Quando Liu Wong virou a esquina, percebeu as luzes e a sirene do corpo de bombeiros diante da casa de Claire. Suas mãos começaram a suar, agarradas ao volante. Não, por favor, não...

Ao seu lado, Jessica deslizou a mão trêmula pelos cabelos, num gesto de ansiedade. Lágrimas começaram a se formar em seus olhos, enquanto a eminente conclusão estalava em sua mente. Recusou-se a aceitá-la. Ainda havia esperança. Talvez, Claire estivesse bem... Talvez...

- Rápido, Liu! – exclamou ela.

O rapaz estava emudecido e pálido, quando finalmente freou atrás do carro dos bombeiros. Vários vizinhos curiosos, usando roupões e pijamas, estavam do lado de fora de suas casas, espichando o pescoço para tentar enxergar alguma coisa além da faixa de interdição que cercava a fachada da mansão dos Temple. Além do carro do corpo de bombeiros, duas viaturas policiais estavam estacionadas do outro lado da rua, os agentes caminhando de um lado para outro, tomando notas e conversando com algumas pessoas.

Jessica saltou do carro assim que Liu parou. Embora se sentisse estranhamente entorpecida, como se estivesse em um pesadelo, a moça avançou rapidamente pelos jardins da casa de Claire, ignorando o policial que a mandava parar. Passou por baixo da faixa preta e amarela de interdição, e sentiu um cheiro forte de queimado. Que não seja a Claire, que não seja a Claire...

Passou pela porta aberta, e deparou-se com a cena que a fez cambalear para trás, o ar fugindo de seus pulmões.

- Não...!— gritou, levando as mãos trêmulas e geladas à boca.

Alguém a agarrou pelas costas, e começou a arrastá-la para fora. Ainda assim, em meio às lágrimas que marejavam seus olhos, podia ver a melhor amiga empalada por três enormes bandeiras no saguão de entrada. O sangue vermelho vivo secara em seu pescoço, onde a ponta de uma das hastes aparecia. Havia pedaços do que parecia ser uma estátua espalhados pelo chão, onde policiais marcavam pontos distintos com objetos amarelos.

- Calminha, calminha – dizia a voz de quem a arrastava de volta à rua.

- Não...— Jessica não parava de balbuciar, como se negar aquilo pudesse mudar a realidade.

Os braços do estranho que a arrastava finalmente a soltaram. Jessica sentiu as pernas vacilarem, e caiu de joelhos na calçada da casa de Claire. Era sua culpa... Era sua culpa! Devia ter procurado pela amiga nos primeiros sinais. Devia ter sido mais rápida...

- O que houve com ela? – exigia a voz de Liu, que parecia estar ao seu lado, embora falasse com outra pessoa.

- Vocês são parentes?

- Somos amigos dela – a voz de Liu falhava. – Quem fez isso?

- Sinto muito, mas não posso dar esse tipo de informação – dizia a voz desconhecida. Jessica não sabia quem era, porque lágrimas embaçavam sua visão, e não se importava em saber. Parecia que estava em um pesadelo escuro e cruel, em que os rostos eram como borrões, o ar era gélido e o mal se aproximava sem que ela pudesse fazer nada, além de aguardar e temer...

x-x-x-x-x

O pequeno apartamento em que Tyler Cassey morava ficava no centro da cidade, e tinha apenas três cômodos: cozinha, quarto e banheiro. E, na verdade, não precisava de mais. O rapaz não tinha muita coisa que pudesse chamar de seu. Apenas uma cama, que levara consigo quando saiu da casa de seus pais; uma televisão que raramente funcionava; um fogão de quatro bocas; e uma geladeira de segunda mão, que ainda estava pagando com o dinheiro que ganhava trabalhando meio período na serralheria Jimmy’s Saw. Apesar disso, Tyler não se arrependia de ter tomado a decisão de sair da casa dos pais.

Suas únicas dificuldades eram: cozinhar e organizar as coisas. O rapaz vivia sustentado por pizzas e batatas fritas, engolfado em meio à bagunça de roupas espalhadas pelos cômodos, embalagens plásticas, revistas eróticas e louças que carunchavam na pia da cozinha. Mas era aquilo que o fazia se sentir em casa. Aquele ambiente era seu. Não havia porque organizar o apartamento, se não recebia visitas – além de sua mãe, e Patrick, é claro. Nunca levava uma garota pra lá. As coisas sempre rolavam em outros lugares – salas vazias da escola, as arquibancadas do campo, um banco da praça, ou, quando a garota tinha um, no banco de trás de um carro.

