Carolyne Pride fitava o vidro de remédios sobre a mesa com um ar hesitante. Não tinha dúvidas de que queria se matar. Não era essa a sua indecisão. Na verdade, acreditava que já devia ter feito isso há muito tempo. Sua dúvida era se aquela era a maneira mais impactante de cometer um suicídio.

A moça de vinte anos era franzina e desajeitada. Mas não era feia. Tinha uma vasta cabeleira cacheada e escura, além de belos olhos verdes. Mesmo assim, odiava a própria aparência. Ainda mais quando estava perto das outras garotas da sua turma de Negócios. Não que elas fizessem ou dissessem algo para intimidá-la... Carolyne apenas sabia que era a garota mais esquisita da turma. Sempre fora assim.

Sua mãe falecera quando tinha sete anos. Desde então, estava sob os cuidados dos tios, já que seu pai foi um estuprador desconhecido, que atacou sua mãe no McKinley Park. Por isso, Carolyne acreditava que, desde o princípio, da fecundação até os dias atuais, sua vida era uma desgraça. Não devia ter existido.

Os tios eram pessoas irresponsáveis e doentes. Nunca se preocuparam com ela, nem lhe deram nada novo durante toda a vida. Sempre ganhava roupas usadas, compradas em feirões e bazares. A tia Abby adquirira uma depressão fortíssima, ao longo dos anos. Era uma mulher amarga e rancorosa, que vivia dizendo que a garota queria roubar seu marido. Aquilo era um absurdo, embora seu tio, Jeff, tenha tentado levá-la para a cama várias vezes.

Mas o grande motivo que a fez tomar a decisão de tirar a própria vida foi o que Damian Perry e Jason Carver fizeram, há três dias. Era pra ser um encontro, mas acabou se transformando em um pesadelo cruel e doentio. Depois de deixá-la bêbada, Damian chamou o amigo, Jason, para fazer uma espécie de pornô caseiro. Carolyne estava bêbada demais para perceber do que se tratava, e acreditou que havia dormido apenas com Damian Perry, até ver o vídeo em que aparecia transando com os dois garotos. Toda a faculdade sabia sobre o vídeo. Todos riram dela. Todos lhe colocaram apelidos obscenos. E, sua integridade, dignidade e reputação deixaram de existir.

E agora, eu vou deixar também, pensou a garota. Que eles morram de culpa e remorso.

Carolyne desviou os olhos do vidro de remédio. Seu suicídio teria de ser mais impactante, decidiu.

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— Cara, eu acho que a Jessica tava falando sério – falou Tyler, desviando os olhos para as pessoas que passavam pela calçada.

- Também acho – concordou Patrick. – Mas isso não significa que não seja uma tremenda babaquice. Não acredito que chamaram a gente pra isso. Fiquem atentos aos sinais... Se pudéssemos prever nossa morte, e evitá-la, seríamos imortais. A Jessica é legal e tudo, mas está pirando agora...

Tyler ficou em silêncio, os olhos ainda voltados para a janela do carro, observando as pessoas da rua. Foi estranho ouvir aquilo de Patrick, porque sabia que o amigo era secretamente apaixonado por Jessica. Agora, ele parecia ter uma séria resistência a ela. Talvez aquilo tivesse alguma relação com a morte de Paul.

Enquanto Patrick dirigia pela rua principal, Tyler pôde ver um outdoor com a propaganda de um filme novo, chamado Queda Livre, em que um ator galã parecia cair de um prédio, com um revólver apontado para cima. “Cenas de tirar o fôlego”, prometia a propaganda.

- Duvido muito que encontrem esse tal de Bludworth – comentou Patrick, de repente.

Tyler não respondeu. Na verdade, também duvidava que o encontrassem. Afinal, tudo o que sabiam é que ele era um agente funerário... No entanto, torcia para estar errado.

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Jessica desceu do carro, sentindo um arrepio bem familiar na nuca. Estavam diante de um prédio antigo e com aparência de que foi abandonado há muito tempo. A única porta e todas as janelas estavam fechadas, e não havia nenhuma placa do lado de fora. Mas, lá estava o furgão preto, com os dizeres Chief Medical Examiner of McKinley estacionado sob a sombra de uma árvore frondosa.

