Jessica levantou-se abruptamente, sob os olhares de Claire e Phil, e caminhou com passos trêmulos até um lugar em que ficasse sozinha. Teve de engolir em seco, antes de continuar a conversar com a mãe, que estava histérica no telefone.

- Mãe... Mãe, não se preocupe, está bem? Já estamos em Tunner Beach, e está tudo bem... – não, não estava. Ela sabia que não estava. Havia alguma coisa muito errada naquela história.

- Mas... Jessica, e o avião...?

- Mãe, escuta... – a moça desviou os olhos para a TV, onde mostrava um vídeo gravado por um celular no momento em que um raio atingiu o avião. Ela arrepiou-se inteira. – Houve um pequeno imprevisto, e nos atrasamos... A turma inteira pegou o voo das sete... Está todo mundo bem!

A mulher continuou a balbuciar palavras incompreensíveis no telefone. Jessica não estava prestando atenção. Viu quando Phil olhou para ela de um modo solidário, enquanto Claire lançou-lhe um olhar estranho, como se estivesse com medo. Jessica desligou o telefone e foi até os outros, sentando-se em seu lugar.

Nem Phil, nem Claire se atreveram a dizer nada.

Alguns alunos já estavam se afastando do grupo, para ligarem para seus familiares, dizer que estavam bem, e explicar aquele mal-entendido. Todos pareciam chocados com a notícia.

- Ah, meu Deus – dizia Brenda, pálida. – Era para estarmos lá! Era para estarmos todos mortos agora...

Os alunos se entreolharam de um modo nefasto, como se todos ali já estivessem mortos e não soubessem. O professor Shawn sacudiu a cabeça, discordando. Embora estivesse tão perplexo quanto os alunos, ele parecia tentar passar-lhes conforto e segurança.

- Não, não era para estarmos lá – disse ele, com autoridade. – O destino impediu que isso acontecesse, e é assim que deve ser.

Tyler riu, sem se preocupar em esconder seu sarcasmo. Ele estava sentado em um dos bancos sozinho, já que Patrick Jackson conversava com a mãe no telefone, longe dali. O professor olhou-o com paciência.

- Acredita mesmo nisso? – perguntou Tyler, erguendo uma sobrancelha. – Em destino? Que o que acabou de acontecer foi algo predestinado? Que estamos aqui porque é o certo?

Shawn deu de ombros, assentindo. Cruzou os braços sobre o peito e disse, com um ar sábio:

- Acredito. Nada acontece por acaso.

- Errado – interveio Tyler. – Tudo acontece por causa das nossas ações, nossas atitudes... Deixa-me dar um exemplo: se aquela empresa idiota tivesse tomado a atitude de verificar o andaime que causou o acidente, não teríamos nos atrasado. Estaríamos no avião que caiu. E estaríamos mortos. Logo, não existe destino – ele sorriu. – Mesmo que seja revelado a alguém antecipadamente – ele revirou os olhos para Jessica. –, o futuro pode mudar, não é mesmo, Jessica?

Jessica franziu o cenho e desviou os olhos. Sabia que ele ia fazer alguma coisa assim. Era apenas Tyler Cassey sendo o babaca de sempre. De qualquer modo, agora todos olhavam para ela esperando por uma resposta, curiosos, mesmo sem entender nada. Phil abraçou-a, de modo protetor.

- Deixe-a em paz, Tyler – sibilou ele.

Tyler fez uma careta, erguendo as mãos como se estivesse se rendendo. Patrick, que já havia desligado o telefone, lançou um olhar repreensivo ao amigo.

- Tudo bem, tudo bem... Sem estresse, ok?

O professor Shawn, que observava a cena com seus olhos atentos, suspirou, pondo as mãos nos quadris. Graças a Deus, nenhuma briga.

- Okay, fiquem todos juntos, e não briguem, por favor– disse ele. – Eu vou fazer uma ligação, enquanto Maggie arruma alguma coisa para nos levar até o porto. Avisem seus pais e responsáveis que estão bem, por favor. Devem estar apavorados agora... Com licença.

Enquanto ele se afastava, Phil abraçou Jessica com ainda mais força. Ela olhou-o com os olhos úmidos. Não sabia até quando iria segurar o choro. Aquela sensação horrível que vinha sentindo desde o pesadelo no avião agora estava mais forte que nunca. Havia acontecido, afinal... a maldição se cumprira.

Alguns alunos ainda olhavam para ela, como se quisessem descobrir o motivo da breve discussão entre Phil e Tyler. Brenda Grigori, inclusive, cochichava com uma de suas amigas descaradamente, sem tirar os olhos dela.

- Jessica – começou Phil, dando-lhe um beijo rápido. – Você tá bem?

Jessica fungou, assentindo. Então, Phil puxou-a para um abraço caloroso, enterrando o rosto da menina em seu peito, enquanto acariciava seus cabelos.

- Não se preocupe, Jess... Foi apenas coincidência...

Jessica afastou-se de repente ao ouvir aquelas palavras. Fitou o namorado com censura, sentindo um pouquinho de raiva arder bem em seu âmago.

- Até quando você vai achar que tudo o que está acontecendo é coincidência? Quando morrermos no vôo de volta à McKinley? Phil, por favor... Eu sei que há alguma coisa muito errada acontecendo!

Phil preferiu permanecer em silêncio, os olhos fixos no chão limpo à sua frente. Sabia que não conseguiria convencê-la.

Claire, por outro lado, suspirou pesadamente, segurando as mãos da amiga.

- Coisas estranhas acontecem sempre! – de alguma forma, Claire achava que aquilo ajudaria. – Jess, esses sonhos ou visões, que seja, podem visitar qualquer um. E isso não quer dizer que você vá morrer ou que vai acontecer alguma coisa muito ruim em sua vida... Veja bem: você foi alertada sobre o avião. E, quando estava decidida a embarcar nele, aconteceu algo que nos impediu. Isso só pode significar que existe... alguma coisa, ou alguém, tentando te proteger... – ela respirou fundo, parecendo querer tomar coragem. – Seu pai, talvez.