Sua mãe, Betahny Cassey, vinha vê-lo em alguns finais de semana, e aproveitava para dar um jeito nas coisas, falando sem parar sobre como o filho era desorganizado e anti-higiênico. Tyler odiava essas visitas. Não por causa da mãe em si, mas pelas coisas que ela dizia. Na verdade, suas reclamações fora um dos motivos de ele ter saído de casa.

E lá estava o rapaz, em meio à bagunça de seu quarto, tragando um cigarro de menta e assistindo a um filme de terror antigo que sempre era reprisado nas madrugadas, devido à falta de programação. Seu último punhado de maconha havia sido torrado na tarde em que foram para Tunner Beach, e agora, tentava canalizar seu vício para outras opções. Patrick insistia para que ele parasse de fumar de uma vez, mas... não era tão fácil assim. Não pra ele.

Na TV, o assassino mascarado perseguia a vítima – uma moça de cabelos rebeldes, usando apenas roupa de baixo – com um facão nada modesto. Ela gritava loucamente, esbarrando em árvores e tropeçando onde não havia nada em que se pudesse tropeçar. Tyler se divertia com aqueles filmes de terror cheios de clichês. Era sempre a mesma coisa: um casal fazendo sexo na floresta é interrompido antes do orgasmo por um assassino mascarado. Primeiro, o cara morre, dando uma de machão. E, depois, o assassino perseguia a moça seminua, que sempre tropeçava, e gritava como uma louca, antes da morte. E, naquele, não foi diferente. A moça se arrastava, gritando, enquanto o assassino se aproximava. Ele ergueu o facão, e, num único golpe, partiu-a ao meio. Tyler bufou, enquanto as vísceras da garota se espalhavam pelo chão, com um sangue absurdamente alaranjado.

Foi nesse momento que ouviu o celular tocando. Franzindo o cenho, Tyler soltou uma baforada de fumaça pela boca, e inclinou-se para pegar o celular, que estava na cabeceira da cama. Era Philip King. E eram meia noite e dezoito.

- Alô? – atendeu, desviando os olhos para a TV. Mais uma garota havia aparecido, e perguntava de forma patética: O que você fez com ela?

- Desculpa ligar a essa hora, Tyler – dizia Phil. – É que... Jessica estava preocupada. Tá tudo bem, não é?

Você é a próxima, dizia o assassino, correndo atrás dessa garota patética.

- Como é? – Tyler franziu ainda mais a testa, desconcertado. – Sua namorada estava preocupada comigo? Foi isso que entendi?

Não, por favor, deixe-me em paz!

- É – Phil parecia relutante em dizer aquilo. – É que... aconteceram umas coisas... Mas, já que você parece ótimo, então, eu vou desligar. Se cuida, até...

- Não, não – interrompeu-o Tyler, empertigando-se na cama, enquanto a compreensão o deixava tenso. – O que foi que aconteceu? Ela não teve nenhuma visão comigo, não é? Porque eu preciso saber, se ela...

Socorro! Socorro! Alguém me ajude!

- Não – disse Phil, como se o ridicularizasse. – É que a Claire... Ela... foi morta, esta noite.

- O quê?! – aquilo, sem dúvidas, foi mais chocante que a primeira informação. – Claire? Claire Temple?

- É.

Por favor, por favor, não...— choramingava a garota do filme.

- Ela foi assassinada? – Tyler sentiu o pomo de adão subir e descer, enquanto engolia em seco.

- Ainda não sabemos. Escuta, Jessica precisa de mim agora... Liguei só pra saber se você tá bem porque ela insistiu que eu fizesse isso. Ela acha que a morte da Claire tem alguma coisa a ver com o que houve em O’Reoy, e tá preocupada com todo mundo... Não esquenta, não. É só que ela ficou assustada. A Claire era a melhor amiga dela...

Tyler ficou em silêncio, sua mente trabalhando com rapidez para ordenar as informações. Na TV, a garota gritava como nunca, sendo golpeada várias vezes com o facão do assassino mascarado.

- Tyler?

- Hmm, tá – Tyler meneou a cabeça, como se quisesse afugentar alguma ideia. – Tudo bem...