- É aqui – disse a moça. – Eu me lembro de quando a tia Sierra veio ver a Erin.

- Tem certeza de que quer fazer isso? – Phil a fitava com preocupação.

A moça assentiu. E, sem esperar pelo namorado ou por Liu, começou a avançar em direção ao prédio, certa do que teria de fazer. Bateu na porta de madeira, e aguardou.

- Acho que ele não deve estar aí – comentou Liu, desconfortável.

- Mas o carro está aqui...

- Talvez ele deixa o... não, não, Jessica, não faça...

Mas a moça já estava abrindo a porta, que jazia destrancada. Embora se sentisse mal por fazer isso, sabia que era a coisa certa. Precisava saber se esse tal de W. Bludworth era o Bill Bludworth mencionado por Eileen Blackwell. Se fosse... então havia esperança. Havia um jeito de escapar dessa maldição.

A porta dava para uma pequena sala que parecia uma recepção. Havia um balcão, algumas cadeiras empoeiradas e um cesto com revistas antigas. O lugar era escuro e úmido, como se não visse a luz do sol há muito tempo. Além dessa sala, seguia-se um corredor mal iluminado, de onde vinham sons abafados e secos.

- Gente, isso não é certo – murmurava Liu, num fio de voz. – A gente podia voltar amanhã...

- Poderia ser tarde demais para um de nós – retorquiu Jessica, embora também estivesse amedrontada. Tomando coragem, a garota começou a avançar pelo corredor escuro, sentindo um formigamento desconfortável na nuca. Os sons vinham de uma das várias portas fechadas do corredor. Não demorou muito para encontrá-la. Resquícios de luz escapavam pelas frestas. Engoliu em seco. Cerrou o punho, e fez menção de bater.

- Está aberta – disse uma voz grave do outro lado, antes que sua mão tocasse a porta. – Podem entrar...

Jessica desviou os olhos para os dois rapazes, apreensiva. Como ele sabia? Liu fez uma careta, os lábios dizendo algum palavrão em silêncio. Phil apenas a fitou de volta, visivelmente tenso. Então, a garota girou a maçaneta e empurrou a porta.

Embora ali houvesse mais luz que os outros cômodos, ainda era muito mal iluminado. Uma única lâmpada de teto tentava fazer com que a luz clareasse todo o ambiente. Mas não era muito eficaz... E, por isso, Jessica não percebeu todas as coisas à primeira vista. Apenas um homenzarrão negro de costas, usando uma camisa social azul e calças pretas.

- Sabia que viriam – disse ele, sem se virar.

Jessica engoliu em seco, sentindo as mãos do namorado se fecharem em seus ombros, protetoramente. O homem deixou de lado uma pequena ferramenta metálica, e virou-se, com um sorriso mórbido nos lábios.

- Olá, Jessica.

A garota estreitou os olhos, atônita. Ele sabia seu nome...

- Bill Bludworth? – indagou ela, com dificuldade de fazer a voz sair.

Dessa vez, foi o homem quem estreitou os olhos, sem deixar o sorriso desaparecer.

- Ninguém me chama assim há anos – disse ele, virando-se e começando a se afastar. Ao fazê-lo, revelou uma maca de metal com o cadáver de uma garota. Jessica sentiu as pernas vacilarem, e um enjoo súbito atingiu o seu estômago. Era Claire.

- Minha nossa – sibilou Liu, virando o rosto, para não olhar.

- Ah, desculpem-me – disse Bludworth, cobrindo o cadáver de Claire com um lençol branco. – É que estou tão acostumado com a Morte, que me esqueço de que algumas pessoas se sentem mal diante dela.

- Fala como se a Morte fosse uma pessoa – comentou Phil.

O homem desviou os olhos para ele com uma intensidade assustadora.

- Não uma pessoa – pausa. – Uma força. Racional. Onipresente. E vingativa.

- Você disse que nós a trapaceamos...