Claire deixou que aquela última frase soasse de modo reflexivo. Não tinha certeza do que dizia, mas estava disposta a dizer qualquer bobagem para minimizar aquele gelo e fazer Jessica se conformar com a ideia de que estavam todos vivos e bem agora, e que não precisava mais ficar tão neurótica. Para sua alegria, Jessica parecia ter acreditado nela.

- Pode ser – disse ela num fio de voz, mas ainda muito assustada. Seus olhos dançaram pela moça, pensativos. – É...

Claire sorriu, e abraçou a moça. Sobre o ombro de Claire, Jessica pôde ver Tyler olhando-a com sarcasmo, e ao mesmo tempo, com um ar acusador.

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Shawn estava do lado de fora do aeroporto, debaixo de uma marquise encurvada de plástico azul. Estava começando a chover, embora o ar estivesse abafado e morno. O tempo era assim em cidades tropicais.

Ele conversava alvoroçado com a direção do Colégio McKinley. Explicava o que havia acontecido e que estava todo mundo bem – além de estarem prestes a zarpar para O’Reoy. Depois de repetir a história várias vezes, ele desligou.

Shawn era um professor de trinta e poucos anos, de cabelos e olhos escuros. Magro, nariz comprido e solteiro – não era por que queria. Todo mundo sabia sobre seu problema com bebidas alcoólicas. Inclusive, ainda naquele ano, alguns alunos queriam que ele fosse expulso da escola por causa disso. Descobriram que o conteúdo de sua garrafa não era chá, como ele dizia. Desde então, ele decidiu se comportar melhor e buscar uma ajuda médica.

Estava bem mais controlado agora. Tinha dias em que recaía e bebia garrafas e mais garrafas de uísque. Ele tinha uma coleção delas, em sua casa, junto com sua coleção numerosa de facas, canivetes e facões. Era sua paixão.

Mas, profissionalmente, Jamie Shawn era bem competente. Ensinava álgebra para três turmas, e obtinha ótimos resultados. Mesmo sendo alcoólatra.

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Os alunos foram de minivans para o porto, onde um gigantesco iate os aguardava. Era tão grande, que Phil não achava que deviam chamar aquilo de iate. Estava mais para um minicruzeiro.

- Quando disseram que havíamos ganhado um fim de semana em O’reoy, não imaginei que isso incluiria tanta mordomia – comentara, enquanto entravam no iate da Linha Browning Ocean. – Valeu a pena ter ganhado aquela gincana.

- Pois é – concordou Paul Jackson, que vinha abraçado à Page, logo atrás. – Não consigo me arrepender de ter sido a mascote da nossa equipe. Não mais...

Phil e Page riram. Mas Jessica estava embaraçada de mais para fazê-lo. Mesmo quando Paul começou a fazer aquela dancinha ridícula que fazia toda vez que ganhavam uma prova da gincana dos veteranos.

Enquanto embarcavam no iate, foram recebidos diplomaticamente por uma mulher bonita, que devia estar na faixa dos quarenta anos. Ela parecia ter elaborado todo um discurso para o momento, mas ninguém parara para ouvi-la. E isso parecia a ter deixado sem graça. Então, tudo o que ela passou a dizer foi: Sejam bem vindos!

O nome dela era Katherine Russell, e era guia turística de O’Reoy. Estava aguardando aqueles estudantes desde as oito horas da noite. E estava enraivecida por eles a terem feito esperar tanto tempo, e nem tenham se dado o trabalho de ouvir seu discurso. Apesar de todos aqueles sorrisos simpáticos, ela xingava-os por dentro. Particularmente Tyler Cassey, que não conseguiu reter um comentário obsceno para com ela.

Quando todos já estavam dentro do iate, acomodados no grande sofá de couro cor de caramelo, em uma das salas de lazer, Katherine decidiu, por fim, terminar seu discurso. Enquanto começava a falar, duas garçonetes a serviço da Linha Browning Ocean serviam bebidas aos alunos e professores.

- Bom, meu nome é Katherine Russell – começou, sorrindo simpaticamente. – E serei a guia turística de vocês, durante a estadia na ilha. Vou levá-los para conhecer os lugares mais bonitos e agradáveis de O’Reoy e...

- Desculpe, mas o que faz em seu horário livre? – interrompeu-a Tyler, que estava segurando uma taça de champanhe com uma das mãos, e a outra coçava deliberadamente a virilha. Alguns alunos riram – Brenda xingou-o alto o suficiente para que ele ouvisse. No entanto, Shawn repreendeu-o.

- O que há de mais nessa pergunta? – defendeu-se Tyler. – É uma pergunta inocente...

- Tyler— disse Shawn, mais uma vez. Voltou-se, então, para Katherine. – Me desculpe... Pode prosseguir, por favor...

Enquanto Katherine voltava a dizer monotonamente seu discurso, Tyler virou mais um pouco de champanhe goela a baixo, e puxou Patrick mais para perto.

- Aposta quanto que ainda vou dormir com ela? – disse baixinho, analisando-a de alto abaixo. Era uma mulher linda, apesar da idade, com um corpo aparentemente em forma, debaixo daquele terninho discreto.

- Essa eu quero ver – bufou Patrick.

- E vai ver – Tyler prometeu, cheio de malícia.

Patrick deu um meio-sorriso, revirando os olhos. Entendeu o que ele queria dizer com aquilo. Como se pudesse frear a perversão de Tyler... Afastou-se, e voltou a prestar atenção no que a mulher dizia.

No final do discurso, Katherine se retirou educadamente, deixando os alunos a sós com os professores. Shawn tomou seu lugar e propôs um brinde:

- Às nossas vidas – disse ele, erguendo sua taça de champanhe. – Que possamos aproveitar ao máximo essa nova chance que o destino nos concedeu!

Os alunos gritaram, de acordo, erguendo suas taças e bradando “Às nossas vidas!”. Enquanto dizia aquilo, Jessica sabia que não que não parecia certo. Não mesmo.