- Se cuida– foi o que Phil disse, antes de desligar.

x-x-x-x-x

Phil enfiou o celular no bolso, e olhou para o outro lado da rua. Jessica estava encolhida no banco de trás do carro de Liu, com a porta aberta, para que pudesse ver o trabalho dos bombeiros e médicos legistas, na remoção do corpo de Claire. Recusava-se a ir embora, e parecia entorpecida, os olhos úmidos fixos em um único ponto.

Liu ligara para ele a pedido de Jessica – que não estava em condições de falar, no momento. Imediatamente, Phil pegou o carro e foi parar ali. No primeiro instante, não conseguiu acreditar no que havia acontecido. Era cruel e absurdo. Além de perturbador. Mas, diante da namorada, tentava não demonstrar nada disso... Ela não precisava ficar ainda mais apavorada. Por isso, tentava reconfortá-la com palavras que, até mesmo ele, estava começando a duvidar. Isso a deixava nervosa, mas ainda era melhor que concordar que “eram um tipo de anomalia, que era tudo culpa dela, e que todos iriam morrer”.

- A Morte é uma artista excepcional – disse uma voz grave e rascante, soando tão próxima que chegou a assustá-lo. Phil virou-se, e viu um homenzarrão negro, vestido num uniforme azul-escuro, tirando um par de luvas ensanguentadas causalmente.

- Desculpe? – Phil franziu a testa, sem entender.

- Deu trabalho tirar aquelas bandeiras de Claire – contou o homem, com um sorrisinho no canto dos lábios. Abriu as portas do fundo de um furgão, que tinha os dizeres Chief Medical Examiner of McKinley, e jogou as luvas num canto.

- O senhor a conhecia? – quis saber Phil, curioso. O homem olhou-o por sobre o ombro, bufando ou dando uma risada mínima de quem sabia de alguma piadinha secreta. E, quando falou, não respondeu à pergunta.

- Sua namorada já entendeu o que está acontecendo – disse ele, os olhos negros e insondáveis cravando-se nos seus. – Ela é uma garota esperta. Sabe que ficar negando as coisas não vai ajudar.

- Do que o senhor está falando? – Phil olhou-o mais atentamente. Era um homem, de fato, assustador. Ombros largos, expressão forte e aquele ar de quem o conhecia intimamente. E, na verdade, seu rosto não lhe era tão estranho assim. Havia um nome em seu uniforme: W. Bludworth.

- Eu sei quem são vocês – disse o homem, inclinando um pouco a cabeça. – São sobreviventes do desastre em O’Reoy. Trapacearam a Morte – Bludworth desviou os olhos para a casa de Claire, onde dois bombeiros vinham trazendo um pacote grande e negro, do tamanho de um corpo humano. Claire. Phil baixou os olhos, sentindo-se meio enojado. – E isso não foi nada bom...

Phil afastou-se, quando os bombeiros se aproximaram para colocar o corpo de Claire no furgão preto de Bludworth. Várias pessoas ainda assistiam à cena do lado de fora de suas casas, apesar do horário. Pareciam chocadas demais para voltar para suas camas aconchegantes e dormir.

- Me desculpe, Claire – sussurrou Jessica, que, de repente, estava do lado de Phil. O rapaz puxou a namorada para um abraço, e observou Bludworth fechar as portas do furgão, as palavras sombrias ditas pelo homem ecoando em sua mente.

Liu também estava por perto, embora não dissesse nada. Tudo o que ele conseguia pensar era na última mensagem que mandara para Claire. Esperava muito que ela tivesse lido, antes de... acontecer o que aconteceu. Então, ele ficaria mais em paz.

Bludworth virou-se, e seus olhos caíram sobre Jessica. Por um momento, seu cenho pareceu vincar-se um pouco. A moça sustentou seu olhar, sentindo sensação de que já o conhecia, pelo menos de vista. Tina as feições difíceis de esquecer. Principalmente o modo de sondar com os olhos.

- Bem – disse o homem, acenando. – Até logo.

E, com essas palavras que soaram um tanto agourentas, Bludworth afastou-se, entrou no furgão, e partiu, levando consigo o corpo de Claire Temple.

x-x-x-x-x

Para Katherine Russel, não existia nada pior do que esperar. Ainda mais esperar por alguém em plena manhã de domingo numa rodoviária porca e cheia de indivíduos altamente suspeitos. Mas ela não podia reclamar, como sempre fazia em seu antigo emprego. Não podia simplesmente ligar para seu chefe e dizer o quanto estava infeliz... Até porque não tinha mais chefe. Katherine Russel estava desempregada. E, por isso, fora parar ali, na rodoviária da pequena cidade de Mt. Abraham, Nova York. Por isso estava esperando sua irmã mais nova, Cassidy, ir buscá-la.

