O salão estava intacto. Todas as pessoas estavam vivas e bem, sentadas às suas mesas como se nada tivesse acontecido. A chuva ainda ricocheteava as paredes de vidro e o vento forte fazia as árvores balançarem.

A professora Lars entregava o envelope com os nomes de Claire e Tyler ao professor Shawn. Como antes, os alunos assoviaram. Um trovão ribombou, estremecendo as paredes. Estava se repetindo. Com um aperto angustiante no peito, Jessica percebeu que, de alguma forma, voltou ao passado, ou... tivera uma visão do futuro, e...

Precisavam sair todos dali imediatamente!

De súbito, levantou-se, agarrando a mão do namorado. Phil olhou-a franzindo o cenho de preocupação.

- Ei – disse ele. – o que foi?

- Precisamos sair daqui - respondeu ela, a voz falhando um pouco. Não havia percebido, mas estava chorando. – Precisamos sair daqui agora! – disse com mais firmeza.

- Calma – Phil levantou-se.

Claire, Liu e Patrick desviaram os olhos para ela, confusos.

-... e a rainha é – dizia o professor Shawn, exatamente como Jessica sabia que diria. – Claire Temple!

Os aplausos e assovios encheram todo o salão. Claire virou-se ao ouvir seu nome, e parecendo espantada, fez menção de se levantar.

- Não vá, Claire! – a voz chorosa de Jessica se sobrepôs ao som dos aplausos. – Precisamos sair daqui! Vai acontecer um deslizamento, e todos nós vamos morrer, se não sairmos daqui agora!

Claire olhou-a atônita, enquanto todo o salão ficava estranhamente silencioso. Ao que parecia, sua voz conseguiu ser ouvida pela maioria dos alunos. Então, lentamente, começaram as vaias e as exclamações do tipo “Ih, ela ficou com inveja!”; ou “O que deu nessa garota?!” Jessica, no entanto, não esperou para ver o que aconteceria em seguida. Virou-se e começou a sair às pressas do salão, ciente de que Phil a seguiria. Só esperava que seus amigos também.

- Jessica! – chamou-a Phil, às suas costas, seguindo-a.

Claire engoliu em seco, os olhos indo de Shawn a Phil, que desaparecia pela porta do salão.

- Eu vou ver se ela tá bem – disse, depois de uma breve hesitação.

- Mas você é a rainha do baile – retrucou Liu. – Pode deixar que eu vou...

- Foda-se – ignorando as exclamações e a perplexidade dos alunos, Claire saiu do salão, sendo acompanhada de perto por Liu, que ainda reclamava. Patrick continuou sentado à mesa, de cenho franzido, sem entender nada do que estava acontecendo.

O professor Shawn pigarreou, no microfone, e fez um sinal para que o DJ voltasse a tocar alguma música. E foi o que ele fez. Mesmo assim, os alunos ainda pareciam agitados com o surto inesperado de Jessica Holden.

- O que foi aquilo? – sussurrou Maggie Lars, aproximando-se dele.

- Não sei – respondeu. – Fique aqui, que eu vou ver...

Enquanto o professor descia do púlpito, Tyler Cassey levantou-se de sua mesa, sem ouvir a pergunta de Britany Gilbert – Onde é que você vai, querido?—, e encaminhou-se para a saída do salão. Pelo que entendera, estava acontecendo mais uma vez. Não sabia como Jessica fazia aquilo, mas ela dissera que o avião 909 da New Flying iria cair, e ele realmente caiu. Não acreditava muito nessas coisas, mas decidiu que era melhor prevenir e dar o fora, antes que sua predição se mostrasse verdadeira.

Brenda Grigori, de sua mesa, observava Tyler com um olhar ambicioso. O rapaz deixou a vadia da Britany falando sozinha, e saía do salão, sendo seguido pelo seu amiguinho CDF, ao passar por sua mesa. Estava chovendo muito lá fora, mas, o que não faria para tê-lo de volta? Era a primeira vez naquela noite que ele estaria longe de Britany Gilbert. Era a sua chance de tentar fazer as pazes...

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Lá fora, Jessica corria aos prantos, encharcada pela água da chuva. Não parou para olhar para trás. Apenas ficou aliviada ao ouvir que – além de Phil – Claire e Liu também estavam em seu encalço. Sabia que aquele era o único modo de levá-los para um lugar seguro.

- Jessica! – Phil agarrou-lhe o braço, forçando-a a se virar. Estavam de frente ao bar vazio da praça principal. Onde, na visão, ambos morreriam.

— O que foi que aconteceu?