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Katherine Russell caminhava pelo corredor do iate, enquanto discava – um tanto exasperada – o número de seu patrão, dono do Hotel Chalé O’Reoy. Colocou o celular na orelha e desviou os olhos para o mar escuro, através da vidraça transparente.

- Atende... – sussurrou.

Ela aproximou-se da vidraça, tentando enxergar as luzes distantes que indicavam a Ilha O’Reoy. Mas não conseguia visualizar nada além do mar escuro e quase furioso... Podia ver ainda seu próprio reflexo. E, até mesmo nele, sua raiva estava aparente.

- Droga – resmungou ela, quando sua chamada foi enviada para a caixa de mensagem. A mulher podia ouvir os gritos animados dos alunos, na sala onde os deixara, e sua raiva aumentou. Pensou na tortura que seria passar um fim de semana inteiro com aqueles adolescentes selvagens e sem modos. Teve vontade de vomitar.

Olhou para a tela de seu celular, e viu que agora ele estava sem área de cobertura. Era tudo o que ela mais queria. Bufando, Katherine Russel afastou-se com passos rápidos até a cabine de comando do iate, e perguntou ao rapaz da direção quanto tempo demorariam, com aquela chuva. Dez minutos, foi a resposta. E aquilo a deixou um pouquinho mais calma. Esperava que fosse mais.

Com um suspiro pesado, ela virou-se, e foi se ocupar com alguma coisa que a mantivesse afastada dos alunos do Colégio McKinley.

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Na verdade, navegaram por um pouco mais de dez minutos, até desembarcarem na Ilha O’Reoy. O mar estava um tanto furioso, quando se aproximaram da costa da pequena ilha paradisíaca. Mas à medida que se afastavam de Tunner Beach, a chuva ia diminuindo, até tornar-se um chuvisco calmo. No entanto, os céus cobertos por nuvens tempestuosas indicavam o que estaria por vir, além do vento incansável.

Ao desembarcarem do iate, os alunos já estavam eufóricos. Poucos ainda se lembravam da queda do avião em que deveriam ter viajado, ou do acidente com o caminhão que matara três pessoas. Parecia ter acontecido em uma vida distante, já que agora, já estava tudo explicado para os pais. Até Jessica esquecera um pouco, quando se deparou com a beleza daquele lugar.

A ilha parecia uma imensa cordilheira verde e repleta de luzes que emergia do meio do mar. Alguns chalés de madeira ficavam encarapitados nos morros, em meio à flora tropical, suas luzes coloridas deixando tudo com um ar mais vívido. Era possível notar um complexo sistema de escadas que ligavam um chalé ao outro. Era tudo tão simples, e tão maravilhoso.

Assim que desembarcaram no cais, os alunos foram conduzidos por Katherine por uma longa passarela de madeira, que atravessava a praia úmida e levava para o núcleo da ilha, no pé da montanha maior – que, por sinal, era intimidadora. Enquanto caminhavam, a guia turística ia falando sobre os detalhes da ilha. Os lampiões artesanais, que davam luz colorida; as lojas que ficavam perto da praia, todas trabalhadas em madeira; e a enorme praça central, que era circundada por uma piscina estreita e bem iluminada, com água aquecida. Alguns hóspedes, inclusive, já estavam aproveitando dessa mordomia. No centro da praça, havia uma grande tenda circular, de teto de palha. Um bar. Várias pessoas estavam reunidas ali, enquanto uma música ambiente tocava, e os barmen os atendiam cordialmente.

- Olha só, Phil! – exclamou Claire, risonha. – O pessoal daqui também gosta de seu estilo de música. The flood. Cheryl.

Então Jessica deu-se conta de que a música que tocava no bar era a mesma que tocara no carro de Phil, naquela manhã.

You're slippin' through my fingers such

A natural disaster love

Bringing on the flood, the flood

Love me like a flood, a flood.

Estranho. A moça desviou os olhos para o céu ao mesmo tempo em que um trovão estalava e um raio riscava o topo da montanha. As nuvens escuras moviam-se com rapidez sobre a ilha. Jessica engoliu em seco, amedrontada, e continuou seguindo a turma sem deixar transparecer o que sentia.

Depois da praça circular, várias passarelas de pedra assentada se dispersavam pela ilha, levando a pontos diferentes. Katherine dissera que alguns dos chalés em que ficariam hospedados ficavam ali perto, e os outros ficavam no sopé da montanha. Ela apontou o caminho para o salão de jogos de mesa; para a área destinada aos jet-skis, e continuou seguindo a passarela principal, que levava à segunda piscina e ao salão de festas, onde aconteceria o baile de formatura.

À medida que avançavam, os alunos iam ficando mais e mais empolgados. Tudo naquele lugar era maravilhoso. Depois de passarem pela segunda piscina, que mais parecia uma fonte natural de águas, depararam-se com o que parecia ser a fachada de um monumental templo da Grécia antiga, com direito a colunas e escadaria de mármore. Estava fechado, embora grandes holofotes estivessem apontados para ele. Palmeiras esguias e graciosas cercavam todo o monumento, assim como um aquário de águas transparentes, cheios de carpas coloridas.

- Uau – exclamou Liu. – No panfleto ele parecia bem menor!

- Isso é... maravilhoso – boquiabriu-se Page, puxando o celular para tirar algumas fotos. – Maravilhoso!

Katherine Russel, que estava no alto da escadaria, explicava alguma coisa:

-... o salão de festas do Hotel O’Reoy – dizia ela. – Como podem ver, a arquitetura é inspirada nos templos antigos. Apena inspirada. Porque salão é quase todo feito de vidro, de modo que se pode ver toda a beleza natural que o cerca. Não falarei muito a respeito, porque isso fará parte das muitas surpresas de amanhã – ela forçou um sorriso, tentando tornar-se o mais simpática possível. – Vocês não perdem por esperar!