Bludworth começou a empurrar a maca com o corpo de Claire para outro cômodo, este mais escuro. Soltou um risinho sarcástico.

- Sim – disse ele, desaparecendo na escuridão do cômodo. – E isso a deixou muito furiosa. O que houve com Claire foi apenas o começo. A Morte irá caçá-los. Um por um. Antes que a presença de vocês no mundo dos vivos acarrete mais... problemas para ela.

Jessica e Phil trocaram olhares amedrontados. Então, Jessica estava certa, afinal...

- Mas o senhor já passou por isso – começou a garota. – E está vivo.

Por um momento, não houve resposta. Bludworth continuou no cômodo escuro, onde não podiam vê-lo. Ao lado de Jessica e Phil, Liu parecia fazer uma prece em voz baixa, visivelmente apavorado.

- Não vai querer saber como – a voz de Bludworth soou de repente, enquanto ele reaparecia, agora sem o sorriso.

- Claro que quero saber – retorquiu Jessica. – É por isso que estamos aqui. Sei que tudo o que está acontecendo com a gente é consequência do que houve há muito tempo, no acidente em que você teve a premonição e sobreviveu. Isso tudo é culpa sua... Não é?

Bludworth a fitava com os olhos estreitos, a expressão impassível. Jessica, de repente, teve medo de que ele pegasse qualquer um daqueles instrumentos cortantes que estavam à sua disposição naquela sala, e a atacasse. Mas tentou não demonstrar isso. Sustentou o olhar mórbido do homem, inclinando o queixo.

- Depende – disse Bludworth, casualmente. – Se eu tivesse morrido no primeiro esquema da Morte, nenhum de vocês estaria aqui. Todos nós estaríamos mortos. Veja você, Jessica. Se sua prima Erin tivesse morrido na montanha russa, como estava no esquema da Morte, você teria morrido com o bêbado do seu pai na noite em que ele morreu. E vocês dois? Se Nick O’Bannon tivesse ignorado a visão que teve, no ano passado, no desabamento do autódromo, teriam embarcado no voo 909, e estariam mortos também. Tudo isso está mesmo ligado à minha sobrevivência... Mas não é minha culpa.

- Quem é Nick O’Bannon? – quis saber Phil.

- É uma das vítimas do acidente na cafeteria... – sussurrou Jessica, perplexa. – Ele também teve uma premonição?

- Sim. Só que não ficou famoso, como aconteceu com os outros. Mas, a questão é: todos nós estamos mortos. Se eu não tivesse saído daquele navio, e não tivesse conhecido Jude Clayton, dando seguimento a essa coisa toda, estaríamos todos como sua amiga ali. Todavia, como pode ver, não houve nenhum sobrevivente que durasse muito. Jude morreu. Sam Lawton morreu. Alex Browning, Kimberly Corman, Wendy Christensen, Nick O’Bannon e todas as pessoas que eles salvaram estão mortos.

- Mas você está vivo – rebateu Jessica, sem se conter.

- Porque eu não salvei ninguém.

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— Eu até o levaria para almoçar lá em casa, mas...

- Seus pais vão achar que vou pedir sua mão em casamento – completou Tyler, com uma expressão divertida, afagando o ombro do amigo de um jeito teatralmente carinhoso.

Patrick revirou os olhos.

- Na verdade, eu ia dizer que o clima não está nada bom por lá, desde que Paul morreu.

- Não esquenta – Tyler de repente sentiu-se mal pelo amigo, o sorriso sarcástico desaparecendo de seu rosto. – Eu vou comer umas Ruffles que sobraram de ontem à noite. Tem um pouco de Coca sem gás e um litro de vodka na geladeira.

Patrick bufou, sem demonstrar graça.

- Tem um restaurante novo, aqui no centro – disse ele, girando o volante para virar numa esquina movimentada demais para um domingo. – Le Cafe Miro 81. Dizem que a comida é muito boa...

- Está me chamando pra sair? – Tyler erguendo as sobrancelhas, fingindo estar chocado. – Ah, meu Deus! Você está mesmo me chamando pra sair? O que as pessoas vão dizer, Patrick?