O cheiro da rodoviária era de urina, borracha queimada e fumaça de escapamento. Tão diferente do ar puro de Tunner Beach. Katherine ainda não acreditava na tragédia que aconteceu em sua vida. E não era, exatamente, o desastre que destruiu a ilha O’Reoy, há uma semana. Era o fato de ter sido demitida por causa dele, e ter de pedir socorro à Cassidy. Essa sim era sua tragédia.

Sentada sobre um jornal num banco, Katherine franzia o nariz, enquanto observava as pessoas ao seu redor. Não havia muitas, por sinal. Talvez porque fosse um domingo... As pessoas, provavelmente, estavam em suas casas, dormindo sem qualquer preocupação. Era o que ela queria fazer.

Uma mulher idosa, de olhos leitosos e aparência maltrapilha, estava sentada próxima a uma lojinha de conveniências. Ela ficava murmurando coisas para as pessoas que passavam por perto, e estendia a mão – não para pedir esmolas, mas para chamá-las. Era sempre ignorada. Primeiro por uma mulher esguia, com cara de cavalo. Depois uma senhora negra e apressada, que parecia nem a ter ouvido o seu murmúrio. Então, veio aquela moça bonita, de cabelos negros e terninho bege. Cassidy Russel.

- Já estava na hora – resmungou Katherine, forçando um sorriso para a irmã mais nova, que acenava alegremente, ignorando a mão estendida da velha maltrapilha.

- Oi! – exclamou Cassidy, radiante, se lançando no pescoço da irmã. Katherine retribuiu o abraço, sem tanta empolgação. Assim que se separaram, foi logo pegando a mala. – Desculpa a demora... É que eu fui comprar umas coisinhas pra gente tomar café! Ah, você está tão bonita! O clima tropical fez muito bem a você!

- Obrigada, Cassidy – Katherine forçou mais um sorriso. Estava tão acostumada a fazer aquilo em seu antigo trabalho, que era impossível perceber quando estava sendo sincera. – Você também está ótima...

Cassidy encolheu os ombros, sem dar-se ao trabalho de responder. A moça era cinco anos mais nova que Katherine, e era muito bonita. Tinha os mesmos cabelos escuros da irmã, mas o seu tom de pele era um tanto mais claro.

- Então, vamos?

Estava demorando, pensou Katherine. As duas começaram a avançar pela rodoviária quase deserta de Mt. Abraham, em direção ao estacionamento. Katherine , que vinha arrastando sua mala, desviou os olhos para a mulher maltrapilha no chão.

- Ainda estou assustada com o que aconteceu com vocês, em O’Reoy – dizia Cassidy. – Imagino como você deve se sentir, já que...

- Quer conhecer o que o destino lhe prepara, madame? – murmurou a velha, os olhos leitosos e definitivamente cegos fixos em Katherine, como se pudessem enxergá-la. Katherine imediatamente parou, ignorando a irmã, que tagarelava sobre como os desastres naturais eram imprevisíveis.

- Quanto é? – perguntou Katherine, sem acreditar que havia mesmo perguntado aquilo.

- Vejamos – a mulher estendeu as mãos, e tomou a de Katherine entre as suas. Cassidy parou, há alguns metros, percebendo que a irmã ficara para trás.

- Katherine? – chamou-a.

Katherine fez sinal para que ela esperasse, sentindo-se uma idiota por estar fazendo aquilo. Mas, não havia mais como voltar atrás sem parecer ainda mais estúpida. Simplesmente se sentira tentada em saber o que a velha diria sobre seu futuro.

- Então? – incentivou Katherine, percebendo que a velha estava muito quieta, deslizando o dedo enrugado e áspero pela palma de sua mão. A velha ergueu os olhos, com uma expressão de profunda tristeza.

- Não precisa pagar nada – disse a velha, soltando sua mão. – Eu sinto muito...

- Pelo quê? – Katherine olhou para a irmã, por sobre o ombro, e fez uma careta de zombaria, embora, por dentro, alguma coisa estivesse alarmada.