Eram vinte chalés, ao todo. E Jessica ficara com o 18º, com Claire Temple e Page Johnson. Não poderia ter sido melhor. Apesar de Page não fazer parte de seu grupinho de amigos (Claire e Liu), não era uma má pessoa. Na verdade, Jessica a achava bem divertida, quando não estava atracada com Paul pelos corredores da escola.

Quando a chuva resolveu cair mais uma vez, as três garotas já estavam prontas para dormir. Eram quase onze e meia da noite, e um vento inquietante assobiava pelas frestas do chalé, trazendo consigo um friozinho gélido e agourento.

- Só eu que tenho impressão de que a única coisa que vamos aproveitar nessa ilha é o baile de formatura? – começou Page, sentada em sua cama, usando um pijama brega de caveirinhas.

- Vocês ainda não entenderam – retorquiu Claire, que instalava o seu videogame na TV de 29’’ do quarto. – Estamos aqui de graça. Escolheram a pior época do ano, para não aproveitarmos as coisas que só aproveitaríamos se pagássemos uma fortuna, como os riquinhos que se hospedam aqui. O jeito vai ser se contentarem em perder pra mim no Mortal Kombat! – a garota sorriu, correndo os olhos por Jessica e Page. Nenhuma das duas se manifestou, então Claire deu de ombros e virou-se para a TV, impassível – Tudo bem. Hoje não. Vou esperar para dar Fatalities em vocês amanhã, quando estiverem morrendo de tédio por causa dessa chuva!

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A predição de Page Johnson mostrou-se certa. A chuva forte e seu vento gélido castigaram a ilha pelo resto da noite e grande parte do dia seguinte. Não puderam ir para a praia, nem sequer passear de verdade pela ilha. As nuvens escuras e ameaçadoras bloqueavam a luz do sol, fazendo com que a paisagem parecesse cinzenta e sem vida, apesar de toda aquela biodiversidade que os cercava.

Quando a chuva finalmente dera uma trégua, já era quase fim de tarde e a maioria dos alunos se preparava para o sugestivo baile de formatura. Jessica dera graças a Deus por não ter de se molhar quando fosse para o salão de festas. Por mais que não fosse do tipo que ficaria histérica, caso molhasse o cabelo ou a barra do vestido, não estava a fim de passar o baile de formatura de ensino médio como uma ratinha molhada.

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Katherine Russel caminhava pelo salão berrando ordens aos outros empregados do Hotel. Apesar de ser a guia turística, também era a coordenadora de eventos que aconteciam ali, e por isso, dizia o que os outros deviam fazer. Adorava aquilo. Era como se descontasse todo o stress que passava com os turistas naqueles pobres coitados.

Estava usando um vestido azul escuro, básico e elegante, para a ocasião. Não que quisesse se misturar aos alunos na festa. Só não queria parecer uma mera empregada, com seu terninho surrado que vinha usando desde que foi contratada pelos donos do Hotel, enquanto ficava de olho em tudo.

- Srta. Russel – chamou um homem, caminhando até ela com um ar arredio.

- Sim?

- Eu estava ali, do outro lado do salão, colocando as cortinas que a senhorita pediu, e vi que... tem uma rachadura feia na parede de vidro dos fundos.

Katherine ergueu as sobrancelhas, sem estar de fato surpresa.

- Esconde-a – disse, dando de ombros.

- Não acha perigoso? – o homem estreitou os olhos, desconcertado.

- E o que eu poderia fazer? – Katherine deu seu melhor sorriso forçado. – A festa dos formandos vai começar em menos de uma hora, e não podemos simplesmente cancelar tudo por causa de uma suposta rachadura. Esconde-a, de modo que ninguém perceba, e ninguém saberá, até podermos dar um jeito. Ok? – ela virou-se, sem rodeios, e começou a berrar para uma das empregadas que colocavam os jarros de flores na mesa.

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— Com quem mesmo você vai ao baile? – quis saber Tyler, contendo o riso, enquanto abotoava a camisa preta que escolhera para a ocasião.

- Não vou dizer – Patrick estava no banheiro do chalé em que ficaram hospedados, ajeitando a gravata borboleta. Parecia muito aborrecido com as implicâncias do amigo. – Já te falei.

- Você vai ao baile com alguém?

- Me deixa, Tyler...

- Não entendo porque você faz todo esse suspense – continuou o rapaz louro, sentindo-se um retardado por estar usando uma camisa social. Pelo menos não usaria gravata. Nem terno. Apenas um colete cor de chumbo, que ganhara de Brenda, no tempo em que estiveram enrolados. Usaria só para ver a cara dela, no baile, quando o vir.

- Porque eu não quero que ria de mim mais tempo que o necessário.

- Ora, Patrick – Tyler olhou-o por cima do ombro. – Não pode ser tão ruim assim... Escuta, se eu não tivesse chance de transar com a Britany Gilbert e a amiguinha dela ao mesmo tempo essa noite, eu não me importaria de acompanhá-lo ao baile, só pra não te deixar ir sozinho.

Patrick bufou, saindo do banheiro com uma expressão sarcástica. O rapaz usava camisa e terno branco, com detalhes pretos, assim como sua ridícula gravata borboleta.

- Nossa, isso seria realmente melhor do que ir sozinho – resmungou ele. – Uh, olha só, o Patrick virou a mulherzinha do Tyler de vez— continuou, numa vozinha irritante. –Vão ser o rei e a rainha do baile!

Tyler não conseguiu conter o riso. Passou pelo amigo, despenteando-o maldosamente, e foi até o banheiro, escovar os dentes. Enquanto o fazia, ouviu Patrick sair do chalé, sem dizer uma única palavra. E, lá fora, o céu se agitava mais uma vez, formando nuvens grossas e lampejantes, com a chegada do anoitecer.

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— Uau – fez Phil, assim que ela abriu a porta. – Você está incrível.

Jessica sorriu, inclinando-se para beijar o namorado, que continuava mais alto que ela, apesar do salto escandaloso que a menina usava.