- Haha, muito engraçado – resmungou o rapaz, embora o canto dos lábios estivesse ligeiramente repuxado em um sorriso.

- Não, é sério... Estou surpreso com essa sua atitude.

- Eu só não quero voltar pra casa – suspirou Patrick, sendo sincero.

- Não acredito que vai fazer mesmo isso... – disse Tyler, com um sorriso malicioso. – Eu te amo, cara.

- Ok, mas não diga isso em público.

- Pensei que não se importasse mais... – Tyler ergueu uma sobrancelha.

- Nem pra tanto, não é?

Tyler deu uma risadinha, feliz por conseguir arrancar um sorriso de Patrick. Desde a morte de Paul, o rapaz parecia um zumbi azedo e infeliz... Nada mais que o esperado para alguém que acabara de perder o irmão gêmeo em um desastre natural. Mesmo assim, era muito desconfortante vê-lo daquela forma... Por isso, qualquer sorriso nos lábios de Patrick era um grande passo.

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Carolyne Pride decidiu como seria. Rápido, irreversível e impactante. Não era original, mas causaria um grande efeito...

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Jessica estava perplexa, os olhos úmidos fixos no semblante sombrio de William Bludworth.

- Você não salvou ninguém?

- Não – o homem sorriu. – Não por maldade. Eu não conhecia as pessoas. Não acreditariam em mim. Então, saí sem que ninguém percebesse, e todos morreram, menos eu. Eu fiz a coisa certa, e por isso estou vivo. Fui o único.

- Fez a coisa certa? – Jessica estava chocada. – Deixando que as outras pessoas morressem?

Bludworth aproximou-se mais de Jessica, ficando tão próximo que a moça pôde sentir o calor de seu corpo. Phil apertou um de seus ombros com mais força, evidentemente desconfortável com aquela aproximação.

- Eu quem tive a visão – disse o homem, em voz baixa. – Não eles. Portanto, eu é que deveria viver. Nunca pensou nisso? Por que será que você teve a premonição? Entre todos os que estavam naquela ilha, por que você? Quem mais teria o poder para revelar o plano da Morte, senão a Própria? Mas, você fez tudo errado, salvando outras pessoas. E, agora, ela vai se vingar, como fez com todos os outros...

Jessica sentiu um vento frio e agourento soprar em sua nuca.

- Isso não faz sentido... Se era pra eu morrer na noite em que Erin e meu pai morreram, então porque ela teria o interesse de me salvar? Porque ela me revelaria seu plano?

- Jess, Jess – o homem sorriu. – Você ainda não entendeu... Para que as coisas voltem ao seu curso natural, é preciso abrir mão de algumas coisas, e a Morte sabe disso. Ela viria pra você, como virá para mim. Mas, a Morte achou que você pudesse ser útil em sua reconstrução da ordem. Mas você só piorou tudo... – Bludworth meneou a cabeça. – Ela não está nada satisfeita.

- Como você pode saber disso tudo? – quis saber Phil, num tom de incredulidade. Bludworth desviou os olhos escuros para ele, estreitando-os com um sorriso.

- A Morte me mantém vivo por um motivo – respondeu o homem, virando-se de costas. – Vieram aqui procurando ajuda, não é? Eu sinto muito. Não existe saída. Nem pra mim, nem pra vocês... Podem salvar a próxima vítima do esquema da Morte, mas ela virá depois. Podem oferecer uma nova vida em troca da sua, mas ela irá bater à porta, mais cedo ou mais tarde. Podem até mesmo tentar quebrar a lista, com um suicídio, mas ninguém vai antes da hora... Tudo o que fizerem, apesar de retardá-la um pouco, é em vão – ele riu, mexendo em algumas ferramentas metálicas em sua mesinha.

Jessica não sabia mais o que pensar. Eram informações demais de uma só vez. Ao mesmo tempo em que algumas questões eram respondidas, outras se formavam... Havia tanta coisa que queria perguntar. Mas, a pergunta que escapuliu de seus lábios parecia, por ora, a mais importante:

- Você fala em esquemas e listas... – começou ela, em voz baixa. – Existe uma ordem feita por ela?