- Pelo que te aguarda.

- E o que é?

- A morte, madame. Eu vi a morte.

Katherine bufou, tentando manter a expressão sarcástica. Olhou mais uma vez para a irmã, que parecia impaciente, e tirou um dólar de sua bolsa.

- Toma – Katherine disse, jogando a nota para a mulher, como quem joga milho para as galinhas. – Eu vou pagar mesmo assim. Mas tem que parar de tentar assustar as pessoas... Da próxima vez, diga algo sobre dinheiro, fama e um grande amor. É o que as pessoas gostam de ouvir. Obrigada – dizendo isso, Katherine se afastou, indo se juntar a irmã. E, quando cruzaram a entrada para o estacionamento, Katherine não resistiu dar uma olhadela por cima do ombro. Não ficou realmente surpresa, mas sentiu-se ligeiramente desconfortável: os olhos leitosos e tristes da mulher ainda a acompanhavam.

x-x-x-x-x

O telefone da casa de Jamie Shawn estava tocando mais uma vez. Era a terceira, apenas na parte da manhã. E aquele som agudo e irritante soava como uma verdadeira tortura para seus tímpanos e sua cabeça, que latejava como se estivesse prestes a explodir.

Shawn balbuciou alguma coisa, e tateou ao seu redor, a procura do maldito telefone. Assim que o encontrou, tirou o fone do gancho e sorriu, satisfeito, quando o silêncio voltou a reinar.

x-x-x-x-x

— Ele não atende mesmo – disse Liu, jogando o celular sobre sua desorganizada mesa de computador.

- Devíamos ir até lá – sussurrou Jessica, mais para si mesma do que para os outros.

- Mas os meninos estão chegando – interveio Phil.

- Acho que o professor Shawn está bem – Liu, deu de ombros. – Só deve estar bêbado demais para atender... Ou de ressaca. O diretor disse que passou na casa dele, ontem, e ele estava prostrado no sofá, rodeado por garrafas vazias de uísque.

– Pensei que ele tivesse superado este problema – comentou Phil.

Liu encolheu os ombros mais uma vez, com um ar distante.

Os três haviam se reunido a pedido de Jessica. Depois de uma longa e sofrível discussão com o namorado, a garota conseguiu fazê-lo aceitar que as coisas estranhas que vinham acontecendo nos últimos dias não eram simples coincidência ou casos isolados. E disse que não deixaria que mais ninguém morresse, e que contaria aos outros o que descobrira sobre os casos envolvendo premonições, acidentes catastróficos e “sobreviventes” – que acabavam morrendo, um por um.

Depois disso, ligaram para Liu e pediram sua casa emprestada para essa reunião, já que Jessica não queria que sua mãe soubesse dessas coisas. Phil ligou para Tyler e Patrick, convocando-os, e Jessica ligou para Brenda. Mas a garota disse que estava em um clube, e que não podia ir até eles no momento, desculpando-se melancolicamente.

Apesar de existirem outros alunos sobreviventes, Jessica não se lembrava de ter visto mais ninguém morrer em sua visão. Na verdade, havia aquela guia turística, Katherine Russel, mas não tinha ideia de como contatá-la. Portanto, seriam apenas os cinco.

– Liu, seus coleguinhas chegaram! – disse a Sra. Wong, colocando a cabeça no vão da porta do quarto.

– Coleguinhas, mãe? – Liu corou, envergonhado. – Jura?

– Ué, não são? – a Sra. Wong era uma asiática baixinha e rechonchuda, extremamente simpática. Jessica a adorava.

– Tá, tá, mãe – resmungou Liu. – Obrigado. Pede pra eles subirem, por favor...

– Eles já estão aqui! – a mulher sorriu, abrindo caminho para que Tyler Cassey e Patrick Jackson entrassem no quarto do filho. – Vou preparar um lanchinho pra vocês, tá bom?

– Mãe, por favor... – cortou Liu, acenando para que a mãe saísse logo.

A mulher gesticulou, como se lacrasse a boca com o zíper, e saiu do quarto, fechando a porta ao passar. E então, veio o silêncio sobre os cinco jovens.

x-x-x-x-x

Tyler olhava diretamente para Jessica, os olhos claros e frios injetados da acusação que a moça tanto temia. Patrick, por sua vez, parecia sem jeito e cabisbaixo, incapaz de olhar para qualquer um deles nos olhos. Estava claro que ele não queria estar ali.