Claire e Liu vinham correndo, igualmente ensopados. Claire carregava os sapatos de salto em uma das mãos, e o cabelo louro escorria nas laterais do rosto borrado de maquiagem.

- Eu vi – balbuciou Jessica. – Eu vi, Phil! Vai acontecer um... – de repente, o som grave ecoou pela ilha, mais baixo e constante que um trovão. Toda a montanha foi brevemente iluminada por um relâmpago, e Jessica pôde ver. Já havia começado. A furiosa onda de barro, rochas e árvores descia a montanha, engolindo os chalés mais altos e destruindo tudo o que estivesse em seu caminho. Estava indo diretamente para o salão de festas.

- Ai meu Deus! – exclamou Phil, boquiaberto.

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— O que está acontecendo? – perguntou Katherine, que estava à porta do salão quando aquele grupo de alunos saíra correndo pela chuva como se fugissem da morte.

- É o que eu vou descobrir – falou Jamie Shawn, estreitando os olhos. – Por onde eles foram?

- Em direção à praça principal – contou Katherine, distraidamente.

Tyler e Patrick passaram depressa pelos dois, usando o blazer para se protegerem da chuva. Patrick não estava entendendo porque tinha de fazer aquilo, mas Tyler insistiu que ele o acompanhasse.

- Ei, voltem pra dentro já! – exclamou o professor, começando a descer a escadaria, ficando inteiramente encharcado no primeiro minuto. Então, Brenda Grigori passou correndo por ele também, chamando por Tyler - o que o deixou ainda mais irritado. Esses alunos! Estava prestes a repreendê-la, quando ouviu o som estrondoso vindo de dentro do salão, sucedido por gritos horrorizados. As árvores que ladeavam o gracioso monumento começaram a tombar ruidosamente, e então ele deu-se conta: um deslizamento de terra. Foi o que Jessica Holden dissera que aconteceria...

Engolindo alguns palavrões, o professor começou a correr.

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Brenda Grigori ainda gritava por Tyler, quando o salão de festas do Hotel O’Reoy começou a desabar. Sobressaltada, a moça olhou por sobre o ombro ao mesmo tempo em que vários alunos saíam gritando pela porta principal. Não entendeu o que estava acontecendo, e não esperou por isso para ficar apavorada. Simplesmente começou a gritar e correr o mais rápido que conseguia em cima daqueles saltos.

— Eu sabia, droga! – exclamou Tyler, percebendo que sua linha de raciocínio estava certa. Não precisou voltar e verificar. Estavam longe, mas podia ouvir a gritaria e o som de tudo desabando, mesmo que abafado pela chuva. – Corre, Patrick! Vamos!

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Chegando ao cais, Jessica sentia uma mistura de alívio, pavor e culpa. Phil, Claire e Liu estavam a salvo. Sabia disso, porque na visão, antes do telhado ceder e a onda soterrá-la, vira que algumas pessoas se salvaram entrando nas embarcações que ficavam no cais. No entanto, não conseguira salvar todos. E não se esforçou o bastante para fazê-lo. Simplesmente fugiu do salão, esperando que as pessoas que mais amava a seguissem... Isso parecia tão egoísta.

- Jessica, olha pra mim – dizia Phil. – Olha pra mim, meu amor.

A moça desviou os olhos úmidos para ele, enquanto o mundo parecia desmoronar na ilha. As pessoas estavam começando a aparecer, ao longe, sempre que algum relâmpago clareava a paisagem desoladora.

- Vamos ficar bem, ok? – ele disse. – Você nos salvou. Você disse a todos o que ia acontecer...

- ... merda, merda, merda – resmungava Liu, caminhando de um lado para outro, os olhos fixos na passarela de madeira em que as pessoas apareciam, correndo. – Aparece, Brenda... por favor...

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Paul saiu de cima de Page, depois da explosão de prazer, e deitou-se ao seu lado, ofegante. Que garota fantástica, pensou. A cada dia ela se superava naquele quesito.

- O que foi isso? – perguntou Page, de repente.

- O quê?

- Escuta – ela levou o dedo aos lábios, estreitando os olhos em concentração.

A princípio, tudo o que Paul ouviu foi o silvar da chuva e o assovio do vento nas fretas do chalé. Mas, depois de alguns segundos, percebeu. Gritos. E um outro som mais grave, semelhante ao trovão, só que longínquo e mesclado por outros estalos. Talvez fossem fogos. Talvez as coisas no baile não estivessem mais tão chatas.

- Parecem estar se divertindo – disse ele, desviando os olhos para Page com um sorriso sarcástico.