- Ah, sim – disse o homem, sem se virar. – É a ordem da premonição... Claire foi a primeira a morrer, não foi? – som de riso. – Então, agora é a vez de quem morreu depois dela...

De repente, a imagem de Claire e Tyler sendo engolidos pelo deslizamento, logo após serem coroados, lampejou diante de seus olhos. Claire foi empalada pelas costas por nacos pontiagudos de madeira... E, Tyler, tendo o crânio e o tórax esmagados por uma grande pedra que rolou do alto da montanha. Estava tão claro como se tivesse acabado de acontecer... Então, tomada por um pavor gélido, a garota virou-se para o namorado, com ar de urgência.

- É o Tyler – disse ela. – O Tyler é o próximo...

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Patrick deixou o carro no estacionamento do restaurante, que ficava no térreo de um prédio de treze andares no centro de McKinley. As ruas e as calçadas estavam bem movimentadas para um domingo. Havia crianças com balões, grupo de mulheres às gargalhadas, casais fazendo caminhadas juntos, além de uns poucos idosos reunidos na praça, jogando o velho xadrez. Fazia um belo dia...

Estavam quase chegando à porta principal do Le Cafe Miro 81, quando o telefone de Tyler tocou.

- É o Phil... – disse o rapaz, olhando para a tela do aparelho. Atendeu. – Alô?

- Será que encontraram o tal homem que enganou a Morte? – satirizou Patrick, revirando os olhos para um grupo de pessoas vestindo social que vendia livros ali perto. Havia um grande cartaz religioso, dizendo: Olhe para o céu, e contemple tudo o que Deus fez. Patrick franziu o cenho.

-... é que eu não consegui ouvir, o telefone está muito baixo – falava Tyler, parando diante da porta do restaurante, com um dedo tapando o ouvido livre.

Patrick parou ao seu lado, e ergueu a cabeça, para olhar para o céu. Não teve muito tempo para agir. Apenas percebeu que alguma coisa grande caía do prédio em alta velocidade, bem acima de suas cabeças. Movido por instinto, puxou o braço do amigo, e tentou tirá-lo do alvo da queda, enquanto ele mesmo se afastava, aos tropeços. Mas não foi rápido o bastante.

O corpo em queda livre atingiu um dos ombros e a coluna de Tyler, lançando-o contra o chão da calçada com um baque abafado. Um filete de sangue saiu da boca do rapaz. Nada que se comparasse ao enorme leque de sangue que jorrou da cabeça da garota que caíra sobre ele. Patrick não entendia como aquilo foi acontecer, mas era uma garota... uma garota de cabelos cacheados e olhos verdes, que agora estavam sem vida. Um de seus braços e uma de suas pernas jaziam em ângulos impossíveis, com sérias fraturas expostas, o sangue escorrendo das feridas para a calçada. Apenas a parte que fora amortecida por Tyler parecia intacta... Mas isso não foi o suficiente para salvá-la.

Tyler, por outro lado, estava se movendo.

Patrick não sabia o que fazer. Estava em choque. Seu corpo recusava-se a se mexer, e seu cérebro parecia ter ficado inútil. Ao seu redor, pessoas se aglomeravam para ver o que havia acontecido, soltando exclamações, e tapando a boca, chocados.

- Uma ambulância – disse ele, primeiro em voz baixa. Era o que estava pensando. – Alguém chama uma ambulância! Rápido! Uma ambulância... – Patrick, livre do primeiro momento de choque, deu alguns passos em direção ao amigo, sob o corpo da garota morta, e ajoelhou-se ao seu lado. – Tyler... Está me ouvindo? Vai ficar tudo bem... Vai ficar tudo bem...

O rapaz louro engoliu em seco, entorpecido pela dor. Seus olhos se encontraram com os de Patrick, e se encararam. Queria dizer alguma coisa, mas sua voz não saía. Havia um gosto forte de sangue em sua boca... Estava com medo de morrer.

