

Àquela altura, a fumaça estava mais dispersa, embora o cheiro de macarrão queimado ainda impregnasse o ar. A água espumosa da banheira alagava todo o banheiro, o corredor do segundo andar, e escorria pela plataforma maior, que ficava no alto da escada. Claire estava prestes a voltar para a cozinha, quando ouviu o som da água caindo e lembrou-se da banheira.

- Ah, não! – exclamou ela, subindo a escada às pressas.

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Jessica discou o número de Claire mais uma vez, alarmada. Mas a moça não atendia. E isso fazia com que seu medo aumentasse. Havia alguma coisa errada.

Decidiu, então, ligar para Liu. Sabia que foram embora juntos, talvez ainda estivessem juntos.

- Oi, Jess – atendeu o rapaz.

- Liu – uma janela de anúncio apareceu no canto da tela do computador, e dizia: Ajude o Templo do Senhor do Sétimo Dia a continuar existindo! Doe agora mesmo!— Claire está com você?

- Não, eu já estou em casa – pausa. – Por quê? Você...?

- Liu, eu... eu não sei o que é – os olhos da moça continuaram fixos no pequeno anúncio. Templo. Arrepiou-se. – Há alguma coisa errada. Será que pode me levar até lá?

- Levar até...?

- Rápido, Liu! – interrompeu-o Jessica, levantando-se. – Acho que ela corre perigo.

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Claire caminhou até o banheiro lentamente, com uma das mãos na parede para não escorregar e cair. Seus pais iam matá-la. Primeiro o quase incêndio na cozinha, agora o segundo andar estava praticamente alagado. Tudo isso por quê? Porque estava distraída com os torpedos de Liu Wong. Não devia ter se declarado àquela noite. Não mesmo.

Enquanto desligava as torneiras da banheira, Claire percebeu que o alarme, por fim, dera uma trégua.

- Graças a Deus! – murmurou. Ao mesmo tempo em que dizia isso, sentiu um vento frio soprar-lhe a nuca. Desviou os olhos para a janela. Estava fechada. Franzindo a testa, a moça virou-se para sair do banheiro, tomando cuidado para não escorregar. Seus pés deslizavam pelo piso liso e espumoso perigosamente.

Nesse ritmo, Claire patinou até o fim do corredor, onde a plataforma maior do topo da escada desaguava água e espuma, lá embaixo. Pelo menos não molhara as amadas bandeiras de seu pai. Inclinou-se um pouco, apoiada no ombro da estátua de mulher nua com asas de anjo, ao seu lado, percebendo o quanto as hastes das bandeiras eram pontiagudas. Nunca havia reparado isso antes.

Então, veio o baque estrondoso da porta do banheiro se fechando, como que soprado por um vento muito forte. Claire, instintivamente, virou-se, sobressaltada, e seus pés se desequilibraram, patinando no chão escorregadio. No mesmo instante, a moça soube que cairia nas bandeiras, que ficavam bem abaixo da plataforma. E, numa tentativa desesperada de se salvar, Claire agarrou-se ao braço da estátua de anjo ao seu lado. Mas ela não era tão pesada quanto supunha. Agora ambas estavam caindo.

O grito da moça foi interrompido, quando as hastes pontiagudas das bandeiras perfuraram sua carne, rasgando os órgãos vitais e a traqueia. Sangue esguichou de sua boca, antes que a estátua se despedaçasse ruidosamente sobre seu corpo, fazendo com que as hastes entrassem ainda mais fundo em suas entranhas, e emergissem de seu peito e garganta, como setas ensanguentadas.

A cabeça da estátua de anjo rolou pelo chão molhado e cheio de cacos do saguão de entrada, e parou a alguns centímetros das bandeiras, os olhos sem vida e inexpressivos voltados para Claire, como se a assistisse tentar respirar pela última vez...