- Shh – sibilou a moça.

Ao que parecia, pessoas estavam correndo do lado de fora, seus passos soando abafados pelo ruído insistente da tempestade. Logo, vieram as vozes:

-... está tudo desmoronando! Protejam-se!

- ... é o fim do mundo! Meu Deus...!

Paul e Page se entreolharam, de testa franzida. Então, o rapaz vestiu a cueca, que estava jogada no chão, e caminhou até a janela mais próxima. Estava tudo muito escuro, e a chuva forte dificultava sua visão.

- O que é? – quis saber Page, alarmada, vestindo a camisa social que ele usara no baile.

- Não sei.

Page levantou-se da cama, e estava prestes a fazer mais uma pergunta, quando Paul se virou, lívido. Page se assustou com sua expressão, mas não teve tempo de perguntar, porque o rapaz agarrou seu braço com força, e começou a arrastá-la em direção a porta.

- Vamos sair daqui! – gritou ele.

- Mas que porra...?! – a menina não estava entendendo nada. Ouviu um som alto e estrondoso que parecia se aproximar rapidamente, e foi levada pelo namorado para o lado de fora do chalé. A chuva soprada pelo vento recebeu-os com gotas dolorosas e geladas. Mas não puderam senti-la por muito tempo. A enorme onda de detritos, lama e água da chuva ergueu-se sobre eles, antes que pudessem correr. Page gritou, encolhendo-se. Os braços de Paul se fecharam ao seu redor, de forma protetora. E então, a onda se chocou contra eles, lançando-os no chão com uma força poderosa. Vários nacos de árvores e pedaços cortantes de destroços penetraram em seus corpos, atravessando suas carnes, de modo que ficassem presos um no outro, enquanto a água lamacenta e furiosa os arrastava morro abaixo.

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Do cais, Jessica podia ouvir a gritaria e o som da destruição. No entanto, ficava cada vez mais aliviada à medida que algum conhecido conseguia chegar bem até lá. Primeiro, viu Tyler Cassey e Patrick Jackson, em meio a um bando de hóspedes apavorados. Logo atrás, vinha Brenda Grigori, carregada por um homem desconhecido – ela parecia bem, mas estava histérica. Liu quase suspirou de alívio.

Tyler e Patrick se aproximaram em silêncio com as expressões estupefatas, arfando sonoramente. Seus olhos permaneceram em Jessica por um bom tempo, antes de se virarem para a ilha mais uma vez. O homem desconhecido deixou Brenda deitada no chão do cais, como se ela estivesse ferida. E, na verdade, até estava. Torcera o pé, enquanto corria com os sapatos de salto, e gritou por socorro até aquele homem aparecer e carregá-la. E ela nem agradeceu.

Phil tentava falar com o serviço de emergência, mas não conseguia, por causa da chuva e do péssimo sinal. Jessica, por sua vez, permaneceu encolhida, longe da água agitada do mar, os olhos marejados fixos nos sobreviventes que apareciam na praia. Claire mantinha um dos braços em volta de seus ombros, como se quisesse transmitir alguma tranquilidade. Mas a garota parecia tão apavorada quanto qualquer um.

Então, a o fenômeno finalmente tornou-se visível. Jessica sentiu o peito acelerar ainda mais, e a boca secar. Dali pôde ver a onda arrasadora engolindo postes de luz e algumas árvores esguias. Várias pessoas que estavam no cais começaram a entrar em desespero. Até a própria Jessica ficou tensa, diante daquela visão.

Ao longe, um par de faróis dourados apareceu. A imagem do jipe da polícia quase atropelando ela e Phil lampejou diante dos seus olhos. Jessica buscou o namorado com o olhar. Ele estava ali perto, ainda tentando usar o serviço de emergência. Estava bem.

Quando voltou os olhos para a ilha mais uma vez, os faróis do carro iluminavam um último grupo de pessoas que corriam para a praia. Entre elas, Jessica identificou seu professor de álgebra e a guia turística, Katherine Russel. Esta última, ao ver o jipe, começou a acenar loucamente para que ele parasse, como na visão. O carro iria atropelá-la. Jessica sabia. E àquela distância, não podia fazer nada para impedir.

Várias pessoas ao seu redor soltaram exclamações, e prenderam o fôlego, quando o jipe avançou impiedosamente contra a mulher. No entanto, no último segundo, algo inesperado aconteceu: Jamie Shawn tirou-a da rota do carro antes que ele a atropelasse, e ambos caíram rolando no chão.

- Deus! – exclamou a menina, sentindo-se um tanto mais aliviada.