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— Tyler? – Phil chamava, pela terceira vez. E tudo o que conseguia ouvir era o som de várias vozes falando ao mesmo tempo, após um baque seco. Olhou para Jessica, que o fitava de olhos arregalados. – Acho que aconteceu alguma coisa...

- Ah, merda... – xingou Liu, agitando-se de frustração.

Estavam dentro do carro de Phil mais uma vez. Depois das sombrias revelações dadas por William Bludworth, o homem disse que não havia mais nada que pudesse dizer. Jessica ficou furiosa e tiveram de sair de lá antes que a garota voasse no pescoço do agente funerário. Foi aí que ligaram para Tyler, para contar o que descobriram.

- Tenta falar com o Patrick – pediu Jessica, trêmula.

- Estou tentando – Phil tinha o celular na orelha, enquanto dirigia pelas ruas de McKinley. – Ele não atende...

- Droga, droga, droga – murmurava Liu, no banco de trás. – Eu preciso saber, Jess. Eu sou o próximo?

- Eu não sei – respondeu Jessica, com pesar. – Eu não consigo me lembrar agora... Eu lembrei de Tyler, porque ele foi coroado o rei, com Claire, e...

- Ele foi o rei? – interrompeu-a Liu.

Jessica assentiu, sem se importar com a expressão desconcertada do rapaz. Estavam passando pelo centro da cidade, e havia uma grande aglomeração diante de um dos prédios, onde uma ambulância acabava de estacionar.

- Ali, Phil – disse ela, o coração começando a bater mais rápido.

Phil contornou a praça e parou o carro no estacionamento que ficava ao lado do prédio. Apressadamente, os três avançaram pela calçada, enfiando-se em meio à aglomeração de pessoas, e chegaram a tempo de ver a equipe de paramédicos removerem o corpo ensanguentado de uma garota de cima de Tyler Cassey. Havia muito sangue no chão, e Jessica não conseguiu distinguir de quem era e o que havia acontecido. Mas, ao que parecia, Tyler estava vivo, porque Patrick Jackson estava ajoelhado ao seu lado, conversando com ele em voz baixa.

- O que houve aqui? – perguntou uma estranha, recém-chegada.

- Parece que a garota saltou do prédio, e caiu em cima desse rapaz...

- Aquela não é Carolyne Pride? Ela mora no décimo terceiro andar, com os tios... Alguém já avisou a eles?

Jessica desviou os olhos da poça de sangue, escondendo o rosto no peito do namorado. Só queria que aquilo parasse... As sensações, as mortes, tudo. De repente, queria que não tivesse acreditado na visão que teve do deslizamento. Se ela tivesse ficado no salão, pouparia todo aquele sofrimento, já que, segundo Bludworth, não havia mais nada que pudesse fazer, além de adiar a morte... E isso significava travar uma corrida frenética contra ela. Uma corrida que Jessica tinha certeza de que uma hora se cansaria e perderia...

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Jamie Shawn ouviu um barulho longínquo, que, apesar de não ser tão alto, perturbou seu sono. Lentamente abriu os olhos, resmungando contra a claridade que os cegava. Não sabia que horas eram, mas o sol entrava pelas janelas de sua casa como se fosse um enorme holofote dourado e ofuscante.

- Ai, meu Deus – balbuciou ele, tentando levantar-se.

Percebeu que estava sem camisa e que havia vomitado, durante o sono, ensopando o peito e as calças com tudo que bebera nas últimas horas. Podia sentir o cheiro forte de uísque impregnado em sua pele. Ao seu redor, algumas garrafas vazias no chão, na mesinha ao lado do sofá, onde o telefone jazia fora do gancho, e uma bem ao seu lado. Levou-a até a boca, mas estava vazia.

- Maldita – resmungou, apoiando-se nos braços para se levantar. Ao fazê-lo, sua cabeça ficou surpreendentemente mais pesada, como se estivesse cheia de chumbo. Shawn cambaleou algumas vezes, esbarrando na estante com a televisão, que balançou perigosamente. Ficou parado, esperando que ela caísse, mas isso não aconteceu. Então, arrastando os pés, caminhou até a cozinha, em busca de mais bebidas.