- Obrigada. E você está muito elegante...

- Só elegante?

- E charmoso.

Phil pareceu hesitar um pouco, e depois deu de ombros, de um jeito brincalhão.

- Ah, já está bom.

Jessica usava um vestido longo azul-claro, que entrava em perfeita harmonia com seu tom de pele. Seu cabelo escovado e ondulante pendia pelo ombro, louro e brilhante. Estava realmente muito bonita. E feliz. Nem parecia mais aquela menina que surtou com um pesadelo premonitório no dia anterior.

- Liu não veio com você? – perguntou Claire, aparecendo ao lado de Jessica, usando um vestido branco, com decotes nas laterais.

- Não – Phil franziu o queixo. – Estamos em chalés diferentes.

- Hmm – Claire encolheu os ombros, e voltou para dentro, a fim de terminar de se arrumar. Se bem que nem precisava de muita coisa. A genética fora muito generosa com ela.

- Vamos? – convidou Phil, estendendo o braço para a namorada. Jessica enlaçou-o, com um sorriso sonhador, e ambos começaram a descer para o salão de festas.

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Tudo estava perfeito. As luzes, os arranjos, a comida, as bebidas, as músicas... Tudo. O salão de festas do Hotel O’Reoy cintilava como nunca, na encosta da montanha verdejante da ilha. Os quarenta e seis alunos do Colégio McKinley estavam em êxtase, em meio a tanta sofisticação. Tudo o que conseguiam pensar é que, apesar do que passaram, valera a pena. Estavam felizes.

Jessica e Phil estavam sozinhos em uma das mesas, depois de terem dançado e se divertido como não faziam há muito tempo. Na mesma mesa que eles, Paul e Page conversaram por um tempo em voz baixa, antes de sumirem de vista. Nem Jessica ou Phil se importaram com isso.

Liu Wong e Claire Temple estavam no meio da pista de dança, executando passos complexos, que incluíam giros, saltos e deslizes pelo chão, enquanto o DJ tocava uma música animada dos anos 70. Eram o centro das atenções, e conseguiram arrancar vários “Uhuul” dos demais alunos. Então, começou a chover de novo.

Como a maior parte do salão era de vidro transparente, o efeito da água batendo nas paredes, e a imagem das árvores movendo-se de um lado para o outro eram surreais. Os relâmpagos se misturaram com as luzes da pista de dança, e aquilo só pareceu animar ainda mais os estudantes. Phil convidou Jessica para dançar mais uma vez, e ela aceitou.

Patrick Jackson estava sentado sozinho em uma mesa perto do banheiro masculino, bebendo sua terceira taça de coca. Ficara lá durante o tempo todo. Primeiro, com seu par – uma geek que tinha o nome parecido com Hillary, ou qualquer coisa assim. Então, essa garota enturmou-se com um bando de meninas, e o deixou sozinho, após tirarem algumas fotografias.

O rapaz não tirava os olhos de Jessica, incapaz de ficar indiferente diante de sua beleza. Mas isso era tudo o que poda fazer. E não era bom. Só queria que aquela chuva terminasse logo para ele poder voltar para o chalé e tentar ocupar a mente com algum tipo de leitura feita especialmente para isso.

Desviando os olhos de Jessica, Patrick percebeu que Tyler havia voltado, e estava na pista de dança com a garota loira e vulgar chamada Britany Gilbert. Estavam molhados, e dava para perceber que Britany não estava mais usando a calcinha, sob seu vestido prateado. Patrick bufou. Tyler sempre conseguia o que queria com as garotas. E ele ali, sozinho...

- Oi, Patrick – disse alguém, parando de repente diante de seus olhos.

Era Brenda. Infelizmente.

- Ah, oi...

- Essas são as cédulas de votação para o rei e a rainha do baile – começou ela, colocando um papel estreito diante de sua mesa. – Vote com sabedoria, Patrick. Não confunda uma vagaba com uma rainha. – dizendo isso, Brenda jogou os cabelos escuros para trás, e saiu rebolando para a próxima mesa.

- O que quer dizer com isso? – murmurou ele, baixando os olhos para o papel. Pegou o garfo que usara para comer os aperitivos e marcou os nomes, sem pensar duas vezes. Então, suspirou e voltou a admirar Jessica.

Brenda Grigori continuou distribuindo as cédulas para a votação, até mesmo para o pessoal que estava na pista de dança. Fizera questão de desejar boa sorte para Tyler e Britany. Mas o que queria mesmo era estar no lugar daquela maldita piranha loira, e ter os braços de Tyler apertando seu corpo. Como nos velhos tempos...

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Paul abriu a porta do chalé e puxou Page para dentro, às gargalhadas. Ambos estavam ensopados, por causa da chuva forte que caía na ilha. Foram surpreendidos por ela quando escaparam do salão, em busca de mais privacidade.

- Meu Deus, que dilúvio é esse? – brincou Page, limpando o rosto molhado com as próprias mãos.

Paul abraçou-a com força, e sorriu maliciosamente.

- O jeito vai ser tirarmos a roupa molhada, para não pegarmos um resfriado – começou ele, beijando-a com os lábios frios e úmidos. – E depois, aquecer um ao outro com o calor do nosso corpo.

Page afastou o rosto um pouco, fitando-o com um sorriso divertido. Não ligava para que os outros diziam. Que ela era, provavelmente, apenas uma de três mulheres que Paul estava pegando. Que ele era um cafajeste irremediável e que a faria sofrer. Não importava que a vissem como uma garota vulgar, por estar sempre nos braços dele. Só o que importava era aquele sentimento que ela sentia, quando estava em seus braços. Quando o tinha dentro de si mesma. Quando ele a olhava com aquela intensidade. Que o mundo se foda, ela costumava pensar. A vida é curta demais para deixarmos de ser feliz por causa do que os outros pensam ou dizem. Ela só queria aproveitar ao máximo a felicidade que era estar com Paul. Só isso.

- Eu acho – começou ela, descendo as alças de seus vestido preto. – que essa é uma ótima ideia.