– E então? – começou Tyler. – Chamaram a gente aqui pra ficar encarando um ao outro, sem dizer nada?

Jessica limpou a garganta e suspirou. Já estava sendo ruim o bastante sem as implicâncias de Tyler. Só queria que ele deixasse de ser um babaca por pelo menos algumas horas, e parasse de olhar para ela daquele jeito. Mas, é claro, não disse isso. A moça tomou coragem, e começou a contar tudo o quanto descobrira nas últimas horas a respeito dos eventos que pudessem ser ligados ao que houve em O’Reoy. Contou sobre as teorias de Eileen Blackwell, e apresentou o fato de que todas as pessoas que sobreviveram a catástrofes assim estavam mortas. Contou sobre a sensação que teve, na noite anterior e dos sinais que indicaram que alguma coisa ruim iria acontecer a Claire. Nessa parte, a moça não conteve as lágrimas, mas continuou dizendo que sabia que todos eles corriam perigo, e que deviam se unir para tentar salvar uns aos outros.

– Tem certeza de que você não é uma bruxa? – indagou Tyler, assim que a moça terminou de falar.

Jessica revirou os olhos, exasperada.

– Vá se ferrar...

– Não, é sério. Por que esse tipo de coisa não acontece com pessoas normais... Clarividências, presságios... Isso não é coisa de quem mexe com magia?

– Pelo amor de Deus, Tyler – Phil lançou ao amigo um olhar ameaçador.

– Tudo bem, tudo bem – o rapaz louro ergueu as mãos, em gesto de defesa. – Mas, e se você estiver certa? Tipo, eu acredito em você. Não tenho porque duvidar, depois do avião, e do deslizamento... Mas, mesmo assim, o que podemos fazer? Você é a única que vai saber quem será o próximo a bater as botas... Vamos ficar debaixo de sua saia, esperando que você tenha uma visão, ou sei lá o que, e que nos salve?

– Isso é bobagem, gente – interveio Patrick, meneando a cabeça. – Isso tudo é uma grande bobagem... Me desculpem, mas vejam só as loucuras que estão dizendo! A morte não pode ser evitada... Um dia, vamos morrer. E isso é bastante natural. Não há nada de misticismo nisso.

– Você não entendeu – Jessica suspirou. – Já devíamos estar mortos. E, agora, algo está tentando reparar os danos que causei à ordem natural das coisas, quando tive aquela visão e anunciei pra quem quisesse ouvir que haveria um deslizamento. Começou com Claire... E eu sei, eu sinto, que essa coisa não se deu por satisfeita.

Patrick continuou meneando a cabeça, incrédulo. No entanto, não disse nada.

– Trapaceamos a Morte – disse Phil, de repente. Todos os olhares voltaram-se para ele. – Foi o que aquele agente funerário, Bludworth, disse.

– Quem? – Jessica franziu o cenho.

– Bludworth. Acho que é isso. Alguma coisa Bludworth. Ele disse que trapaceamos a Morte, como se ela fosse uma pessoa. E disse que isso não era nada bom. Ele era sinistro...

Phil ainda estava falando, mas Jessica não ouvia mais. Seus pensamentos dispararam para o artigo que lera na noite anterior, ao ouvir aquele nome. Bludworth. Bill Bludworth. Eileen Blackwell mencionara aquele nome em seu artigo, como sendo uma das pessoas que sobreviveram a tragédias antes do voo 180, alegando ter tido uma visão. Mas não encontrara nada sobre nele na internet...

– Ah, meu Deus – sussurrou Jessica, a mente trabalhando tão rápido quanto as batidas de seu coração. – Ah, meu Deus, Bill Bludworth! Phil, qual era o primeiro nome desse agente funerário?

O rapaz parecia atônito.

– Não sei... Tinha só um W e o sobrenome. Por quê?

– W – sussurrou Jessica, estreitando os olhos. – W... É claro. William! Bill é apelido para William. Ah, meu Deus, Phil! A gente precisa ver esse homem agora!

A moça levantou-se depressa, e percebeu que todos a olhavam com estranheza, como se, de repente, tivessem certeza de que ela era mesmo louca.

– Você o conhece? – quis saber Phil.

– Não, mas ele pode nos ajudar. Se esse cara for quem eu acho que é, então é o grande culpado disso tudo estar acontecendo. Foi ele quem teve a primeira premonição.