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Patrick Jackson estava dentro da ambulância que levava Tyler Cassey para o hospital. Uma enfermeira e dois paramédicos conectavam o rapaz a alguns tubos, de maneira técnica e habilidosa. Tyler permanecia consciente, imobilizado pelo colar cervical. Havia sangue em seu rosto, e seu braço direito quebrara, com um ferimento exposto horrível. Mesmo assim, o que mais preocupava Patrick foi o que ao amigo dissera num fio de voz: Eu não consigo mexer minhas pernas, Patrick... Eu não estou sentindo elas.

Só esperava que aquilo não fosse permanente. Talvez fosse apenas um efeito do choque, ou da pancada... Talvez a coluna dele estivesse bem. Não conseguia imaginá-lo numa cadeira de rodas. Não Tyler Cassey.

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O uísque caía no fundo do copo de vidro com um gorgolejar hipnotizante. Depois de encher o copo, Shawn caminhou pesadamente até o armário trabalhado em vidro e madeiro, onde ficavam suas bebidas e sua coleção de facas, e guardou a garrafa já aberta lá dentro, sem se importar em fechar a portinhola. Virou-se, e deu alguns goles na bebida forte, que parecia ser, ao mesmo tempo, remédio e veneno para sua ressaca.

Jamie Shawn vivia sozinho há anos. Já fora casado uma vez, com uma megera loura chamada Charllotte Linton. A maldita sanguessuga. A causa de seu alcoolismo. A traidora... Agora ela vivia com um homem rico, em Los Angeles, enquanto ele pelejava para retomar a vida e superar o vício.

No último ano, Maggie Lars foi uma pessoa extraordinária, ajudando-o a resistir às bebidas e deixando seus dias mais felizes. Ela também era uma mulher divorciada, mas, ao contrário de Shawn, não queria casar-se de novo. Sim, Shawn já tentara fazer as coisas entre eles darem certo, mas tudo se limitou a uma grande amizade. E, agora, ela estava morta, e ele voltara a beber como antes...

Tomando mais uns goles de uísque, o professor caminhou até a sala, e viu que haviam deixado as correspondências no tapete. Esforçando-se ao máximo para se abaixar sem cair, Shawn pegou os pacotes de papel, e ficou enfurecido. Várias cartões de condolências, cartas da escola e um jornal falando sobre a homenagem às vítimas do desastre em O’Reoy que aconteceu no ginásio do Colégio McKinley. Coisas que ele queria muito esquecer... Será que ele teria de ir embora, para voltar a ter paz?

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— Será que Tyler vai morrer? – perguntou Liu, apreensivo.

- Ele não parece muito ferido.

- Mas, se Bludworth estiver certo, ele morre depois da Claire – retorquiu Jessica. – E se acontecer alguma coisa no hospital, e ele morrer? A gente tinha que ir pra lá, e ficar de olho. Não podemos ficar aqui esperando que as coisas deem errado mais uma vez...

- Ei, ei – interrompeu-a Phil. – Jess, fica calma. Você não pode tentar salvar todo mundo... Não pode ficar correndo de um lado para outro, tentando evitar que as pessoas morram. Lembra-se do que o agente funerário disse? Não há saída. E a Morte vai ficar apenas mais furiosa... Talvez devêssemos deixar as coisas acontecerem naturalmente.

Jessica, àquela altura, estava chorando de frustração.

- Eu não consigo fazer isso, Phil. Eu não posso simplesmente ficar assistindo as pessoas morrerem ao meu redor... Eu não sou esse tipo de pessoa. Você me conhece.

Phil desviou os olhos, parecendo desarmado.

- Tudo bem, eu vou até o hospital, ver como o Tyler está – disse ele, pegando as chaves do carro. – Mas, vou deixar vocês na casa do Liu, primeiro. Liga pra sua mãe... Ela já deve estar arrancando os cabelos de preocupação.

Jessica assentiu, enquanto Phil beijava sua testa carinhosamente.