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O chalé em que Paul Jackson e Page Johnson estavam, ficava na parte mais baixa da ilha – próximo à praia, e abaixo do salão de festas. A chuva caía com impetuosidade, acompanhada por um vendaval que fazia as árvores se inclinar de uma forma ameaçadora. Folhas de palmeiras se desprendiam, e rodopiavam pelo ar, sendo engolidas pelos flashes dos relâmpagos que lampejavam nos céus escuros. Trovões estrondosos faziam estremecer os chalés, e as paredes de vidro do salão. Alguns hóspedes do Hotel O’Reoy, que estavam conectados à internet, assistiam à notícia de que um tufão tropical estava se formando sobre o litoral de Turner Beach, e que a ilha seria atingida por ele.

As enxurradas que desciam pelas valas construídas ao longo da montanha estavam absurdamente fortes. Lá no pico, onde os ventos eram mais fortes, galhos de árvores e até árvores inteiras estavam se partindo e interferindo no sistema de escoação, fazendo com a água se acumulasse, e deixando o solo, àquela altura muito úmido, saturado de água. Lá embaixo, depois de uma longa e íngreme descida repleta de rochedos e árvores, estava o salão de festas, com a parede dos fundos ligeiramente rachada. Os trovões a faziam estremecer, mas o som alto das músicas impedia que percebessem o que estava acontecendo. O vento continuava varrendo tudo o que encontrasse em seu caminho. E, de volta ao topo da montanha, um ruído ensurdecedor fez-se ouvir. O solo estava úmido demais...

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— Atenção, por favor! – dizia o professor Jamie Shawn, que usava um smoking preto, e parecia um tanto alterado. Os alunos acomodaram-se em suas mesas, trocando comentários sobre coisas triviais. Jessica desviou os olhos para as paredes de vidro, percebendo o quanto a chuva havia piorado. Estremeceu. Estavam agora sentados junto à mesa de Patrick, com Liu e Claire. Jessica ficara comovida ao vê-lo sozinho, enquanto todos se divertiam, e pediu que fossem fazer companhia a ele. Jessica o achava um doce. E, pelo visto, o rapaz ficara imensamente grato por alguém se importar em não deixá-lo sozinho.

- ... está na hora de conhecermos o rei e a rainha do baile! – exclamou o professor de álgebra, parecendo mais empolgado que uma menininha do ensino médio. A professora Lars foi até ele e entregou um envelope. Alguns alunos assobiaram. Um trovão fez tudo estremecer. Jessica olhou para as paredes mais uma vez. Viu alguma coisa que não parecia chuva riscando o ar negro da noite.

- E a rainha é... – ele fez uma pausa, para suspense. – Claire Temple!

Houve uma onda de aplausos a assovios, enquanto Claire se levantava, com uma expressão engraçada de “isso é sério?”. Jessica sorriu, porque sabia que Claire achava aquilo a maior babaquice. E, lá estava ela, caminhando em direção ao pequeno púlpito em que os professores a aguardavam com uma coroa, uma faixa e um buquê de flores.

- O que deu em vocês? – exclamou Claire, risonha, enquanto a coroavam. Ela estava realmente linda. Um título mais que merecido. Houve mais uma onda de aplausos e gritos, misturando-se ao som dos trovões.

Próxima à saída do salão, Katherine tentava falar ao telefone com seu chefe. Ele ligara várias vezes, mas o sinal estava péssimo com toda aquela chuva. Não conseguia entender uma única palavra.

- ... e o rei é – continuava o professor.

- Claro que sou eu – sussurrou Liu, presunçoso. – Todos amaram nossa danç...

- Tyler Cassey!

Liu Wong fez uma careta, exclamando um palavrão. No entanto, todo o resto da turma aplaudiu e vibrou, enquanto o rapaz alto e louro erguia os braços, vitorioso, e caminhava em direção ao púlpito. Liu estava dizendo alguma coisa, mas Jessica não ouvia. Um ruído abafado e constante fez-se ouvir do lado de fora. A menina olhou para as taças na mesa. Estavam vibrando. Ergueu os olhos para o púlpito mais uma vez, a parede de vidro dos fundos revelando que havia alguma coisa errada – e grande – acontecendo do lado de fora.

Agarrou-se à mão de Phil. Ele olhou-a com um sorriso divertido, porque, ao que parecia, Tyler estava fazendo um discurso, e dizia algo engraçado. O professor Shawn havia descido do púlpito, e tirava foto dos recém-coroados mais improváveis daquela turma.

- ... só vivemos isso uma vez na vida, então, muito obr – dizia Tyler, estendendo o cajado de rei.

Jessica não teve muito tempo para perceber. Num instante, sabia que havia algo errado acontecendo, e o ruído abafado ia se intensificando. No outro, uma onda gigantesca de água lamosa, misturada com árvores inteiras e rochedos vinha descendo em direção à parede de vidro dos fundos do salão, como uma avalanche implacável.

E, então, o estrondo ensurdecedor do vidro se despedaçando, com o choque da colisão. A onda devastadora engoliu Claire Temple e Tyler Cassey antes que alguém pudesse sequer entender o que estava acontecendo. Uma lasca pontiaguda das árvores que se arrebentaram ao longo da montanha empalou Claire pelas costas, perfurando seus órgãos internos vitais e fazendo-a soltar uma mínima exclamação de dor, antes da lama pesada e cruel encher sua boca e a fazer desaparecer em meio aos destroços.

Tyler, após ser engolido pela onda, foi lançado de um lado para outro, pela força do fenômeno, sem poder enxergar nem respirar. Mas não teve muito mais tempo para sofrer com aquilo. Uma das rochas que se desprendera do solo, durante o deslizamento atingiu-o em cheio, esmagando seu tórax e o crânio coroado.