Rapidamente, Shawn e Katherine se levantaram, e recomeçaram a correr. Às suas costas, a avalanche de terra úmida e destroços estava prestes a se chocar contra o bar da praça principal. Algumas pessoas que se refugiavam no cais gritavam incentivos. Eles pareciam ser os últimos sobreviventes.

O jipe preto da polícia derrapou na areia da praia, e quatro pessoas desceram correndo dele, indo diretamente para um dos barcos maiores de pesca. Pareciam nativos, e empurravam qualquer um que tentasse embarcar com eles. Houve uma breve discussão, em que alguém socou outra pessoa. Mas Jessica não prestava atenção. Seus olhos estavam fixos no bar, que, no momento, estava sendo destruído pela força da natureza. Ainda podia sentir as vigas se partindo, sob ela. Podia sentir o gosto do barro e a dor aguda nos pulmões. Mesmo que fossem apenas lembranças de um futuro que não aconteceu...

Jamie Shawn e Katherine Russel finalmente alcançaram o cais, cobertos por lama. Não havia mais ninguém depois deles. Apenas a grande massa escura que diminuía de velocidade à medida que se aproximava da praia. Atrás dela, um imenso rastro de destruição. A pequena ilha paradisíaca O’Reoy agora não passava de um imenso bolo de lama, sem forma e sem vida.

Silhuetas de troncos e galhos de árvores despontavam em meio ao caos, junto com alguns pedaços de concreto, telhas, e mármore. Um cenário horrível de destruição pela fúria da natureza. Enquanto a onda se aproximava, perdendo a força e a dimensão, as pessoas ficaram mudas, observando-a tomar toda a praia e juntar-se ao mar agitado. Ainda assim, Jessica podia ouvi-los chorar. Lamentos baixos e angustiantes, abafados pelo silvar da tempestade e do mover das águas.

Um relâmpago iluminou os céus e clareou os poucos sobreviventes do desastre reunidos no cais. Talvez fossem uns trinta, ou quarenta... A maioria, Jessica não conhecia. Mas lá estavam Liu Wong, Brenda Grigori, Patrick Jackson, Tyler Cassey, Claire Temple, Jamie Shawn, Katherine Russel, e seu namorado, Phil King. Todos os outros não passavam de rostos desconhecidos.

- Alguém viu o Paul? – perguntou uma voz, sobrepondo-se ao choro lamuriante das outras pessoas. – Alguém viu meu irmão? Ou a Page, ela deve saber... Paul?! Page?

- Patrick, calma – dizia a voz de Tyler.

Jessica virou-se e entreviu Patrick, na penumbra da tempestade, desvencilhando-se das mãos do melhor amigo.

- Paul?! – gritou ele. – Não... não pode ser... Paul! – ele começara a chorar alto. Um choro tão sofrido que fez a boca de Jessica secar, e as lágrimas voltarem a disputar o seu rosto com as gotas de chuva. – Não, não...

Tyler aproximou-se do rapaz mais uma vez e abraçou-o com força, engolindo em seco. Não disse nada. Apenas deixou que Patrick enterrasse a cabeça em seu ombro e chorasse como a maioria daquelas pessoas estava fazendo. Seus olhos úmidos se encontraram com os de Jessica. Encararam-se pelo que pareceu ser vários segundos. Havia alguma coisa no olhar de Tyler que fez Jessica sentir ainda mais medo. Talvez fosse só efeito da chuva, misturada à escuridão da noite... Não sabia o que era.

Então, Phil se aproximou, parecendo extremamente pálido, e a moça desviou os olhos para ele. O rapaz abraçou-a como se fosse a última vez que a veria, seus corpos gelados e úmidos estremecendo àquele toque.

- Vamos ficar bem – sussurrou ele, em seu ouvido. – Consegui pedir socorro... A guarda costeira vai vir nos buscar. Estamos a salvo.

Ao ouvir aquelas palavras, Jessica não conseguiu conter o choro alto que vinha lhe sufocando. A exemplo de Patrick, deixou que toda aquela angústia se esvaísse de si. Não importava se os outros a estavam ouvindo chorar daquele jeito... Todos ali perderam coisas, amigos, parentes... Podiam entender a sua dor.

No entanto, havia algo mais pelo qual Jessica chorava. Era aquela mesma sensação que vinha lhe acompanhando nos últimos dias. Apesar de Phil ter dito que ficariam bem, que a guarda costeira vinha buscá-los, a moça não se convenceu de que estavam a salvo. Não disse isso em voz alta, mas sentia que não... Aquilo ainda não havia terminado.