- Obrigada.

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Jamie Shawn voltou à cozinha, decidido a queimar aquelas malditas correspondências na lata de lixo. Deixou o copo pela metade sobre a pia, e começou a procurar pelo isqueiro. Sua cabeça latejava dolorosamente ao mero esforço de tentar se lembrar de onde o colocara. Procurou nas gavetas do balcão, e nada. Deu uma olhada ao seu redor. Nada também. Então, lembrou-se da caixa de fósforos que guardava no armário acima da pia. Esforçando-se para ficar na ponta dos pés, o homem abriu as portas do armário, e a visualizou, perto de um aparelho de jantar que nunca mais usara, desde que foi abandonado por Charllotte. Empertigou ainda mais o corpo, apoiando uma das mãos na pia, e conseguiu alcançar a caixa de fósforos. Uma estranha corrente de ar perpassou por suas costas nuas, eriçando os pelos de sua nuca.

Intrigado, Shawn virou-se, estremecendo, e sua mão esbarrou no copo com uísque sobre a pia. O homem ainda tentou impedir que ele caísse, mas não obteve sucesso. O copo de vidro estilhaçou-se no chão, o uísque respingando para todos os lados.

- Droga – reclamou Shawn, passando por sobre o copo estilhaçado em meio à poça da bebida cor de âmbar. Depois limparia aquilo. Pegou as correspondências e, com a caixa de fósforos em mãos, caminhou até a lata de lixo, que ficava próxima ao seu armário de garrafas e facas.

- Vão todos se ferrar... – jogou o primeiro punhado de cartões na lata de lixo, que tinha a altura de seu joelho, e riscou um fósforo. O fogo tremeluziu azul, e depois, foi ficando alaranjado. Tão bonito. Jogou-o sobre os cartões, que começaram a queimar. – Palavras... bonitas... e falsas... não vão trazê-los de volta – dizia ele, jogando mais alguns cartões e as duas cartas da escola na lata de lixo. Riscou mais fósforos e foi jogando lá dentro também. Faltava apenas o jornal... Shawn leu a manchete mais uma vez, sobre a homenagem no ginásio. Correu os olhos sobre as outras páginas e algo lhe chamou atenção. Era a última reportagem, espremida em um canto: Filha de importante empresário é encontrada morta em casa. Havia uma foto em preto e branco de Claire Temple.

- O quê?— enquanto o fogo crepitava na lixeira, o homem estreitou os olhos para a reportagem e virou-se, lendo com atenção o que dizia o texto.

Claire Temple, 17 anos, foi encontrada morta por bombeiros, na noite passada, depois de terem receb...— com um grito de dor, Shawn interrompeu a leitura, jogando o jornal pelos ares. Encolheu a perna instintivamente, e começou a saltar para trás de um pé só, enquanto sangue pingava do outro. Havia pisado nos cacos do copo de vidro!

Como estava bêbado, o homem desequilibrou-se, sobre um único pé, e caiu sobre a lixeira em chamas, derrubando-a no chão. O alastramento do fogo foi imediato. Havia bebida alcóolica vomitada em suas calças e em seu peito, fazendo com que as chamas se espalhassem sobre o seu corpo numa rapidez assustadora. Desesperado, Shawn começou a gritar e se debater, agonizando com a dor do fogo consumindo sua pele. As chamas avançaram para seu cabelo, o calor obrigando-o a fechar os olhos. A dor era indescritível. Sua pele enrugava, e enegrecia. Cambaleando e se debatendo, sem ver para onde ia, Shawn chocou-se contra o armário de bebidas, estilhaçando a porta de vidro aberta, e fazendo com que algumas garrafas caíssem e se quebrassem.

Mais cacos perfuraram sua pele, e o conteúdo das garrafas quebradas apenas alimentaram as chamas que lambiam seu corpo. Mas Jamie Shawn já não existia mais. Havia apenas um ser inteiramente feito de dor e fogo, agonizando no chão, gritando inconscientemente enquanto sua vida era consumida de forma voraz pelas chamas impiedosas...