Tudo foi muito rápido. Àquela altura, todos os alunos já haviam superado o breve momento de choque, e tentavam desesperadamente sair do salão... mas só havia uma saída. Jessica gritava sem parar, com a imagem de Claire e Tyler sendo engolidos pela onda de lama e detritos da natureza em sua mente. Ela, Phil e Patrick tentavam se espremer entre os alunos e sair do salão, que já estava sendo devastado, e se despedaçava como a grande caixa de vidro que era. Além de Claire e Tyler, alguns dos alunos que estavam próximos ao púlpito também não tiveram chance. Assim como a professora Lars.

Ao mesmo tempo em que isso acontecia, algumas das palmeiras que ladeavam o salão começaram a tombar, porque o deslizamento havia ganhado grandes proporções, no decorrer da montanha, e já vinha destruindo chalés, lojas e outros estabelecimentos, além daquele. Uma das árvores maiores tombou sobre parte da parede do salão que permanecia parcialmente intacta, fazendo grandes estilhaços de vidro voarem pelos ares, enquanto a onda avançava perigosamente. Jessica já estava na escadaria, quando aconteceu. Um dos estilhaços atingiu o professor Jamie Shawn no pescoço, abrindo um corte profundo em sua jugular. O homem caiu, sem condições de continuar avançando, e foi engolido pela onda.

Na escadaria, os alunos foram engolfados pela tempestade terrível e o vento forte que tornava a fuga mais difícil. Jessica ouvia gritos por todo lado, além de trovões e o som do salão se desmanchando às suas costas. As luzes de toda a ilha começaram a piscar. O pânico era geral. Pessoas tentavam correr, e fugir da avalanche que continuava avançando pela ilha, engolindo e destruindo tudo que entrasse em seu caminho. Em meio à correria, Patrick foi empurrado por alguém que estava desesperado demais para salvar a própria vida. O rapaz caiu, perto da escadaria. Tentou levantar-se, sabendo que morreria se continuasse ali, mas mais pessoas passaram por ele, pisoteando-o e caindo sobre seu corpo. Uma delas foi Brenda Grigori, que, por sinal, usava um salto afiadíssimo que abriu um corte profundo em sua nuca. A moça gritava histericamente, se arrastando pelo chão. Os relâmpagos e a chuva forte deixavam sua expressão apavorante. Patrick, semiconsciente, ouviu o som ensurdecedor, que mais parecia um trovão. Mas não era. As colunas romanas da fachada do salão estavam se desintegrando, com a força dos detritos que a água lamosa carregava. Brenda conseguiu levantar-se, e correr, antes que a coluna que caía a esmagasse. Mas Patrick não pôde fazer nada, além de se arrastar alguns centímetros, antes de ter todo o corpo estilhaçado pela pesada coluna de mármore.

Tudo isso acontecia numa rapidez aterradora, e, para Jessica, parecia um terrível pesadelo. A chuva forte doía em sua pele, e os relâmpagos a cegavam. Apenas segurava a mão de Phil e corria, porque o maldito deslizamento estava bem às suas costas, pronta para tragá-la.

- Rápido, Jessica! – gritava Phil. – Rápido!

A moça olhou por sobre o ombro, em tempo de ver todo o salão de festa em que houve o baile de sua formatura ceder, e não virar mais nada além de destroços devorados pela fúria da natureza. Alguns alunos haviam ficado para trás. Ela viu Brenda Grigori aos berros, os cabelos escuros e molhados ricocheteando em suas costas. Ela tropeçou e caiu, batendo o queixo no chão. Jessica engoliu sem seco. Poderia salvar pelo menos uma pessoa...

- Phil! – gritou ela. – A Brenda!

Phil parou de correr, e olhou para trás. Brenda continuava caída, chorando desesperadamente, enquanto sangue e água se misturavam em sua boca. A onda iria tragá-la a qualquer momento.

- Não há tempo! Vamos!

- Brenda! – berrou Liu, que estivera o tempo todo mais à frente, mas que agora corria em direção à garota negra caída no chão.

- Não, Liu! – gritou Phil, tentando impedi-lo. Mas ele não ouviu. Então, Phil puxou o braço de Jessica e voltou a correr, arrastando-a pelo caminho que ficava em volta da piscina próxima ao salão. Alguns postes de energia começaram a despencar, a fiação solta estalando ao sabor do vento.

Liu estava quase alcançando Brenda, quando a onda atingiu-a em cheio, fazendo-a desaparecer em meio aos destroços. A moça bateu a cabeça em um grande naco de granito, e seu crânio afundou com o impacto, fazendo-a perder a vida sem ao menos saber como era se afogar com o barro.

Liu, então apavorado, voltou a correr para se salvar. A onda parecia maior e mais mortal. E, na verdade estava, porque havia se juntado com as outras, que destruíram os chalés que ficavam nos pontos mais altos da montanha. E, o solo, com árvores e pedras, continuava cedendo, deixando a serra quase que inteiramente despida de vegetação. Olhando daquele modo, era como uma tsunami que vinha da terra, e não do mar.

Com um nó na garganta, Liu percebeu que não conseguiria escapar. Ouvia o som angustiante da onda bem em seu encalço. Numa ideia desesperada, o rapaz saltou na piscina, a fim de ser poupado do impacto do fenômeno. Por um instante, não ouviu nada além do som das águas movendo-se ao seu redor. Então, um dos postes mais próximos não resistiu à força da onda destruidora, e desprendeu-se do chão. Os fios soltaram faíscas, arrebentando-se e tocando a água enlameada da piscina em que o rapaz tentava se salvar. Liu não percebeu o que havia acontecido. Todo o seu corpo se contraiu, num choque inevitável, e seu coração imediatamente parou de bater, transformando-o em mais um dos corpos que compunham a onda de cadáveres, barro, árvores e destroços do que, até poucos minutos atrás, era uma adorável ilha paradisíaca.

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Paul e Page haviam acabado de transar, quando começaram a ouvir os gritos e os sons da destruição que os acompanhava. O rapaz, de início, pensou que as coisas no salão de festas estavam bem mais animadas, e por isso toda aquela gritaria. No entanto, ouviu pessoas correndo, bem perto do chalé, e dizendo coisas sobre o mundo estar acabando. O rapaz levantou-se, vestindo apenas a cueca, e foi até a janela ver do que se tratava toda aquela confusão. Mas chovia muito e as árvores em movimento não o deixaram ver muita coisa.

- O que é? – quis saber Page, vestindo a camisa social do namorado.

- Não sei.

Mais gritos e algumas árvores próximas subitamente desapareceram de vista, como se tivessem sido sugadas para o chão. Paul franziu o cenho, e entendeu do que se tratava. E tinha medo de que fosse tarde demais.

- Vamos sair daqui – gritou ele, agarrando o braço da namorada e arrastando-a pelo chalé até a porta. A menina xingou, em voz alta, sem entender. Então, ambos saíram para a chuva, em tempo de ver a onda gigantesca erguer-se sobre eles, como que para envolvê-los em um manto. Page gritou, e Paul abraçou com força, virando-se de costas para tentar protegê-la. Foi um gesto impulsivo, já que ele sabia, assim que viu a onda, que não havia chance nenhuma de sobrevivência. E estava certo. A água chocou-se contra eles numa força esmagadora, lançando seus corpos abraçados contra o chão de pedra assentada, enquanto pedaços cortantes de árvores, pedras e vidro dilaceravam suas peles e se enfiavam em suas carnes, unindo-os permanentemente um ao outro.

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Katherine, que estava às portas do salão, quando tudo começara a ser destruído pelo colossal deslizamento de terra, estava agora correndo para a praia, onde acreditava que estaria a salvo. Alguns hóspedes também corriam pra lá, gritando histericamente. Entre eles, estavam Jessica e Phil, perseguidos de perto pela morte iminente.

O cenário era deplorável. Não havia mais chalés, nem salão, nem piscinas, e nem mesmo árvores. Tudo havia se transformado em uma enorme massa barrosa, que continuava avançando implacavelmente. Katherine estava passando pelo principal bar da ilha, agora abandonado e escuro, quando o jipe preto usado pelos policiais locais apareceu, de uma das passarelas que davam acesso à praça. Seu coração acelerou ainda mais. Estava a salvo! Seria resgatada!

Jessica e Phil quase foram atropelados pelo veículo que parecia ter surgido do nada, e caíram no chão, na tentativa de se esquivar. Havia uma grande estrela em cada uma das laterais, indicando que se tratava da polícia. Mas, mesmo apesar da chuva, Jessica percebeu que as pessoas dentro dele não eram policiais.

O jipe não parou para nenhum pedido de socorro das pessoas desesperadas, que tentavam fugir do deslizamento. Katherine Russel, numa tentativa desesperada de fazê-lo parar, entrou na frente do veículo, acenando loucamente. Jessica gritou. O corpo da mulher girou pelo ar, como uma boneca de trapos, quando o jipe se chocou contra ela, e continuou a avançar. Ninguém parou para verificar se ela estava viva. Sabiam que estava morta, e que seriam mortos também, caso parassem.

- Droga – exclamou Phil, levantando-se, e olhando ao seu redor. Teve uma ideia. – Jessica, quero que suba no telhado do bar! A onda parece estar perdendo as forças...!

- Não, Phil, e você...?

- Eu vou logo depois, anda! – o rapaz impacientou-se, e ambos começaram a correr para o bar circular, que ficava no centro da praça principal. Um vento absurdamente forte soprava para todos os lados, dificultando cada movimento. Mesmo assim, Phil ergueu a namorada pelos quadris, e pediu que ela se agarrasse às vigas do telhado. A moça obedeceu, ciente de que em breve seriam engolidos pela onda que vinha. Com dificuldade, já que as telhas estavam escorregadias, Jessica conseguiu arrastar-se até estar completamente sobre o telhado do bar. Correu os olhos pela onda, e viu que não havia mais tempo.

- Phil! – gritou ela, as lágrimas se misturando à chuva. Quando os seus olhos se encontraram, Jessica percebeu que ele sabia que não iria conseguir subir. Que, quando disse que viria logo depois, estava mentindo, apenas para salvá-la.

- Eu amo você – disseram os lábios de Phil, sua voz perdendo-se em meio ao som ensurdecedor da onda que se erguia sobre eles. E, no instante seguinte, o rapaz foi lançado contra o bar, desaparecendo completamente sob o barro. Sua visão foi obscurecida, e tudo o que ele sentiu foi a dor dos ossos se quebrando, enquanto colidia contra a parede do bar e era empalado por um tronco de árvore no abdome. Depois disso, não sentiu mais nada.

- Phil! – berrava Jessica, os cabelos louros e molhados sendo soprados pelo vento, enquanto toda a estrutura do bar estremecia. Jessica sentiu alguma coisa se partindo sob ela, e de repente, o telhado começou a ceder. Jessica desviou os olhos para a praia, onde algumas pessoas conseguiram se abrigar nas embarcações. Eles olhavam para ela. Estavam assistindo-a morrer.

Então, houve um último estremecimento, e um estalo maior. O vento continuava soprando. A chuva continuava caindo. Os relâmpagos continuavam a piscar nos céus. E, foi percebendo essas coisas que Jessica desmoronou com o telhado, caindo na implacável onda que tirara a vida de todos os seus amigos e de seu namorado. Sentiu a água pesada e escura envolvê-la. Tentou gritar. Mas som algum saiu de sua boca. Ao invés disso, barro e fragmentos de seres mortos entraram por sua garganta, sufocando-a. Debatendo-se, ou pelo menos tentando, Jessica foi tomada por uma sensação gelada e paralisante. Estava morrendo. Podia sentir a Morte. O barro encheu seus pulmões. Uma dor aguda no instalou-se em seu peito, como se ele estivesse prestes a explodir... E, então, ouviu voz empolgada do professor Shawn:

-... está na hora de conhecermos o rei e a rainha do baile!

Jessica abriu os olhos – e não conseguiu acreditar no que eles viam.